“Estou fazendo um pé de meia para quando ficar doente.” A declaração é de uma médica que está na linha de frente do combate à covid-19 em uma unidade de saúde em São Paulo, mas não possui vínculo empregatício, recebendo por plantão através de sua empresa individual. Sabe que quando adoecer, estará por conta própria.
Outro médico que foi infectado pelo coronavírus no hospital em que atendia regularmente foi para casa sem suporte algum. “Ninguém reclama por medo de não conseguir trabalho depois”, afirma.
“Não quero aplausos, nem homenagens por estar trabalhando contra a covid. Gostaria de reconhecimento de direitos”, afirma uma terceira, que atua como socorrista e está nas mesmas condições.
“Muitos médicos que prestam serviço como pessoa jurídica estão jogados à própria sorte ao serem infectados pela covid”, explica Victor Dourado, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp).
Parte dos profissionais que atuam nas unidades de saúde e não são celetistas, nem concursados é contratada por intermédio de pessoas jurídicas – como empresas individuais. Isso não é necessariamente irregular. A questão é que há casos em que isso encobre uma relação de vínculo empregatício sob a justificativa de que é uma prestação de serviços eventual e sem subordinação, quando não é.
E o vínculo garantiria seguridade social, com remuneração em caso de afastamento por doença – que, neste caso, é acidente de trabalho. Seja dos que contam com horário fixo, seja dos plantonistas frequentes.
A alta taxa de contaminação de profissionais de saúde durante a pandemia e o consequente afastamento sem apoio financeiro ou médico daqueles que são “PJ” agravou essa situação. Como médicos fazem parte de uma categoria altamente especializada, e não raro, elitizada, isso não é discutido. Mas nem todos estão em condições para bancar um longo afastamento por conta própria.
“É um problema que se arrasta há vários anos. A questão da forma de contratação no setor de saúde, com o não reconhecimento do vinculo empregatício, parece ter se tornado cultural. As fraudes nas instituições de saúde são bastante comuns”, explicou à coluna o procurador João Filipe Sabino, que atua na Divisão de Fraude da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região.
“O empregado acaba não tendo o reconhecimento de todos os seus direitos e, a qualquer momento, pode perder sua vaga. É afastado por covid e pode ter alguém que ocupe seu plantão”, afirma Sabino.
Isso é reforçado pelo presidente do Simesp: “nos hospitais de campanha, médicos são tirados da escala quando adoecem e depois não têm garantia de trabalho quando voltam”.
Dispensa por reclamações de falta de máscaras
De acordo com Victor Dourado, como não há vínculos formais e os médicos são tratados como empresas, os profissionais que se indispõem com a chefia podem ser mandados mais facilmente embora. Por conta disso, o assédio moral, segundo ele, aumentou consideravelmente durante a pandemia.
“Há médicos que reclamaram da falta de EPI [equipamentos de proteção individual, como máscaras e luvas] no plantão e foram convidados a nunca mais voltar. Outros pediram mais recursos humanos e materiais e pararam de serem chamados para prestar serviço”, explica.
Ele compara o processo de precarização à “uberização”, ressalvando a evidente diferença de remuneração e condições de trabalho entre médicos e entregadores e motoristas. “O bloqueio do aplicativo tem a mesma lógica do bloqueio do plantão”, diz.
A precarização na relação trabalhista entre médicos e entidades privadas, organizações sociais e órgãos públicos teria se intensificado após a Reforma Trabalhista, do governo Michel Temer, em 2017.
O presidente do Simesp afirma que, antes da pandemia, isso era sentido mais fortemente por médicas. “Para além da disparidade salarial na medicina entre homens e mulheres, elas ainda sofrem com a licença maternidade, uma vez que não contam com nenhum tipo de proteção de vínculo empregatício que permita o afastamento remunerado”, diz Dourado.
A escolha de pessoas jurídicas na linha de frente do combate ao coronavírus, na sua avaliação, ajuda a proteger empresas médicas e governos, para que não precisem arcar com os custos trabalhistas dos afastamentos e de mortes. “Nos hospitais de campanha, médicos são tirados da escala quando adoecem e depois não têm garantia de trabalho quando voltam”, afirma.
O procurador João Filipe Sabino destaca também que a administração de algumas unidades de saúde públicas foi terceirizada para organizações sociais, que também não garantem direitos aos médicos caso tenham que se afastar após contrair covid.
Ou seja, o poder público transfere a responsabilidade pela saúde dos médicos para as OSs, que a transferem para os próprios trabalhadores da saúde.
Ele afirma que o Ministério Público do Trabalho recebe, em seu site, denúncias individuais ou coletivas para investigar fraudes trabalhistas envolvendo profissionais de saúde. E garante sigilo aos envolvidos.
Fonte: UOL
Texto: Leonardo Sakamoto
Data original da publicação: 23/07/2020