Elísio Estanque não vai estar dando respostas prontas nesta entrevista. Vindo do Alentejo, ele obviamente não prima pelos gerúndios característicos do infoproletariado, a massa de trabalhadores dos call centers. Mas a questão é mais que gramatical. Esse sociólogo de 61 anos se diz contra seguidismos e alinhamentos cegos. Tem estilo próprio. E vai direto ao ponto: “O que vemos nas duas últimas décadas é uma regressão à autêntica barbárie no mundo do trabalho”.
Professor da Universidade de Coimbra, Elísio sentiu a feia crise em seu país. No entanto, quando fala de barbárie, não trata apenas do desemprego brutal entre os jovens portugueses. Quer discutir por que trabalhadores em geral – e não só os infoproletários – se distanciaram dos sindicatos e se trancafiaram num “individualismo negativo”, sem direitos sociais básicos. “Ninguém imaginava que, mesmo nas democracias avançadas, iriam surgir fenômenos de degradação humana nesse nível”, afirma.
Ele fala de acúmulo de funções, de falta de segurança, de alta rotatividade, de vigilância escamoteada, de ausência de lazer, de exaustão. Opina sobre o paradigma desenvolvimentista do Brasil, onde a taxa de desemprego de novembro, 4,6%, é mínima histórica. Também tem interesse em comparar a classe média portuguesa com a nossa “nova classe média”, de que ele desconfia, e faz isso tudo a partir de Campinas, onde está desde janeiro como professor visitante da Unicamp, em companhia da mulher ucraniana.
Causou surpresa, na semana passada, o caso da redatora de uma agência de publicidade da Indonésia que morreu após trabalhar três dias seguidos em frente do computador. O pai dela, diretor executivo de outra agência, disse que a filha passara de seu limite. Como medir esse limite em tempos de infoproletariado?
Ao tomar esse evento apenas como ilustração de muitos milhares de outros que têm acontecido nos últimos tempos, eu diria que essa pressão que faz com que o trabalhador seja levado pra lá do suportável das capacidades humanas depende de um clima geral que está a exaurir a classe. Esse clima tem despojado o trabalhador daquilo que são – ou que foram – alguns direitos de segurança, de inserção social e de recompensas materiais e salariais. Nas últimas duas décadas houve uma inversão na lógica do funcionamento da economia. O mercantilismo se reforçou e está a individualizar mais as relações de trabalho. As pessoas ficam sob um controle ainda maior na medição dos indicadores da produtividade, dependente de serem ou não capazes de alcançar objetivos muitas vezes insuperáveis. Portanto, nesse caso da Indonésia e também em muitos acidentes de trabalho em que questões de segurança são descuradas, tudo representa uma vulnerabilidade muitíssimo grande do trabalhador. E isso acontece tanto em segmentos mais qualificados e de ensino superior como naqueles de menor qualificação e trabalho indiferenciado. Temos na construção civil, por exemplo, vários exemplos de risco que levam os trabalhadores a sofrer acidentes físicos, inclusive.
Nessa semana, aliás, ocorreu a morte de um operário na Arena Amazônia motivada, diz o sindicato da categoria, pela correria dos trabalhadores para entregar o estádio no prazo. Há na história momento semelhante de tamanha vulnerabilidade do trabalhador?
Nos anos 1990, Ulrich Beck, alemão que estuda essas temáticas, falava da brasileirização do mundo. Pensava na enorme precarização da força de trabalho na qual não há praticamente direitos, e sim uma enorme rotatividade e instabilidade. Só que, na Europa, não se esperava que ela fosse tão brusca, tensa e violenta. É um individualismo negativo que faz lembrar aquele que existia antes da Revolução Francesa, antes de a sociedade industrial moderna estar consolidada. Era o trabalhador colocado como força bruta, como mercadoria, totalmente dependente daquilo que fosse do interesse das entidades empregadoras. O que assistimos nas últimas duas décadas é uma espécie de regressão a esse período de autêntica barbárie. E isso é vivido, no caso dos trabalhadores da Europa, depois de eles terem passado por três décadas da chamada época de ouro do Estado previdente, quando a conquista de direitos repunha o trabalho num estatuto de reconhecimento social. Há sete, oito anos, ninguém imaginava que, mesmo nas democracias mais avançadas, surgiriam fenômenos e situações de tamanha degradação humana.
Isso, de alguma forma, tem a ver com a inovação tecnológica?
A inovação tecnológica tem sempre duas faces: a brilhante e a obscura. Há muito se vinha discutindo que, com a tecnologia, o trabalhador ficaria mais liberto do componente mais duro do trabalho, podendo usufruir de mais tempo livre. Mas a inovação tecnológica não tem acarretado consigo mais liberdade, mais autonomia, mais emancipação. Ao contrário: permite uma vigilância mais apertada. Ela cria uma precariedade que não é apenas objetiva e material, mas também psicológica, o que leva o trabalhador a recriar os instrumentos da própria vulnerabilidade.
Como isso acontece?
O trabalhador é colocado numa situação vulnerável não apenas porque sabe que pode ser deslocado de um momento para outro ou ser facilmente demitido, mas também porque incorpora a ideia de que é preferível aceitar qualquer que seja a condição de trabalho a não ter nenhum. Daí que concorda em ser colocado numa posição de maior dependência. E aceita de certo modo ser explorado até a exaustão, como naquela situação à qual nos referimos no início. Isso acontece na relação assimétrica de poder que ele mantém com a entidade patronal, uma entidade que muitas vezes nem conhece pessoalmente.
O acúmulo de funções seria uma faceta dessa exploração?
Isso se insere no paradigma das empresas enxutas, retórica enfocada a partir dos anos 1980 com o chamado Consenso de Washington, que levou a uma globalização maior dos mercados. Isso intensificou imensos fluxos do capitalismo financeiro e colocou o capitalismo produtivo a sua mercê. Na prática, isso se traduziu na tentativa de espremer ao máximo o trabalhador que fica na empresa, fez com que a polivalência deixasse de ser sinônimo de maior autonomia e margem de opção do trabalhador para torná-lo mais dependente de uma competitividade castigante. Dentro das empresas também há uma condição muito estimulada entre os trabalhadores, os prêmios de produtividade, que muitas vezes são ilusão. Se olharmos de um lado a multiplicação do lucro da atividade financeira e de outro os salários, há uma distância que se foi elevando nas últimas décadas em todos os países, a começar pelos EUA. Resumindo, essa multiplicidade de competências aconteceu por imposição de cima para baixo. A margem de negociação foi desaparecendo porque o próprio campo sindical deixou de negociar as condições de trabalho, entre elas também as horas extras.
No caso das horas extras, seria o momento de resgatar o cartão de ponto?
O cartão de ponto nos remete aos setores mais burocráticos, aos setores dos servidores públicos, nos quais, apesar de tudo, ainda existe alguma previsibilidade. A pessoa sabe que, quando deixar o local de trabalho, estará livre. Mas me parece que essas situações sejam cada vez mais excepcionais porque os servidores públicos – pelo menos na Europa, no Brasil ainda é diferente –, estão sendo igualmente descartados, enquanto os recursos públicos seguem muitas vezes a lógica do privatismo. Eu diria que o cartão de ponto, neste momento, está no bolso de todo mundo. Está no celular, no computador, nos imensos meios técnicos que as empresas possuem para controlar o que cada um está a fazer a cada momento.
Como esse trabalhador pode reagir?
Desde que o capitalismo moderno se consolidou surgiram conflitos, como o movimento ludista, em que os trabalhadores destruíram as máquinas por temer que elas viessem a substituí-los no emprego. Mas eles logo aprenderam que, sozinhos e isolados, não conseguiriam resistir de modo nenhum. A resposta tinha de ser coletiva, por força do movimento sindical, que nos países mais avançados foi sendo institucionalizado e trouxe imensas conquistas para as condições de vida. Mas hoje, num salto histórico para este momento de regressão, os sindicatos estão a ser o principal alvo da força do grande capital internacional. Houve uma viragem de paradigma nas últimas duas ou três décadas. Os sindicatos temem ser agressivos, estão muito enfraquecidos. Em parte porque, seja no infoproletariado ou em outros vínculos laborais, as empresas e o trabalho tendem a ser terceirizados. Note-se, por exemplo, que aqui no Brasil cerca de 1/3 da força de trabalho é terceirizada. Em Portugal, mais de 30% dos trabalhadores estão com contrato a termo certo, ou seja, estão em situação de precariedade. As novas gerações de força de trabalho vão entrando no mercado em condição particularmente precária e dependente, individualizada e com medo.
Esse jovem não procura o sindicato?
Apesar de muitas vezes esse jovem ser sobrequalificado, pelo menos na Europa, já que o desemprego atinge mais aqueles que passaram pela universidade, ele não procura os sindicatos. E por duas razões: uma é a pressão que existe dentro das instituições do mercado de trabalho quanto a isso; outra é o déficit de confiança que as novas gerações têm rotineiramente em relação ao sindicalismo. Ou seja, o próprio sindicalismo também não soube renovar-se e adaptar-se para responder de modo mais eficaz a esses problemas.
Portugal anunciou que gastará € 300 milhões para combater o desemprego jovem. Isso é suficiente?
Esse valor é, com certeza, insuficiente para programas de incentivo ao emprego de jovens que, na faixa abaixo dos 30 anos, ultrapassam os 40% de desempregados em Portugal. Na Espanha, são 50%. É insuficiente sobretudo se não for acompanhado de outras políticas de incentivo à recuperação da economia, o que só pode acontecer se houver, de novo, um investimento e uma alavancagem por parte do poder público e da intervenção estatal. Porque, desastrosamente, esse paradigma neoliberal parte do princípio de que tudo que é privado é eficaz e tudo que é público é custoso. Se a economia não crescer, se não houver mais oferta de emprego e trabalho assalariado, é obvio que esses jovens continuarão a sentir-se sem futuro, em busca de qualquer saída. No caso de Portugal, a saída tem sido migrar para a Alemanha, Holanda, Luxemburgo e França, ou mesmo para o Brasil.
O desemprego no Brasil caiu para 4,6% em novembro, mínima histórica antes do fim do ano. O senhor vê esse cenário com otimismo?
O que tem acontecido no Brasil é um crescimento econômico muito significativo e uma melhoria notória nas condições de trabalho, porém justamente porque a base de partida era extremamente degradante e miserável para muitos setores. E, ainda hoje, apesar das melhoras em termos de formalização do emprego em relação há 15 anos, repara-se nos altíssimos porcentuais de rotatividade. Minha leitura vale para todas as sociedades: quando se avança segundo uma orientação progressista e emancipatória de maior coesão social, maior dignidade para as classes trabalhadoras, maior acesso à saúde, à educação, à cultura, ao descanso da mente, aí estaremos a caminhar no bom sentido. Se o paradigma desenvolvimentista do Brasil sair triunfante dessa encruzilhada em que nos encontramos, é possível que a classe trabalhadora, nas próximas décadas, vá se beneficiar disso. Mas neste momento há uma grande incerteza nesse sentido. Os poderes do capitalismo global são realmente esmagadores.
Fonte: O Estado de S.Paulo
Entrevistadora: Mônica Manir
Data original da publicação: 21/12/2013