O recalque da perda da posse por parte da elite no Brasil.
Rosana Pinheiro-Machado
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 26/09/2014
Esta coluna começou no churrasco de domingo, quando, na fila do supermercado, uma mulher disse: “Minha empregada está muito abusada”. Sua interlocutora respondeu: “Nem me fale, a minha também”. Ao longo do almoço, eu e meus amigos tentávamos explicar o que significava a palavra “abusada” para um estrangeiro. Como fazê-lo entender que, independentemente da eficiência, a maioria das empregadas brasileiras seria, em algum momento, considerada “abusada”?
A dificuldade era dimensionar a extensão do conceito. Começamos pela obviedade do significado da palavra “abuso”, que remete a algo de superlativo. Abusar é usar alguma coisa além do limite socialmente esperado. Eu explicava que era como invadir um espaço simbólico ou físico. Por exemplo, quando a empregada é abusada por não subir no elevador de serviço, mas no social (na verdade, foi difícil explicar que no Brasil muitos edifícios tinham dois elevadores e o famoso “quarto de empregada”).
Prossegui, explicando que se a empregada come muito, se toma muito refrigerante da geladeira ou come as bolachas de chocolate, ela é abusada. Se ela pede uma roupa emprestada, é abusada. Se ela senta à mesa com a família, é abusada.
De todos esses exemplos, ele concluiu que abusada é aquela que quer mais do que lhe foi dado, que cobiça as coisas da patroa. A conversa ficou mais complexa porque tivemos de responder que “não”, que o oposto também era verdadeiro: uma empregada que quer “de menos” também é abusada. Seguimos explicando que, se a patroa oferece uma roupa velha, furada e fedida e empregada “tem a au-dá-cia” de não aceitar, ela é abusada.
Ele concluiu, então, que uma boa empregada seria, então, aquela que assume “o seu lugar”: não pede muito, mas aceita de bom grado o que lhe é dado. Colocando o pé para fora dessa faixa muito estreita de atuação, ela é abusada.
Grande parte das patroas vive da lamentação de seu mundo servil em decadência, e não sabe lidar com o orgulho e a dignidade das empregadas. Atualizando uma cultura escravocrata, essas patroas esperam humildade e resignação ilimitadas. Para que uma empregada não seja abusada, ela inevitavelmente terá de renovar diariamente os votos de sua gratidão.
A negação de presentes indignos por parte das empregadas traz à tona diversas camadas complexas de significados. A forma desajeitada como as patroas reagem escancara a profunda patologia social de uma classe média presa ao século XVII – provavelmente, em uma época em que ela se imagina numa casa-grande, cheia de porcelana inglesa e de escravos à volta, preferencialmente com uma negra para cozinhar. Ou melhor, ela se imagina em uma novela da Rede Globo do século XXI, onde a mulher negra ainda é explorada 24 horas por dia a serviço de suas patroas ricas.
Essas patroas esperam empregadas sem agência, sem protagonismo, sem voz, sem vontade e sem opinião. (Afinal, é claro que uma empregada que dê opinião onde não foi chamada também é abusada.) Elas esperam seres eternamente gratos por receberem restos. Nessa lógica em que, já diria Marcel Mauss, dar é poder, uma empregada que pede mais dinheiro para lavar a privada suja ou exige seus direitos garantidos na Constituição, só pode ser abusada.
A empregada é ainda mais abusada se ela tiver a petulância de viajar de avião, de ter um celular e uma televisão melhor que a da patroa (o que é muito comum), e se recusar o eletrodoméstico velho dizendo: “Desculpa, mas eu tenho um mais moderno”. Nesses casos, quando a suposta cobiça se inverte, e a patroa fica sem chão, existem duas reações comuns.
A primeira é tentar rebaixar e ridicularizar a empregada, como a mulher que recentemente postou nas redes sociais que não teria diarista na segunda-feira porque a abusada respondeu por WhatsApp que tinha manicure naquele dia. A segunda reação é começar a se lamentar, inaugurando a outra obsessão das conversas entre patroas: a de que as empregadas limpam pouco, não pegam no pesado, deixam tudo fora de lugar… em suma, são muito indolentes. Empregada boa era a de antigamente.
Por tudo isso, eu penso que não aceitar qualquer presente é um marco muito importante na passagem de uma relação servil para a profissional (que, sim, pode manter o afeto e a intimidade, desde que haja respeito e igualdade). A negação revela a emergência de uma subjetividade repleta de vontades que se impõem na esfera do trabalho. É da negação que surge uma nova era no Brasil, pois ela quebra o círculo da dádiva e rompe com o poder do doador, estabelecendo uma condição de igualdade baseada na troca de serviços – e não de favores.
As transformações recentes da sociedade brasileira indicam um leve rompimento (mas já muito doloroso e cheio de estardalhaço) de uma relação tão pessoal quanto doentia entre patroas e empregadas. Indica o fim do ser humano como posse de outro ser humano. E isso, é claro, causa desespero, lamentação, recalque e conflitos.
Ainda tem muito a ser feito e conquistado. Muito mesmo. Espero que chegue o dia em que eu não precise explicar o sentido da palavra “abusada”. Neste dia, perder-se-á também alguma flexibilidade do modelo de empregadas dentro de casa. Será preciso se acostumar a ouvir “não, obrigada” e aprender a curtir genuinamente as fotos postadas daquela viagem. Neste dia, o serviço da limpeza será mais custoso, mas não há saída: esse é o preço de nosso desenvolvimento e de nossa liberdade enquanto nação.
Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford.