Leonardo Sakamoto
Fonte: Blog do Sakamoto
Data original da publicação: 23/08/2013
Se considerarmos que a condição dos médicos cubanos que estão sendo trazidos ao Brasil é de trabalho escravo contemporâneo, como querem fazer crer alguns contrários ao programa Mais Médicos, também teremos que incluir nessa conta milhões de trabalhadores do agronegócio, da construção civil, dos serviços que recebem salários abaixo do piso ou do mercado. O governo cubano deve receber os recursos das bolsas de R$ 10 mil e repassar parte delas aos seus médicos no Brasil.
Renato Bignami, responsável pela fiscalização de casos de escravidão em São Paulo, analisa que, a princípio, os elementos do novo programa do governo federal não caracterizam trabalho análogo ao de escravo. Se considerarmos que configuram a priori, parte do trabalho no Brasil seria escravo. Ou seja, um desconhecimento do artigo 149 do Código Penal, que trata do tema, e da jurisprudência em torno dele.
E os fiscais do trabalho já viram muita gente, inclusive escravos envolvidos em processos do próprio governo federal, como na produção de coletes para recenseadores do IBGE, em obras do Minha Casa, Minha Vida, do Programa de Aceleração do Crescimento, do Luz para Todos…
Ganhar pouco ou mesmo estar em condições precárias de trabalho são coisas diferentes de trabalho escravo. Estampar algo como “trabalho escravo” pode ser útil para dar notoriedade a um argumento, uma vez que é um tema grave e que gera repulsa por parte da sociedade. Mas, por isso mesmo, deve-se tomar muito cuidado ao divulgá-lo, que é o que os jornalistas que cobrem o tema tentam fazer o tempo todo. Saibam que muita coisa fica de fora porque não se sustenta.
De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
Não espero que o corporativismo tacanho de alguns representantes de associações médicas entendam isso. Mas o cidadão comum, sim, precisa compreender a diferença.
Uma coisa é a política pública em si, de levar médicos estrangeiros ao interior do Brasil em áreas carentes, que – a meu ver – está correta. Outra é deixar de garantir direitos a grupos de trabalhadores, nacionais ou estrangeiros, o que não pode ser aceito.
Se a lei que sair do Congresso Nacional sobre essa política pública, oriunda da análise da medida provisória encaminhada pelo governo, retirar direitos, ela será inconstitucional. Pois mesmo se o regime de trabalho proposto pela MP for excepcional, ele precisa obedecer à Constituição. Caso contrário, vai naufragar. Simples assim.
Essa adaptação vai acabar ocorrendo via controle de constitucionalidade abstrata, pela Procuradoria Geral da República ou pela Procuradoria Geral do Trabalho, ou via milhares de ações individuais por parte dos próprios médicos envolvidos.
Ao mesmo tempo, é fundamental que o Ministério Público do Trabalho monitore qualquer irregularidade que prejudique o trabalhador, fazendo com que o governo respeite a Constituição Federal (principalmente o artigo 7º, que versa sobre os direitos dos trabalhadores), as convenções da Organização Internacional do Trabalho e os tratados de direitos humanos dos quais o país é signatário. Prevenir é melhor que remediar.
“Acho difícil acreditar que a Organização Pan-Americana de Saúde validaria uma experiência com mão de obra escrava”, pondera José Guerra, secretário-executivo da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, vinculado à Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, lembrando que a vinda de médicos tem a parceira da Opas.
Marcus Barberino, juiz do trabalho da 15ª Região e um dos maiores especialistas jurídicos em trabalho escravo contemporâneo, concorda que não é possível afirmar que o programa incorre em escravidão contemporânea. E que é preciso ter muito cuidado com o conceito. “A proteção contra tratamentos discriminatórios ao trabalho é de âmbito constitucional e não permite tratamento distinto quanto aos direitos fundamentais. Fora da moldura constitucional, todo programa público será revisto pelo Judiciário naquilo que confrontar com a Constituição, que corresponde ao piso civilizatório universal”, afirma.
Como já disse aqui, a gente perde os cabelos, há anos, tentando fazer a bancada ruralista no Congresso Nacional entender que trabalho escravo contemporâneo não é qualquer coisa, como falta de azulejo no banheiro ou salário baixo, mas um pacote de condições que configura uma gravíssima violação aos direitos humanos. E, de repente, pessoas que desconhecem o tema usam-no em proveito próprio.
Como disse um médico amigo meu que conhece bem a fronteira agrícola amazônica e lá trabalhou: se esse povo todo que fala essas groselhas conhecesse o que é trabalho escravo de verdade ou, pelo menos, a realidade dos trabalhadores rurais do interior do país, não teria coragem de fazer esse paralelo absurdo.
Acima de tudo, isso é falta de contato com a realidade e de respeito com quem realmente está nessas condições e precisa ser resgatado para ter sua liberdade ou dignidade de volta.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.