Silenciar sobre a história de famílias negras pode ser fruto de esquecimento ou tentativa de evitar um passado de dor. Mas é a memória que confronta o racismo e desmistifica a narrativa única dos brancos vencedores.
Vitor Hugo Monteiro Franco e Felipe de Melo Alvareng
Fonte: Deutsche Welle
Data original da publicação: 17/11/2021
História é poder. Por isso, contar a própria história é um desafio enorme quando você descende de pessoas que foram escravizadas. Por onde começar? Muitas vezes conseguimos reconstruir nossas árvores genealógicas até nossos avós ou bisavós, mas a partir daí as narrativas rapidamente se esvaem. Personagens são excluídos ou não são lembrados. Parece que ganhamos um quebra-cabeças instigante, mas com uma série de peças faltando ou perdidas, deixando um silêncio enorme a uma pergunta fundamental da humanidade: “Quem nós somos?”
Esse silêncio marca as nossas trajetórias e demora um tempo para compreender que, muitas vezes, ele é resultado tanto do esquecimento, intencional ou não, como da tentativa de se evitar revisitar um passado que representa dor e sofrimento. A escravidão foi uma instituição brutal. A violência marcou a vida dos diversos africanos sequestrados de suas terras e de seus descendentes nas Américas. Portanto, às vezes, o mais seguro é silenciar sobre essas experiências.
Ao mesmo tempo, em sociedades pós-escravistas marcadas pelo racismo, não só no Brasil, as histórias e contribuições de africanos e seus descendentes tendem a ser negadas e esquecidas deliberadamente. Em contraste, temos a exaltação de narrativas e a homenagem de figuras que representam o colonialismo e a supremacia branca. Não é por acaso que a História ensinada em nossas escolas ainda é bastante eurocêntrica. Além disso, é sintomático que nossas cidades homenageiem bandeirantes como Borba Gato, um dos maiores escravizadores de grupos indígenas no período colonial; assim como o Barão de Cotegipe, senador do Império que foi contrário à abolição da escravidão, e até Duque de Caxias, líder político e militar que sufocou inúmeras revoltas populares e negras no Brasil Imperial.
Indo mais fundo por este caminho, basta uma visita histórica a alguma fazenda de café oitocentista, na região do Vale do Paraíba, para se perceber a memória da opulência e da riqueza que é construída e trabalhada em torno dos grandes “Barões do Café” e o extenso patrimônio que eles legaram para a localidade e, quiçá, para a nação brasileira. Detalhes à parte: nenhuma palavra é dita sobre o papel desses “grandes homens” no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, como o Comendador Joaquim José de Souza Breves, e muito menos sobre quem trabalhou e se sacrificou para produzir todo aquele fausto evocado na visita “turística”.
Embora, muitas vezes, reconstruir nossas trajetórias familiares seja uma batalha vencida pelos silêncios impostos, existem maneiras de imaginar como eram as peças perdidas daquele quebra-cabeças. Apesar dos custos físicos e psicológicos da violência do cativeiro, africanos e seus descendentes tentaram, de todas as formas, recriar suas vidas deste lado do Atlântico. Parte importante dessa reinvenção foi o parentesco. A construção de uma família foi uma realidade possível e os escravizados lutaram, com o máximo de recursos à disposição, para mantê-la unida. Ainda é preciso que se diga que o parentesco ia muito além da ideia de “família tradicional” que temos. Isso porque a “família negra” juntava também avós, tios, padrinhos, madrinhas, malungos, confrades de irmandades religiosas e irmãos de terreiro. É impossível falar sobre resistência do povo negro sem falar nesses laços construídos desde o cativeiro. Os historiadores, por isso, têm coletado diversas dessas histórias. Se os senhores brancos ganharam as maiores batalhas, nem tudo saía exatamente como eles planejavam.
E, nos dias de hoje, a batalha ainda continua. Os movimentos negros são uma das peças-chave na disputa de narrativas contra o silenciamento das mazelas da escravidão e de seu cruel legado: o racismo. São eles que desequilibram o jogo de forças e convocam à luta antirracista. Tanto no Brasil quanto no mundo, o ativismo é a “liga” do quebra-cabeças, a memória negra da resistência que confronta o silêncio, que desmistifica a história única dos homens brancos vencedores. É exatamente a força dessa memória que emerge no espaço público, que comemora o dia 20 de Novembro e que aprova as leis antirracistas da educação básica, forçando o Estado a reconhecer o ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” no Brasil. Se o filho do senhor de engenho aprendia história e cultura europeia, agora os filhos da empregada doméstica acessam a escola e aprendem sobre a história de luta dos seus antepassados. Diálogo dos tempos, diálogo de memórias, diálogo de gerações.
Portanto, quando estivermos diante do silêncio sobre nossas trajetórias e nos perguntarmos “quem somos nós?”, lembremos que somos descendentes daquelas pessoas que não sucumbiram ao desterro, à travessia letal do Atlântico, e daquelas pessoas que, por não permitirem que se destruíssem completamente suas expectativas e anseios, formaram famílias e comunidades. Essas são as narrativas que completam o quebra-cabeças, destroem o eurocentrismo nas escolas, e derrubam estátuas.
Vitor Hugo Monteiro Franco é doutorando em História pela UFF, integrante da Rede de Historiadxres Negrxs e do Podcast Atlântico Negro, autor do livro “Escravos da Religião: família e comunidade na Fazenda São Bento de Iguassú (Recôncavo do Rio de Janeiro, século XIX)”, publicado pela Appris Editora em 2021.
Felipe de Melo Alvarenga é doutorando em História pela UFF, integrante da Rede de Historiadxres Negrxs e do Podcast Atlântico Negro, autor do livro “De Terras Indígenas à Princesa da Serra Fluminense: o processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (Província do Rio de Janeiro, Século XIX)”, publicado pela Paco Editorial em 2019.