Governo dos EUA segue política diametralmente oposta à do Brasil no tema.
Cássio Casagrande
Fonte: Jota
Data original da publicação: 08/11/2021
Na semana em que o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, editou portaria “proibindo” empresas privadas de despedir empregados por recusa à vacinação, o governo Joe Biden anunciou medida diametralmente oposta.
A Casa Branca editou uma ordem executiva determinando que todas as empresas privadas dos EUA com mais de cem empregados deverão exigir, a partir de janeiro, o atestado de vacinação completa dos trabalhadores, consistindo sua recusa em motivo para o encerramento do contrato de trabalho.
Curiosamente, ambas as decisões traduzem decisões políticas distintas em relação à prevenção da Covid-19, e aqui, como lá, enfrentam desafios judiciais de seus oponentes, em exemplo clássico de judicialização de políticas públicas. Quem está com a razão?
Nos EUA, o governo federal vem patrocinando medidas incisivas de vacinação compulsória, já tendo determinado que os servidores públicos federais devem apresentar atestados de imunização para exercer suas atividades e permanecer no emprego, com algumas poucas exceções. Desta vez, a decisão foi estabelecida por normativa (semelhante a uma portaria) do equivalente ao Ministério do Trabalho nos EUA, o Department of Labor, através de sua agência de saúde ocupacional, a Occupational Safety and Health Act Agency (OSHA). A medida foi vista até como branda, pois permite que ao invés do atestado de vacinação, os empregados apresentem periodicamente testes negativos de Covid e trabalhem com máscaras.
No entanto, essa política forte de vacinação compulsória do governo Biden acabou sendo “politizada” e determinados segmentos reacionários do Partido Republicano aderiram às campanhas “antivax”, o que levou à aprovação de algumas leis estaduais que proíbem os “vaccine mandates” por órgãos públicos estaduais e por empresas privadas sediadas nestes Estados dominados por conservadores do Grand Old Party. Como era de se imaginar – e como ocorre frequentemente nos EUA – a disputa política se transformou em uma disputa jurídico-federativa, sobre quem tem a competência constitucional para determinar ou proibir os mandados de vacinação.
Os governos republicanos dos estados da Louisiana, Texas, Mississippi, Carolina do Sul e Utah ajuizaram uma ação na semana passada, que teve a adesão como amicus curiae de alguns grupos de pressão conservadores, processando o governo federal, sob o argumento de que ele teria extrapolado sua autoridade, seja porque a medida não poderia ser imposta por uma portaria, seja porque a matéria seria da alçada dos governos estaduais.
Embora o juízo de primeiro grau da Justiça Federal tenha indeferido de plano uma medida liminar, houve recurso com pedido de urgência, e um painel de três juízes da Corte Federal de Apelações do Quinto Circuito acabou revertendo a decisão anterior, e suspendendo os efeitos da portaria do Department of Labor. Os estados republicanos “escolheram a dedo” o tribunal federal para judicializar o caso, pois o Quinto Circuito é considerado o mais conservador dos EUA, e os três juízes que integraram o “panel” (seção do tribunal) foram todos indicados por presidentes do Partido Republicano – o mais antigo deles por Ronald Reagan e os dois mais novos por Donald Trump. O governo federal, através de seu advogado-geral, prometeu seguir lutando pela constitucionalidade e legalidade da medida nos tribunais federais.
No Brasil, certamente não haverá o mesmo conflito federativo que se apresenta nos EUA. Enquanto lá estados e União detêm competência concorrente para legislar sobre direito do trabalho, por aqui a competência é exclusiva do governo federal. No entanto, a mesma questão sobre exação da autoridade do Poder Executivo se impõe no caso brasileiro, especialmente porque a Portaria 620/2021 foi editada a pretexto de “regulamentar” a Lei 9029/95, norma que proíbe práticas discriminatórias nas relações de trabalho.
Ocorre que a normativa do governo Bolsonaro malandramente acrescentou conduta discriminatória que não se encontra no texto da lei originária, fazendo com que o ato administrativo do Ministério do Trabalho exorbite do poder regulamentar ordinário e ganhe status de lei, o que é vedado pelo princípio da separação dos Poderes. A situação é diferente do caso americano, pois a lei que criou o órgão regulador de saúde ocupacional (Occcupational Safety Agency Act), delegou expressamente a essa agência a capacidade de expedir regulações em matéria de saúde e segurança do trabalho.
Embora os dados estatísticos estejam demonstrando que a vacinação compulsória (já chancelada, ademais, pelo STF na ADI 6586/DF) é a melhor medida para evitar a propagação do vírus e o aumento do número de óbitos decorrentes da Covid-19, as decisões em matérias de política pública por vezes estão sujeitas às paixões partidárias e a interesses mesquinhos, sobretudo em contextos de intensa polarização ideológica da sociedade, no Brasil e nos EUA. Pior ainda, decisões racionais que precisam ser adotadas com rapidez para se mostrarem eficazes na tarefa primordial de poupar vidas acabam enredadas nos complexos procedimentos judiciais de sistemas federativos e de freios e contrapesos. Como sempre, lá como cá, a judicialização da política pode ser boa ou ruim, dependendo dos interesses em disputa.
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Talvez alguns leitores tenham estranhado a expressão entre aspas que usei no título. A Covid criou situações novas em todos os domínios e, como consequência, impactou até no vocabulário, inclusive o jurídico, que precisa ser adaptado às novas realidades.
Nos Estados Unidos, tem se usado a expressão “vaccine mandates” para se referir a decisões governamentais (de escolas públicas, inclusive) que não só estabelecem uma política de vacinação compulsória como fixam sanções jurídicas concretas para o seu descumprimento, como proibição de frequentar aulas ou perda de emprego público, por exemplo.
O termo já entrou para o léxico do inglês jurídico, inclusive para os que combatem a política, já que, como vimos, alguns estados editaram leis proibindo os “vaccine mandates”. Embora aqui no Brasil estejamos usando preferencialmente a expressão “vacinação compulsória”, parece-me que a melhor tradução seria a de “mandados de vacinação”, que se refere a uma ordem específica de determinada autoridade e não a uma política pública de forma genérica.
Cassio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.