Missão impossível no capitalismo: impulsionar a justiça social, promover o trabalho decente

A pandemia revelou o que as desigualdades realmente significam para as pessoas e sociedades.

Eduardo Camín

Fonte: Carta Maior, com Clae
Tradução: DMT
Data original da publicação: 02/07/2021

As consequências da Covid-19, a proteção social e como garantir uma recuperação inclusiva e centrada nas pessoas, estiveram no centro das principais discussões da sessão virtual de junho da 109ª Conferência Internacional do Trabalho. Cerca de 4.500 delegados participaram da CIT virtual, incluindo 171 ministros e vice-ministros e representantes de alto nível de trabalhadores e empregadores de 187 estados membros da OIT.

Conforme previsto pela Organização Mundial da Saúde, a crise sanitária evoluiu para uma crise mundial econômica e social que infligiu danos sem precedentes ao mundo do trabalho e que transformou-se em um desastre humanitário para milhões de pessoas. Os graves problemas sociais não são inocentes nem naturais, pois surgem como resultado de um tipo de desenvolvimento que não mede as consequências de suas ações sobre a natureza e relações sociais.

Os delegados aprovaram por unanimidade uma Chamada Global para a Ação, na qual são esboçadas medidas para criar uma recuperação da pandemia centrada nas pessoas, a fim de evitar que as economias e sociedades sejam prejudicadas a longo prazo. O apelo compromete os países a garantir que sua recuperação econômica e social da crise seja “totalmente inclusiva, sustentável e resiliente”.

Também, nos dias 17 e 18 de junho, realizou-se a Cúpula do Mundo do Trabalho, na qual intervieram líderes mundiais – como o Papa Francisco, o Presidente da República da Coreia do Sul, Moon Jae-in, o Primeiro-Ministro de Portugal, António Costa, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o Presidente da República Democrática do Congo, Félix Tshisekedi – além de representantes de organizações de trabalhadores e empregadores, bem como das Nações Unidas.

O conclave enfocou a necessidade de fornecer uma resposta global à crise da Covid-19 e as ações necessárias para construir um futuro melhor para o trabalho. A discussão sobre proteção social centrou-se no impacto da pandemia e nas rápidas mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho, e um quadro de ação urgente foi recomendado para alcançar alguns sistemas de proteção social universais, adequados, abrangentes e sustentáveis que se adaptem à evolução do mundo do trabalho.

As ações incluem medidas para fortalecer as políticas nacionais de proteção social, fechar as lacunas de financiamento, fortalecer a governança e adaptar os sistemas de proteção social após a crise e no contexto do futuro do trabalho.

Ao encerrar este segmento da CIT, o Diretor-Geral da OIT, Guy Ryder, expressou sua satisfação com os resultados obtidos durante uma Conferência que qualificou de “notável”.

A segunda etapa da Conferência acontecerá de 25 de novembro a 11 de dezembro deste ano, com uma agenda que inclui debates temáticos sobre as desigualdades e o mundo do trabalho, bem como sobre as competências e a aprendizagem ao longo da vida.

O mundo do trabalho, um registro de incertezas

O mundo do trabalho capitalista ainda está sob o jugo da pandemia, o que significa que ainda não é possível fazer uma estimativa definitiva dos danos econômicos e sociais. No entanto, o relatório da OIT mostra uma visão clara do que aconteceu em 2020.

A estatística mais reveladora é fornecida pela própria OIT: como resultado da Covid-19 e das medidas adotadas para conter sua disseminação, as horas efetivamente trabalhadas naquele ano diminuíram cerca de nove por cento em todo o mundo, em comparação com o último trimestre de 2019, o que equivale a uma perda de 255 milhões de empregos em tempo integral. Esse número alarmante mostra que, no que se refere ao trabalho, o impacto é quatro vezes maior do que o da crise financeira de 2008.

A repartição destes números permite obter uma ideia mais precisa da situação real dos trabalhadores. Quase metade das horas de trabalho perdidas pode ser atribuída à perda de empregos: 33 milhões de pessoas perderam seus empregos e muitos mais – 81 milhões – deixaram o mercado de trabalho e permaneceram inativas. A outra metade corresponde a pessoas que trabalharam menos horas ou mesmo nenhuma, mas mantiveram o vínculo empregatício.

Do ponto de vista regional, as Américas foram claramente a região mais afetada, com uma perda de jornada de trabalho de 13,7 por cento, enquanto nas outras regiões esse número ficou entre 7,7 e 9,2 por cento. Na mesma linha, a perda de horas de trabalho foi particularmente marcante nos países de renda média-baixa, onde foram 11,3 por cento, enquanto todos os outros grupos de renda não ultrapassaram a média mundial.

As lições que (não) aprendemos com a pandemia que não prevíamos

A pandemia, destaca a OIT, obrigou o mundo inteiro a seguir um programa de aprendizagem acelerado em todos os níveis, especialmente no campo da saúde. Foi necessário entender qual é a natureza do vírus, como ele ataca e como sua propagação pode ser prevenida. E não só isso; compreendeu-se muito mais.

A necessidade de aprender e de agir de acordo com o que foi aprendido foi estendida a praticamente todos os aspectos da política e da vida. Também, sem dúvida, ao mundo do trabalho. A questão, então, é o que sabemos agora que não sabíamos antes e que lições podemos tirar dessa experiência.

O mundo não viu essa pandemia chegando e não estava preparado para enfrentá-la. Os cientistas já haviam advertido para o perigo de futuras pandemias como algo inevitável. No entanto, o relatório intitulado The Global Risk Report 2020, dois meses antes da declaração da pandemia, apresentava uma análise dos riscos que se abateu sobre o mundo e afirmava que os riscos relacionados às doenças infecciosas eram menos propensos a se materializar do que outras categorias de riscos.

Entre estes, citavam os de cunho ambiental, econômico e geopolítico, que ocupavam posições superiores no ranking. Mesmo em termos de potenciais repercussões, as doenças infecciosas ​ocupavam apenas o décimo lugar.​ ​No entanto, o relatório alertava para o perigo de os sistemas de saúde se tornarem inadequados e afirmava que “o progresso no combate às pandemias também é prejudicado pela relutância à vacinação e pela resistência aos medicamentos” e que “o sucesso no combate aos problemas de saúde no passado não é garantia de sucesso futuro”.

O baixo nível de atenção dada ao risco de pandemia não é surpreendente, embora, em retrospecto, possa parecer que houve negligência. A avaliação de risco é baseada na análise de múltiplos fatores e, embora os perigos iminentes de catástrofes ambientais, colapso econômico e financeiro – e até mesmo conflitos geopolíticos – possam ser detectados e até medidos ao longo do tempo, é menos comum que se atue assim no caso de pandemias, que surgem repentinamente, de forma irregular e sem prévio aviso.

A pandemia expôs fortemente a existência crescente de desigualdades de todos os tipos em nossas sociedades, – em sua maioria, originadas no mundo do trabalho -, o que contrasta fortemente com a impressão inicial de que todas as pessoas são igualmente vulneráveis à infecção do vírus. Além disso, a pandemia exacerbou essas desigualdades e existe um sério risco de que se coloquem em marcha dinâmicas que acentuem essa tendência muito além da duração da pandemia.

O trabalho, com ou sem vírus, eterno acúmulo de desigualdades

A compreensão das desigualdades e a preocupação que suscitam não começaram com o surgimento da pandemia de Covid-19. De fato, uma das metas da Agenda 2030 preconiza a redução das desigualdades, o que significa que já havia um consenso internacional que considerava inaceitável a situação pré-pandêmica.

No entanto, a pandemia revelou o que essas desigualdades realmente significam para as pessoas e sociedades. O fato de ter operado tanto no nível das percepções quanto no das realidades subjacentes não a diminui.

A desigualdade não é medida apenas em termos da posição que uma pessoa ou família ocupa na escala de renda e riqueza. Também está relacionada ao acesso à saúde, oportunidades educacionais, conectividade à internet, proteção social, moradia digna, situação financeira, emprego formal e decente, justiça, serviços públicos básicos, vacinas e muitos outros fatores.

Cada um desses fatores separadamente dá algumas pistas sobre como a crise afetou as pessoas, como elas estão lidando com ela e sobre possíveis respostas a perguntas como: As crianças têm a tecnologia necessária para continuar seus estudos quando as escolas estão fechadas? Terei direito ao subsídio de doença se tiver de me confinar? Como vou alimentar minha família se não for trabalhar? Tenho direito a beneficiar-me de políticas públicas de auxílio?

Tomados em conjunto, esses fatores revelam profundas divisões nas sociedades. Vantagens e desvantagens tendem a se acumular de tal forma que a desigualdade quantitativa se transforma em injustiça estrutural, em incapacidade crônica de aproveitar oportunidades, ter acesso à mobilidade social e, em última instância, em exclusão.

Todos esses problemas que se arrastam por décadas se agravam com a dinâmica imposta pela crise. Trabalhadores de baixa renda e outras categorias de trabalhadores desfavorecidos não só foram atingidos mais duramente pelas perdas de emprego e renda, mas também têm menos oportunidades de se adaptar a padrões de trabalho alternativos ou de encontrar seu lugar no conjunto de oportunidades de emprego que o “novo normal “pode criar.

Enquanto isso, os mercados financeiros não relacionados ao desastre cresceram à medida que a economia real se contraiu, para o benefício óbvio dos especuladores, detentores de ativos financeiros, e em detrimento dos que dependem dos rendimentos do trabalho.

Nessas circunstâncias, faz sentido a muito citada imagem sobre a pandemia de Covid-19 de que todos nós estamos na mesma tempestade, mas navegamos em barcos diferentes.

Independentemente dos sentimentos sinceros de compaixão e apoio despertados pelo sofrimento humano causado pela pandemia, o fato de que as experiências individuais colocam as pessoas, mesmo aquelas que são muito próximas, em realidades completamente diferentes, não pode se desviar do propósito comum de embarcar em uma processo de recuperação. O neoliberalismo que nos governa tornará a tarefa impossível.

Eduardo Camín é jornalista uruguaio, correspondente de imprensa da ONU em Genebra. Associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).

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