Não basta ter coragem e acreditar que o cara lá de cima vai lhe dar tudo. Sem consciência de classe, o caminho é o individualismo ainda mais competitivo, a privatização de todos os direitos, o cidadão transformado em consumidor e o trabalhador em empresário de si mesmo.
Valter Palmieri Júnior
Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 03/07/2017
Certa vez meu avô, que tem 93 anos, foi surpreendido por duas mulheres evangélicas na frente de sua casa. Iniciou-se uma conversa em que as duas diziam que toda aquela grande casa onde ele morava, assim como todos os bens que ele possuía, pertenciam a Deus, pois nada conquistamos na vida sozinhos. Ele interrompeu as duas, disse que gostaria de dizer somente algumas palavrinhas e que depois elas podiam falar o que quisessem.
_ Vocês conhecem um pau-de-arara? (Sem dar pausa para elas responderem ele continuou)
_ Conheci o pau-de-arara com 8 anos. E eu era famoso na cidade por ser o menino que mais aguentava trabalhar sem comer. Pode perguntar aí, se encontrarem alguém vivo da época.
Ele olhou bem para elas e continuou.
_ Agora podem continuar com aquela história de vocês.
Meu avô me contou essa história dando boas risadas, batendo os pés no chão. Em um outro dia, querendo saber mais sobre sua memória de vida, recuperei esse relato para ele falar mais. Ele disse, com voz bem firme:
_ Eu às vezes acho que sou ateu. Pra mim somo que nem boi jogado no pasto, só foi sobrevivendo os mais forte.
Foi tão potente o modo como ele disse que fiquei calado, apenas querendo mais. Histórias tristes e bonitas de quem viveu outra realidade que só sei por livros.
Meu avô nasceu em 1924. Época em que a expectativa de vida ao nascer era 33 anos (média) e mais de 70% da população vivia na área rural com extrema dificuldade material nos vários aspectos da vida, sem condições de aprender a ler diante de tanta labuta, sem médico, sem conhecimento algum de práticas de saúde, sem saneamento básico. E isso porque meu avô não pertencia a grupos sociais ainda mais desfavorecidos, pois era filho de italianos que vieram ao Brasil no início do século.
A situação média do brasileiro foi mudando progressivamente, principalmente entre 1950 e 1980. Durante esses 30 anos, meu avô passou dos 26 aos 56 anos de idade, conseguiu criar 9 filhos e comprar uma casa bem grande, mas somente quando todos eles já haviam casado. O país passou por um processo de industrialização/urbanização que permitiu uma enorme mobilidade social, mesmo acompanhada de uma ampliação da desigualdade. As oportunidades foram para todos. Porém, os que ganhavam 100 passaram a ganhar 200 enquanto os que ganhavam 10 mil passaram a ganhar 100 mil. Foi um progresso, todos ganharam, mas construímos a nação capitalista mais desigual do mundo.
O PIB per capita cresceu incríveis 270% no período e isso permitiu que mesmo em um ritmo muito inferior aos mais privilegiados, que a maior parte da população conseguisse significativa melhoria de vida. Isso dava a sensação de que o progresso era para todos e de que os filhos teriam melhores condições, e os netos mais ainda.
Em cada grupo social, dentre pessoas com os mesmos privilégios, os mais espertos, esforçados e batalhadores poderiam até conseguir melhorias relativas aos seus próximos, porém, nada capaz de romper com o abismo estrutural de privilégios da sociedade. É assim até hoje. A pessoa olha seu irmão ou um parente próximo e pensa que se saiu melhor na vida apenas por mérito pessoal, passando a acreditar na chamada meritocracia; acredita que o Luciano Huck ganha 4 milhões por mês por ter um mérito pessoal formidável em relação aos 99,999% da sociedade. Ainda acredita que basta trabalhar a vida inteira, ser dedicado, comprometido, ético e isso o leva inevitavelmente ao sucesso.
Essa crença é tão forte que não basta ver no noticiário grandes empresários construindo fortunas por meio de relações promíscuas que ocorrem entre os homens do poder. Essa crença é tão resistente que não é suficiente ver cotidianamente milhares de homens e mulheres indo trabalhar cedo todos os dias do ano, durante toda uma vida e, mesmo quando a velhice chega, não ter ao menos a casa própria.
Essa crença é tão estúpida que mesmo vendo uma foto de 100 formandos em medicina, todos brancos, em uma população em que 50% são negros não basta para perceberem que nem todos partem dos mesmos privilégios. Essa crença é tão insultuosa que não enxerga que nessa acirrada concorrência capitalista os méritos valorizados pouco se relacionam com valores éticos, humanos, afetuosos e solidários.
“Atrás de toda riqueza há um crime!” Essa frase de Honoré de Balzac possui quase 200 anos, mas tenho a impressão de que ela ainda não é levada a sério. Ela terá que soar, terá que se ouvir por mais mil anos para que a ideologia que legitima os podres poderes por toda a sociedade se esfacele e abra espaço para se questionar a crença de que as conquistas e o “sucesso” são alcançadas por meio do individualismo levado ao ponto máximo, que basta acreditar e ter coragem.
Não basta ter coragem, não basta acreditar que o cara lá de cima vai lhe dar tudo o que você quiser. Sem consciência de classe, o caminho já está traçado: individualismo ainda mais competitivo, com a continuidade da privatização de todos os direitos, com a transformação do cidadão em consumidor, com o trabalhador se tornando um empresário de si mesmo. A tragédia é que esse caminho reforça a seita da meritocracia como único acesso a melhores condições de vida.
Assim como a crença de meu avô é legitimamente construída a partir das condições materiais de sua existência, minha geração, vivendo em um período neoliberal e em uma sociedade de consumo onde o sucesso individual é cultuado no Instagram e medido pelo número de curtidas, acredita que de alguma maneira somos mercadorias. Assim como toda mercadoria, precisamos melhorar nosso preço e ampliar a demanda de nossos corpos para que o lucro supere os custos da vida miserável de viver apenas para si.
Já que nos metamorfoseamos em empresários de nós mesmos, usamos as mais variadas estratégias dos livros de ouro do marketing para falsear nossa vida, transformando cotidianamente em culto o que antes teríamos vergonha de dizer no confessionário.
A meritocracia não serve hoje apenas para justificar o sucesso profissional ou a riqueza conquistada, mas também o corpo magnífico, os títulos acadêmicos, as viagens extraordinárias, as experiências gastronômicas e tudo que permite construir uma identidade que diferencie um indivíduo dos demais. Jean Baudrillard dizia que é sobre as perdas das diferenças que se funda o culto à diferença. Parece que realmente nossa sociedade massificada perdeu as diferenças substantivas e reais e apenas sobrou a busca desenfreada por se diferenciar a qualquer custo e por qualquer coisa como último suspiro para existir.
As conversas com meu avô não me fazem acreditar que em sua época as coisas eram mais fáceis, muito pelo contrário; percebo que em muitos aspectos da vida houve avanços consideráveis. Também não deixo de considerar como seus esforços, luta e coragem (juntamente com minha avó) foram importantes para toda a família e como muito dos privilégios que tive na vida são decorrentes dessa batalha iniciada há muitas décadas. É contraditório? Não, pois existe, sim, a individualidade e o esforço pessoal que não devem ser menosprezados. Lutar para que o mito da meritocracia seja desfeito significa olhar, sim, a história, reconhecer os privilégios individuais para construirmos uma sociedade onde os laços que permeiam a construção da sociabilidade sejam de solidariedade e não de competição, que preze a igualdade dos indivíduos, mas também reconhecendo e respeitando suas diferenças substantivas.
Quero prosear com meu avô e dizer que tem muito boi hoje em dia que não aguenta o “batidão”. Explicaria que muitos entregam o ponto de modos bem diferentes do da sua época e que talvez o maior motivo hoje para muitos entregarem o ponto é o peso excessivo que colocam nas nossas costas, peso maior quanto maior a crença na meritocracia, na responsabilidade sempre e apenas individual de todos os nossos sucessos e fracassos. Gostaria também de dizer ao meu avô que concordo com ele que nenhuma entidade divina nos dá o que conquistamos e que o capitalismo sim, nos dá muita coisa. Mas depois cobra com juros e correção monetária.
Valter Palmieri Júnior é economista e ator. É mestre em Desenvolvimento Econômico pelo IE-Unicamp e doutorando do mesmo programa na área social e do trabalho.