Mais do que “construir casinhas”, assegurar direito à moradia exige políticas públicas complexas. Algumas análises

Fotografia: Renato Araújo/Agência Brasília

Todos sabem que o Brasil vive um déficit habitacional histórico. No entanto, um dos problemas que parecem emperrar a solução para esse drama da falta de moradias passa justamente por compreender as complexidades do tema. Foram vários os governos, à esquerda e à direita, que parecem entender que construir mais e mais casas é a única forma possível de assegurar teto para todos os brasileiros. “A tendência é que ela resolva sempre na ideia de fazer num só programa que faz milhares de casinhas iguais, porque responde à demanda política, é mais visível, mas normalmente acaba não se adequando”, reitera João Sette Whitaker Ferreira, doutor em urbanismo.

Ele, juntamente com outros estudiosos, políticos e líderes sociais, participaram da I Jornada de Regularização Fundiária | Direito à Terra, Terra como Direito, promovida pela Prefeitura de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. E como forma de fomentar esse debate, sempre presente na pauta do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, conversamos via WhatsApp com alguns dos participantes da Jornada. A maioria dos entrevistados vai na perspectiva de que a regularização fundiária é central. Ou seja, antes de construir casas, é preciso garantir a posse para quem precisa das que já existem.

Ainda assim, essa regularização fundiária não dá conta da complexidade do problema da moradia. Isso ficou ainda mais claro recentemente, quando da experiência da pandemia. Muitas famílias que antes, mesmo sob condições precárias, conseguiam manter uma casa, hoje já não conseguem mais. “Emprego e renda são fundamentais para o acesso à moradia digna. Não basta ser emprego, tem que ser emprego com uma renda mínima que permita àquela pessoa ou àquela família acessar a moradia”, exemplifica a arquiteta e urbanista Camila D’Ottaviano, que também participará da Jornada.

Na leitura dos depoimentos, outros painelistas amplificam esses pontos e trazem outros para que realmente se possa conceber uma política pública abrangente que dê conta desse direito básico à moradia previsto na Constituição Federal. O problema é que, no atual contexto, a concepção de tal política é ainda mais distante por causa dos desmontes nas poucas conquistas nessa área. “Hoje, buscamos muito mais dar conta das questões imediatas, de acompanhamentos através de monitoramentos”, aponta Ezequiel Moraes, militante pelo Direito à Cidade. “Não se compreendeu a importância que uma família tem quando há necessidade de assegurar um teto para morar. Além do aumento da pobreza, redução da capacidade de compra das pessoas e de garantir o pagamento de suas contas, houve um endividamento de famílias que já não tinham de onde tirar”, completa.

Confira as entrevistas.

Andreia Camillo Rodrigues é titular da Secretaria Municipal de Habitação do município de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul.

Andreia Camillo Rodrigues. Fotografia: Arquivo pessoal)

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Andreia Camillo Rodrigues – O cerne das lutas atuais está num formato de retrocesso. A principal luta de muitas comunidades hoje é não serem despejadas, enquanto outras que detêm a segurança jurídica lutam para obter infraestruturas básicas, além das comunidades que são dotadas de todos os serviços e lutam para obter a propriedade documental de seus imóveis.

O fim do Programa Minha Casa Minha Vida para Faixa 1 é a principal perda para as famílias de baixa renda. Este programa deveria ser uma política pública permanente. Somente com programa semelhante se atingirá em longo prazo o déficit habitacional no país.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Andreia Camillo Rodrigues – As pessoas que somam o déficit habitacional são famílias moradoras de áreas insalubres, coabitações e aluguéis, além das que residem de favor.

As ações mais importantes são na área de geração de trabalho e renda. Com o alto índice de desemprego e a inflação elevada, o grande desafio é as famílias terem condições de permanecer nos locais seguros. Por exemplo, uma família por vezes conquista uma habitação e se vê na necessidade de se desfazer dela por não conseguir arcar com os custos de água, luz, IPTU. Esta situação é muito comum nas periferias e faz com que as famílias ocupem áreas de risco com água e luz clandestinas.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Andreia Camillo Rodrigues – A pandemia trouxe mais déficit habitacional, principalmente no déficit qualitativo. As famílias que pagavam aluguel, ao se verem desempregadas, foram para ocupações irregulares ou para coabitações com familiares. Assim, as condições de moradia decaíram muito pela falta de trabalho e condições de pagar o aluguel.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Andreia Camillo Rodrigues – A Lei 13.465/2017 traz possibilidades reais de promover a regularização fundiária para famílias que residem em áreas sem conflitos jurídicos e dotadas de infraestruturas de forma simples e com custos mínimos. Nas áreas públicas, as famílias não precisam pagar nada se for seu único imóvel e a unidade habitacional for inferior a 70m². Nos casos contrários, o custo é simbólico. Este avanço na legislação destrava processos muito antigos que estão nos déficits.

Como não se tem recursos para implementação de infraestruturas macro, as localidades que precisam de alguma infraestrutura precisam se organizar para demandar aos poderes tais recursos. Este é um debate que vem ganhando força e, se a população compreender tal importância, os governos terão que disponibilizar recursos para atender esta demanda.


Aline Tortelli é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. É assessora jurídica da Procuradoria Geral do Município de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, especialmente com atuação nas áreas de direito urbanístico, habitação e cultura. Em São Leopoldo, compõe o Conselho Municipal de Habitação, o Conselho Municipal de Direitos Humanos, o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, a Comissão Temática Permanente Multidisciplinar – CTPM e o Conselho Municipal do Plano Diretor – COMPLAD.

Aline Tortelli. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Aline Tortelli – Quem melhor pode apontar qual é o cerne da luta são os movimentos sociais organizados, que têm importantíssimo papel no tensionamento do Estado para a implantação de políticas públicas. Assim, pelo que acompanho das suas manifestações, após anos de desmonte do Programa Minha Casa Minha Vida, a retomada de programas habitacionais pelo Governo Federal é um dos pontos importantes da luta atual.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Aline Tortelli – O déficit habitacional está diretamente relacionado à condição e vulnerabilidade socioeconômica das pessoas. Além das políticas habitacionais em si, a criação de empregos, de acesso à renda e qualificação educacional e profissional são indispensáveis para mudar essa realidade.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Aline Tortelli – A pandemia aprofundou ainda mais as desigualdades sociais e a fragilidade do sistema capitalista. A luta pela moradia digna é organizada e tem sua maior potência através dos movimentos sociais. Resta a estes, com o apoio de quem é aliado da luta, conseguir acessar e mobilizar a população para essa pauta.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Aline Tortelli – A regularização fundiária é uma importantíssima ferramenta na luta pela moradia, já que faz muito mais do que alcançar um título de propriedade ao beneficiado. Depois da Regularização Fundiária Urbana – Reurb, aquele núcleo passa a fazer parte da cidade formal, a ter o direito ao recebimento dos serviços públicos em sua integralidade e gera segurança habitacional para famílias, ou seja, dá acesso à dignidade e à cidadania.


Ezequiel Moraes é afro-indígena, militante pelo Direito à Cidade e ao acesso aos territórios. Também atua como membro da direção da Cooperativa 20 de Novembro, de Porto Alegre.

Ezequiel Moraes. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Ezequiel Moraes – O que se tem hoje, de luta pela conquista de moradia digna, é uma mudança do ponto de vista de tática. Nem diria de estratégia, porque esta está lá colocada, por isso é uma questão de tática.

Em função das dificuldades desses últimos quatro anos, lutamos contra as retiradas de instrumentos e ferramentas importantes que aproximavam a participação das organizações e dos lutadores por moradia do Estado, porque antes tínhamos um Estado que estava, de certa forma, organizado para a participação popular, o controle social. É obvio que era insuficiente, mas existia. Hoje, na realidade, esses elementos não existem mais.

Os movimentos populares e as organizações que lutam por moradia tiveram que se reinventar e, ao mesmo tempo, refazer esses seus movimentos táticos. Assim, hoje buscamos muito mais dar conta das questões imediatas, de acompanhamentos através de monitoramentos. Se começou a jogar muito em relação às questões institucionais, das burocracias jurídicas. Desde as relações entre Ministério Público e Defensoria pública, todos esses espaços passaram a fazer parte desse movimento tático das organizações para poder garantir algumas conquistas que haviam sido conquistadas ao longo de processos de lutas nas últimas décadas e que agora, nesse último período, começaram a ser dizimadas.

Uma coisa que é muito presente e evidente é a questão da luta pela manutenção de aparelhos jurídicos e institucionais para garantir os projetos de moradia, a continuidade de execução de obras, regularizações fundiárias que já estavam previstas no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e que não tinham sido concluídas. Isso tudo sem citar várias outras iniciativas populares que dependiam da parceria do Estado, como contrapartida de terras, a contrapartida da relação técnica. Por isso, creio que o que está no cerne das lutas hoje é tentar garantir o que se conquistou através dessas lutas mais jurídicas e institucionais.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Ezequiel Moraes – Uma das coisas que, na realidade, cada vez mais tem emergido no último tempo, do ponto de vista do déficit habitacional, é o fato de que havia um determinado período em que se tinha uma escalada em que se podia, minimamente, perceber relacionada ao fato de que as pessoas que faziam parte desse déficit eram pessoas em situação de rua, especialmente indivíduos. Porém, no último período, em função desse aumento da pobreza, esse perfil não é mais assim. Há um perfil de moradores de rua que agora é de grupos familiares.

São famílias que tinham uma capacidade econômica para dar conta de pagar um aluguel, e até escolher o lugar de moradia, mas que hoje não conseguem mais. Também houve movimento de famílias inteiras de locatários que tiveram de sair em busca de aluguéis mais baratos, tendo em vista que o mercado imobiliário acirrou a supervalorizações do que estava à disposição no mercado. Por outro lado, também há a dificuldade de acesso a programas, levando em conta que no último período se extinguiu o Minha Casa Minha Vida. Fazendo isso, acaba se deixando as pessoas sem condições de acesso à moradia. Primeiro, porque as famílias não têm mais recursos econômicos para buscarem um imóvel sem essa ajuda e, ao mesmo tempo, o Estado vai na contramão fazendo com que esse tipo de acesso – através de programas – também não exista.

Populações originárias

Tudo isso aprofunda a situação do número de famílias necessitando de moradia. Ainda podemos observar que, nesse último período, piorou também algo que já vinha acontecendo com relação às populações tradicionais, os ribeirinhos, indígenas no contexto urbano. Isso, aliás, evidencia que há sim uma realidade indígena na cidade que precisa ser considerada pela gestão pública que, na realidade, não os relaciona no déficit habitacional. É o caso, também, dos próprios quilombos que, desde que houve o começo de articulações, até hoje, se deparam com uma série de dificuldades para assegurar a posse da terra. Por isso, considero que temos um déficit radicalmente grande, cada vez aumentando mais.

Ações do poder público

Sobre a questão do poder púbico, a regularização fundiária, tanto do ponto de vista do território nas áreas horizontais como na verticalização nos grandes centros, ainda nos leva a deparar com os vazios urbanos. E esses vazios, na realidade, não são encarados no processo de busca por moradia. Muitas dessas áreas estão em disputa com ações de despejo, reintegrações de posse e o Estado fica se omitindo na perspectiva de trabalhar num projeto de reurbanização, de regularização da posse e garantia do direito à moradia. Isso é um desafio, mas que o Brasil tem que entrar e encarar. Há milhões de situações de irregularidade em nosso país que precisam ser encaradas a partir dessas iniciativas.

E são iniciativas que em muitos municípios deram passos à frente, mas que precisam ser mais trabalhadas. Vejo muito as instituições de educação terem parceria com os entes públicos para realização de investimento em áreas que fortalecem setores que já dominam o mercado imobiliário e não vejo essa iniciativa para setores que precisam ter a sua garantia. Os gestores públicos também devem fazer esse avanço para estreitar essa relação acadêmica com as universidades. Além disso, assim como há movimentos de prefeitos que acabam se agregando em associações para fazer discussões intermunicipais sobre planejamento, deveriam também provocar as universidades a pensar um processo de planejamento e regularização fundiária em outro patamar que respeite as relações culturais locais, conhecendo os territórios e procurando relações nesses territórios que também têm uma demanda imensa.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Ezequiel Moraes – A experiência da pandemia revelou que, nas regiões e nos lugares que havia maior inserção de organizações sociais e movimentos populares, a resposta de resistência e organização para poder dar conta da sobrevivência de famílias carentes teve uma maior presença. Municípios e o governo federal acabaram se retraindo numa série de serviços enquanto houve resposta desses movimentos sociais. É importante registrar que não tivemos só a questão da pandemia como um elemento problemático para a questão da moradia, mas que também houve descaso e omissão dos entes federados do Brasil em dar suporte ou resposta na garantia ao direito à moradia das famílias, principalmente durante esse período. Esse descaso foi escandaloso.

Não se compreendeu a importância que uma família tem quando há necessidade de assegurar um teto para morar. Além do aumento da pobreza, redução da capacidade de compra das pessoas e de garantir o pagamento de suas contas, houve um endividamento de famílias que já não tinham de onde tirar. Por isso, creio que, de certa forma, o Estado foi um dos principais responsáveis pelo aumento do número de famílias desabrigadas, que saem de um processo pandêmico mais duro sem ter um teto onde morar.

Parada de investimentos

Uma outra questão muito evidente também é a da parada de investimento, pelo governo federal, em obras que visavam garantir o direito à moradia e que já estavam em andamento. A grande maioria dessas obras estão judicializadas, sem resposta. Fora isso, outras iniciativas dos municípios acabaram entrando nesse jogo. Óbvio que há municípios em que deram uma resposta dentro de seus limites, alguns até com um aprendizado muito rápido.


Ana Affonso é vereadora do Município de São Leopoldo pelo PT. Professora, ainda foi deputada estadual do Rio Grande do Sul, presidenta da Câmara Municipal de Vereadores em 2021 e compõe a Comissão Permanente de Obras Públicas, Transporte e Habitação.

Ana Affonso. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Ana Affonso – As lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje ocorrem em razão do desequilíbrio da grande desigualdade social que ainda existe no nosso território. Quando falamos do direito à cidade, estamos falando de cada território. Ainda percebemos uma camada muito grande de pessoas que não está apenas prejudicada no acesso à moradia, mas prejudicada no acesso aos direitos básicos. Nesse sentido, toda a luta por acesso à moradia digna no Brasil é uma luta de resistência.

No período recente, pós-golpe, houve a retirada das políticas habitacionais, a extinção do Ministério das Cidades, do Programa Minha Casa Minha Vida para a faixa de pessoas que recebe de zero a três salários-mínimos, que é uma grande parcela da população brasileira: os mais pobres e desempregados. Em razão da ausência de políticas de moradia, percebemos também, com a crise econômica, o desemprego e a pandemia, o aumento do número de pessoas que deixaram suas moradias: pessoas que moravam de aluguel, moravam na cada dos pais, que ficaram desempregadas e não conseguem pagar a prestação da casa. A demanda por habitação aumentou muito.

A tarefa central hoje, quando se fala em luta por moradia no Brasil, é garantir o direito básico à moradia, garantido pela Constituição, ou seja, lutar para que haja investimento público para a produção habitacional, para financiamento. Garantir também um processo de organização das comunidades através de cooperativas habitacionais. Muitas ocupações se tornaram cooperativas habitacionais, mas ainda existe uma ausência de políticas públicas nesse sentido e isso é o que mais dificulta que tenhamos avanços nessa pauta.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Ana Affonso – Hoje, as pessoas que compõem o grande déficit habitacional no Brasil estão na população mais pobre, principalmente mulheres chefes de família, negros, desempregados, ou seja, os mais vulneráveis que estão excluídos das cidades e sobrevivem bravamente sem acesso aos direitos básicos, como acesso à água, energia, saneamento básico, saúde e educação.

Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, nós também precisamos construir uma realidade de justiça social no país. Outra ação que precisa ser empregada é fazer com que as políticas públicas cheguem nas ocupações, nas comunidades ocupantes. Temos realidades dramáticas de situações de violações de direitos humanos, de pessoas que vivem em ocupações e que relatam que não têm acesso a banho de chuveiro, não têm acesso à saúde pública porque não fazem parte dos cadastros que as unidades básicas de saúde delimitam aos municípios.

Tivemos uma enorme dificuldade de acesso à educação durante a pandemia por causa da falta de acesso às tecnologias. Além disso, a fome é um processo que se expande de forma gradativa, rápida, comprometendo toda a condição humana dos ocupantes de terras, sejam elas áreas públicas, municipais, estaduais ou privadas. Para além do debate do acesso de moradia, é preciso fazer um levantamento sobre questões prioritárias, como a defesa das crianças, adolescentes e idosos que moram em ocupações, a fim de garantir dignidade a eles.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Ana Affonso – A pandemia aprofundou os dramas e problemas sociais no país. Com ela, não só a população de baixa renda, mas também setores médios ficaram desempregados, perderam poder aquisitivo, poder de compra, diminuíram a capacidade de comprar alimentos e pagar as contas de energia elétrica. A pandemia deixou um legado de empobrecimento muito grande por causa da falta de políticas sociais e políticas de saúde.

Nós lutamos muito nesse período para manter o SUS de portas abertas, para ter acesso à vacina, que chegou atrasada e nos foi negada, para garantir alimentos. Nesse sentido, as redes solidárias foram experiências extraordinárias. Percebemos que os que têm pouco foram os que mais ajudaram os que nada têm. É perceptível a solidariedade e a capacidade de se solidarizar entre as camadas mais populares. É impressionante como esse processo é muito mais humanizado entre os pobres do que entre os ricos e os setores médios.

Por causa dos impactos gerados pela pandemia, mais pessoas se somaram à luta por moradia. Muitas pessoas saíram de seus locais e foram morar com parentes, em ocupações. O aumento da gasolina também tem sido um processo brutal e há um empobrecimento grande da classe trabalhadora. Também cresceu a informalidade. Pessoas que vivem de reciclagem estão em cooperativas que tentam buscar alternativas não formais. No campo do trabalho, há a ampliação da uberização e da terceirização, da exploração dos trabalhadores, que trabalham com uma carga horária indigna e com salários muito baixos. A experiência da pandemia aprofundou as desigualdades, aumentou a pobreza, impactou muito o tema da moradia e fez com que o segmento que hoje não tem acesso à moradia própria aumentasse consideravelmente.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Ana Affonso – Temos uma experiência em São Leopoldo que é uma esperança, embora não tenhamos uma política habitacional em nível nacional e nem sequer uma secretaria de habitação no Estado – que foi extinta. O que nos coube foi fazer com que o poder público deixasse de ser parte dos processos de reintegração de posse. Essa foi uma conquista muito grande da gestão popular que retomou o modelo de governo popular em 2016.

Houve muitas construções de diálogo junto ao poder judiciário. Havia muitos pedidos de reintegração de posse, onde o poder público era parte do processo, mas conseguimos, através das mesas de conciliação entre o poder judiciário, o poder público e os ocupantes, construir boas mediações e evitamos a reintegração de posse em quase todas as ocupações. Algumas dessas reintegrações foram transformadas em processos de avanço na pauta da moradia, em experiências novas, onde o poder público transformou algumas áreas em áreas de utilidade pública ou tem negociado com os proprietários de terras a partir de recursos do fundo municipal de habitação. O poder público, mesmo não tendo investimento federal, abriu lotes e forneceu água nas ocupações através do Serviço Municipal de Água e Esgotos de São Leopoldo – Semae, dialogou com a Rio Grande Energia – RGE, conseguiu fazer com que a energia chegasse às comunidades.

Os moradores construíram suas casas em forma de mutirão. Essas foram experiências interessantes vividas no último período, inclusive com participação da universidade, de missões que percorreram as ocupações e conseguiram, através dos relatórios finais, produzir avanços. Nós, embora não tenhamos processos de produção habitacional, tivemos algumas iniciativas importantes em algumas ocupações. A Reurb é uma experiência da Ocupação Justo, a Cerâmica Anita é outra experiência de construção de moradia através de mutirão.

A Ocupação Steigleder, a partir de uma luta de resistência no judiciário, com uma ordem de reintegração de posse de cinco anos atrás, avançou bastante. Se constituiu um galpão na ocupação, onde nasceu a Rede Solidária que conta com uma certa presença da Unisinos, através da área da assistência social. Recentemente, o prefeito de São Leopoldo decretou que uma área, que em parte é privada, fosse transformada em área de utilidade pública para que seja feita uma negociação com os proprietários. Nesse sentido, é importante destacar que estamos conseguindo avanços.

Destacaria ainda a pauta da regularização fundiária. Mesmo não havendo condições de produção habitacional nesse momento, nós avançamos na regularização fundiária e mais de dez mil famílias receberam escrituras de suas moradias através de um processo feito pela secretaria de habitação. A última experiência foi a entrega das escrituras das moradias, com as casas averbadas, em ocupações que se transformaram em cooperativas habitacionais. Elas receberam, além da casa, com recursos públicos, o calçamento, a tarifa social da água, o saneamento básico e a ligação do esgoto. Na cidade, temos experiências extraordinárias que têm feito com que a esperança resista, se fortaleça. Assim, continuamos lutando para termos novamente políticas de investimento em moradia em todo o Brasil em função do déficit habitacional imenso não só em São Leopoldo, mas em todo o Rio Grande do Sul e no país.


Camila D’Ottaviano é arquiteta e urbanista graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP, mestre em Estruturas Ambientais Urbanas e doutora em Habitat/Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP. É pesquisadora do Observatório das Metrópoles, onde coordena a pesquisa Direito à Cidade e Habitação. Também é diretora da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional-ANPUR.

Camila D’Ottaviano. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Camila D’Ottaviano – O acesso à moradia digna no Brasil não é de hoje, é uma questão histórica. Então, temos grandes mobilizações nas periferias, movimentos de moradia, movimentos sociais organizados a partir dos anos 1970 e nos anos 1980 de forma ainda mais articulada com o Movimento de Reforma Urbana, que se mantêm até hoje como uma frente importante de articulação dos movimentos sociais organizados. Essa frente participou ativamente da discussão da Constituição Federal de 1988 e depois da articulação pela aprovação do Estatuto da Cidade em 2001.

As grandes questões da moradia digna, hoje, são duas.

1) A primeira é a questão do acesso à terra: a terra é central no acesso à moradia digna, porque morar em um lugar onde não há infraestrutura, transporte, escola, creche e emprego — tudo isso faz parte da ideia de moradia digna, não é apenas ter um lugar para dormir, um quarto ou uma cama onde possa se deitar. A ideia de moradia digna inclui tudo o que viver numa área urbana pode oferecer, que são serviços públicos e todos os tipos de infraestrutura possível. A professora Ermínia Maricato tem um texto e uma fala seminal que é “a terra é um nó”, então a questão do acesso à terra é central. E, por isso, é tão importante a discussão e o seminário que está debatendo as possibilidades de regularização fundiária.

2) A segunda questão é a da renda: uma das coisas que vem sendo discutida pelo pessoal da sociologia e da economia desde os anos 1970 é a questão de que a moradia nunca coube no que é a conta do salário-mínimo. Portanto, qual o grande problema do acesso à moradia digna? A falta de renda. Se o salário da população operária e de baixa renda fosse um salário digno e adequado, ela conseguiria acessar a moradia de forma digna.

São duas questões centrais: o acesso à terra e a questão da renda.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Camila D’Ottaviano – Quanto ao déficit habitacional, a principal responsável pelo seu cálculo é a Fundação João Pinheiro, sediada em Belo Horizonte – MG, que tem produzido historicamente estes dados. Nestes últimos tempos, a Fundação Getúlio Vargas – FGV produziu um outro cálculo de déficit, mas para políticas públicas seguimos usando o cálculo feito pela Fundação João Pinheiro porque eles têm uma série histórica e uma discussão de metodologia. Isso é só um preâmbulo para dizer: as famílias que compõem o déficit habitacional são as de baixa renda. Mais de 90% das que compõem o déficit habitacional são famílias com renda de até três salários-mínimos. Ou seja, famílias de baixa renda, que não conseguem acessar a moradia, a terra bem localizada e não tem acesso aos serviços públicos.

Quando você pergunta quais as outras políticas públicas, além de uma política de moradia e de regularização fundiária para o acesso à moradia digna, é justamente a questão da renda. Emprego e renda são fundamentais para o acesso à moradia digna. Não basta ser emprego, tem que ser emprego com uma renda mínima que permita àquela pessoa ou àquela família acessar a moradia.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Camila D’Ottaviano – Com relação à pandemia, ela deixou clara uma relação de desigualdade social e de acesso precário à habitação, mas também gerou perda de emprego e renda. Portanto, o que está muito claro hoje é o aumento de moradores de rua. Sempre tivemos, nas grandes cidades brasileiras, uma concentração de moradores de rua, sobretudo nas áreas centrais, mas nesses últimos dois anos isso aumentou demais.

O importante para pensarmos é que isso não é reflexo apenas da pandemia, mas também da crise econômica, da queda do número de empregos. Isto é, no momento estamos vivendo uma série de crises políticas, uma atrás da outra, encadeadas, produzidas pelo próprio governo federal. Mas nós também temos um governo federal que de fato não tem nenhuma política econômica, nenhuma política de emprego e nenhuma política de renda. Então, isso tudo está se refletindo na precariedade do acesso à moradia, no aumento da desigualdade, mas também no que é mais visível quando andamos pelas cidades, que é o aumento do número de moradores de rua. As pessoas vão morar na rua porque elas realmente não têm outra opção, obviamente que esta não é uma escolha.

Eu estou falando de São Paulo, onde há uma região que todos conhecem — Minhocão —, na área central da cidade, onde há uma via elevada, e embaixo dessa via está impressionante, porque ela está completamente ocupada — a área de calçada da via elevada, entre os pilares — por barracas e moradores sem teto. Isso não existia mais, fazia muito tempo que não víamos isso. Caminhando e passando por baixo do Minhocão, vemos entre 40 e 50 barracas montadas, coisa do último ano. Isso está muito gritante e visível, mas não é reflexo apenas da pandemia.


Gilberto Aguiar, o Beto, como é conhecido, foi torneiro mecânico por 25 anos. Militante Urbano há mais de quatro décadas, foi o primeiro Conselheiro do Orçamento Participativo do Prefeito do Município de Porto Alegre, na gestão de Olívio Dutra, representando a Região Restinga. Foi Dirigente Nacional do Movimento Nacional de Luta pela Moradia em 2005, sendo indicado ao Ministério das Cidades para ser conselheiro, função que exerceu até a extinção deste em 2019. Atualmente é Dirigente Nacional do Movimento Nacional de Luta pela Moradia.

Gilberto Aguiar. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Beto – O centro da problemática da moradia no Brasil se concentra na história do país, quer dizer, na história da distribuição de terras no nosso país. Essa situação remonta ao Brasil Colônia e às capitanias hereditárias, quando se dividia a terra a partir dos amigos do rei, à história de Lei de Terras, que tinha como objetivo impedir os negros libertos de terem acesso à terra, e à história de hoje, de um país essencialmente urbano, onde 82% da população reside no meio urbano, em apenas de 1% do território nacional.

Nesse sentido, o centro da problemática da moradia no Brasil é a concentração territorial, é a realidade do processo de urbanização galopante que foi realizado a partir de 1940, que retirou do campo 82% da população brasileira para colocá-la em menos de 1% do território nacional. Algo em torno de 140 milhões de pessoas residem em apenas 0,86% do território. Alinhada à concentração econômica e à concentração social está a concentração territorial. Ou seja, a incapacidade de a população ter acesso a uma dignidade no viver; sem falar na qualidade da moradia ou no direito digno à moradia.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Gilberto Aguiar – Segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional em 2019 se concentrava em 5,7 milhões de famílias. Destas, em torno de 81% são famílias com uma renda salarial com menos de três salários-mínimos: 35% de zero a um, 33% de um a dois, e 17% de dois a três salários-mínimos.

Outro universo é o da irregularidade fundiária no Brasil. Segundo dados, 50% dos imóveis no país são irregulares, totalizando em torno de 28 milhões de famílias que residem neles. Se formos multiplicar o universo da irregularidade e o universo do déficit habitacional pela composição familiar de quatro pessoas, vamos ver que mais da metade da população ou reside irregularmente ou enfrenta o déficit habitacional.

Nós produzimos uma legislação, desde a Constituição de 1988, com os artigos 181 e 182, que trata da política de desenvolvimento urbano no país. Lá já estão apontados os caminhos para resolver essa questão. Quando conseguimos escrever na Constituição que a propriedade e a cidade precisam cumprir uma função social, regulamentamos essa questão no Estatuto da Cidade e, a partir daí, construímos instrumentos e legislações que apontam métodos e formas de como implementar a solução desses emblemáticos problemas. No Estatuto há alternativas concretas que temos para solucionar essa questão.

Não é justo que mais de 5,7 milhões de famílias vivam sem acesso à moradia e, ao mesmo tempo, exista um universo quase igual de prédios e apartamentos vazios nas cidades. Não vemos, no conjunto dos municípios e dos planos diretores, a implementação do IPTU progressivo. Se tivéssemos instrumentos claros por parte dos municípios, que regulassem a questão da terra e da cidade, não teríamos tantos problemas como temos visualizado. Então, as soluções já estão regulamentadas do ponto de vista legal e institucional. Os problemas são outros: é que a grande maioria dos prefeitos, vereadores e parlamentares não incorpora esses instrumentos. Nem os juízes incorporam esses instrumentos legais no próprio direito na hora de definir uma questão relativa à regularização fundiária.

Outro elemento está relacionado ao público que hoje enfrenta o déficit habitacional. Isso tem a ver com as tentativas de resposta que eu dei em todas as questões. Basicamente, o povo pobre e sem direito à moradia ou é mulher, mãe solo, ou é negro. Temos que compreender essa realidade estrutural que perpassa o déficit habitacional e o direito ao território. Isso mostra a estrutura patriarcal e racial do país, que tem que ser levada em consideração.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Gilberto Aguiar – Particularmente, não acredito que a pandemia agudizou os dramas e problemas sociais. Ela desnudou, deixou mais nítido para a sociedade o que de fato a periferia vive há muito tempo do ponto de vista da sua realidade territorial, da falta e da carência de saneamento, da violência. As pessoas já moravam ali entre oito, nove, dez membros em uma mesma residência há muito tempo. Saíam com seus pés no esgoto, tinham dificuldade de acesso à água.

O empobrecimento da população brasileira tem a ver com a concentração de renda, com a priorização do sistema financeiro ao invés da priorização do desenvolvimento e do investimento público. Tem a ver com a PEC 95, que inviabilizou o investimento público no país durante 20 anos, com o fim do Ministério das Cidades, com o fim do Programa Minha Casa Minha Vida, com a privatização do saneamento na lógica de uma cidade muito mais voltada para o mercado imobiliário, o mercado do saneamento, da saúde, ao invés de potencializar essas demandas em uma cidade que inclua a todos e todas. Essa realidade vivenciada do ponto de vista do empobrecimento da população, conjugada com a pandemia, exacerbou e deixou mais clara a realidade do povo.

A luta desenvolvida em todo o país para evitar despejos durante a pandemia mostra essa realidade. Durante a pandemia, em torno de 332 mil famílias teriam recebido ordem de despejo no país, não fosse o adiamento dessas ordens. Mas se não tivéssemos uma pandemia, essas 332 mil famílias já teriam sido despejadas sem nenhuma ênfase nacional ou com uma ênfase localizada nos municípios porque é o prefeito que vai sofrer as consequências do despejo. É na porta do prefeito que o povo vai bater porque é a prefeitura que tem a responsabilidade de implementar políticas públicas de habitação.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Gilberto Aguiar – As palavras de ordem que gritamos partem do princípio de que a cidade não pode ser vista como uma mercadoria no sentido de que quem tem dinheiro pode usufruí-la, e quem não tem deve ficar escondido nas periferias. A cidade não pode ser somente para garantir os interesses dos grandes afortunados, das grandes empresas de transporte, saúde e educação. Ela tem que ser voltada para entender efetivamente a população.

Ao mesmo tempo, não acreditamos que será em uma sociedade marcada pelo capital que vamos construir a reforma urbana. Ou vamos construí-la em uma perspectiva em que a sociedade será socialmente justa ou ela não vai ocorrer. Só tem uma coisa que vai fazer com que a reforma ocorra, que é o que costumamos dizer: “só a luta a vida muda”. Ou seja, só a nossa pressão e organização diante do Estado vai nos permitir construir uma sociedade diferente da que temos visto desde o início da história do país. Enfrentar isso depende de muita mobilização e organização.

Não acreditamos que vamos convencer o grande capital imobiliário a abrir mão dos seus territórios de uma hora para a outra no sentido de que um dia ele se iluminará e verá que há pessoas passando fome e sem moradia. Por isso, a terra só terá a sua função garantida se for fruto das ocupações que foram realizadas no país.


Sandra Becker é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense – UFF, especialista em Política e Planejamento Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR. Ainda é coordenadora do Gabinete de ATHIS do CAU/RS que objetiva a promoção de ações na implantação da Lei Federal 11.888/2008 – ATHIS.

Sandra Becker. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Sandra Becker – Duas coisas centrais estão no cerne das lutas por moradia digna nos dias de hoje: o acesso à terra urbanizada e o financiamento para a construção da casa própria para a classe de baixa renda. Historicamente, essa população vem ocupando terras nas periferias e subúrbios das cidades, onde a terra é mais barata e não tem infraestrutura, em áreas que são destinadas à preservação ambiental ou são áreas de risco, inapropriadas para a urbanização.

Foram poucos os momentos, ao longo da história do Brasil, em que se destinou financiamento para a classe de baixa renda. O financiamento é descontínuo no país: as políticas são geradas e extinguidas; não há uma política contínua de financiamento e, portanto, as pessoas adquirem a moradia da forma que podem. Isso reflete no modo como as pessoas constroem suas casas, em etapas.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Sandra Becker – As pessoas que estão em situação de déficit habitacional são pessoas que recebem de zero a três salários-mínimos. Além de políticas de moradia e regularização fundiária, políticas de emprego e renda seriam a terceira grande maneira de enfrentar essa situação, especialmente neste momento, em que cresce o número de pessoas desempregadas e sem renda.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Sandra Becker – Considerando que muitos chefes de famílias perderam seus empregos e boa parte deles vivia de aluguel, durante a pandemia muitas famílias fizeram rearranjos em suas moradias: deixaram suas casas e foram morar com familiares ou até se transformaram em moradores de rua em razão da falta de renda para o pagamento dos aluguéis.

De modo geral, a questão da moradia como política habitacional tem que ser vista a partir da realidade da população. Nesse sentido, deveria haver uma diversidade de programas e políticas sobre o tema. Há uma tentativa de personalizar programas habitacionais e há uma necessidade de fazer isso em decorrência das diferentes circunstâncias em que as pessoas vivem em relação à moradia. Seria preciso também ter um olhar específico para a situação das pessoas para atender as demandas que apresentam em relação à moradia, contemplando também a situação dos moradores de rua.

Outro ponto importante é ter um olhar para a intersetorialidade entre as políticas públicas. Uma política não deveria ser vista de forma isolada, mas de forma que pudesse convergir com outras políticas, porque todas estão associadas. As políticas deveriam ser elaboradas de forma mais holística e não segregadas. No Conselho, estamos trabalhando a questão da assistência técnica, envolvendo outras políticas, como saúde e assistência social. Mas existe uma gama de possibilidades de enfrentamento dessa questão não só do acesso à moradia, mas de uma vida mais digna de forma geral. A tendência é haver cada vez mais pessoas fora do eixo de acesso a políticas públicas e uma vida mais digna.


André Albuquerque é advogado formado pela Pontifícia Universidade Católica do – PUC do Paraná. Em 1999, foi Presidente da Companhia de Habitação de Pinhais – COHAB – Paraná. Hoje, é presidente da empresa Terra Nova Regularizações Fundiárias e Diretor da empresa ReNascer Reassentamento e Desenvolvimento Humano.

André Albuquerque. Foto: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas pela moradia digna no Brasil de hoje?

André Albuquerque – É um problema que vem de décadas ou até de séculos no Brasil. A população de baixa renda nunca teve acesso a lotes regulares na escala do que ela necessita, isto é, acesso à terra urbanizada, porque a nossa legislação de aprovação de novos parcelamentos do solo inviabiliza o acesso dessa população. Um lote hoje em um município médio custa em torno de R$ 80 mil a R$ 100 mil. Há uma faixa da população, das pessoas que têm renda familiar de até cinco salários mínimos, que não tem acesso aos lotes, seja porque não podem pagar os incorporadores – as pessoas que loteiam cobram pelas áreas – e porque não tem acesso a financiamento, seja porque não tem dinheiro nem à vista nem a prazo, pois as análises de renda e exigências que as financeiras fazem deixam essas famílias fora do acesso ao crédito.

Quem atende a esta população, do ponto de vista de espaço urbano e não a lotes urbanizados é o mercado informal. São parceladores irregulares que invadem terras – muitas vezes terras frágeis do ponto de vista ambiental – e vendem esses lotes para a população. Como não há lotes urbanizados à disposição, ela acaba tendo que comprar esses lotes e pagar à vista, ou em poucas parcelas, valores de R$ 30 a R$ 35 mil, e acabam entrando nessas áreas e começam a consolidar e construir casas em área de risco, esperando em algum momento a oportunidade de regularização. Esses territórios se transformam em áreas de disputa fundiária, porque os proprietários entram com ações de reintegração de posse, mas como a população não tem para onde ir, ela assume o risco e aceita pagar esse preço.

Essa é um problema gerado pela população de baixa renda? Não, é um problema gerado pela sociedade e pelo nosso sistema de produção de espaço urbano, de lotes urbanizados que as prefeituras, em função da Lei 6766/1979, aumentaram as exigências de infraestrutura e pavimentação, de água, energia, saneamento. Tudo isso mais o custo do lote e do tempo que demora para aprovar um loteamento novo, mais o lucro, impostos e tudo mais, transforma o preço do lote em um valor mais alto do que a população de baixa renda pode pagar.

Eu tenho pregado e falado nas palestras que o mercado não tem que bater na informalidade, mas competir com a informalidade, tem que oferecer um produto que seja melhor que aquele oferecido pelo mercado informal. Não estou dizendo que não se deva combater a informalidade, mas estou dizendo que isso não vai resolver, pois isso só vai se resolver no momento que conseguirmos produzir – e é papel do mercado – condições adequadas de compra por esta população. A demanda é tão grande que não vai ser uma política de governo, por mais que isso ajude, que vai atender essa demanda que cresce a cada ano, tanto a de regularização quanto a de novos lotes. Tem que se atacar em duas frentes, na produção e regularização de espaço urbanizado, para esta população de maneira acessível; e não é só a questão de produção, mas, também, de financiamento.

Foco na classe média

Hoje, o sistema financeiro de habitação está voltado para a classe média ou classe média alta. Então, se eu quiser financiar um imóvel pelo sistema financeiro de habitação, eu posso financiar um imóvel de até 1 milhão e meio de reais, pagar em 30 anos, e se eu puder comprovar a renda, terei acesso a esse recurso. Mas, de onde vem esse recurso? Esse recurso que é utilizado pelo sistema financeiro de habitação é o dinheiro da poupança e do FGTS, que está disponível para os bancos financiarem os imóveis.

Então, o sistema toma os recursos que estão depositado pelos pobres, que são quem aplica na poupança e quem armazena dinheiro no FGTS — Fundo do Trabalhador, e entrega esse dinheiro para financiar lotes da classe média. Logo, é um sistema que precisa ser repensado, precisa ser modificado, porque não faz o mínimo sentido o pobre financiar o lote da classe média e classe média alta. O que deveria acontecer é o pobre financiar o sistema, usar o dinheiro da poupança e do FGTS para financiar lotes para essa faixa que precisa de crédito. Esse é um ponto importante que já responde quem são as pessoas que compõem o chamado déficit habitacional.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

André Albuquerque – São as pessoas que estão na faixa de até cinco salários de renda familiar. É preciso fazer uma revisão e criar lotes urbanizados para essa faixa — até já propusemos projetos de lei nos municípios em que trabalhamos, um deles até já foi aprovado, aquilo que chamamos de Lei do Urbanizador Social – para permitir que o lote custe aquilo que essa população pode comprar.

Para as faixas mais baixas, que são as Faixas 1 e 2 — entre um dois salários-mínimos de renda familiar —, precisa ter um subsídio para poder viabilizar essa aquisição e não empurrar essas pessoas para o mercado informal ou para as áreas de risco ou de preservação ambiental.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

André Albuquerque – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais. O empobrecimento da população em decorrência dessa experiência impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número de pessoas que lutam por esse direito.

A pandemia agravou esse problema na medida em que menos famílias têm condições de adquirir um lote regular e mais gente precisa do mercado informal para conquistar um espaço próximo da cidade, onde possa abrigar sua família. Com isso, é mais gente que vai buscar o mercado informal, as áreas de risco ou de preservação, causando um custo enorme para a sociedade em relação a isso. Então, o problema da pandemia realmente agudizou essa situação porque diminuiu a renda das famílias e aumentou essa faixa que não tem acesso a lotes regulares.

Para resolver essa situação é preciso repensar essa política de acesso à terra, na forma como produzimos os lotes regulares e, também, na forma como o sistema financeiro de habitação financia ou libera créditos para as famílias. É preciso repensar tudo isso, o sistema de garantias e como se estrutura um sistema voltado para atender essa população. Tem que ser algo que o sistema se sinta seguro para esse financiamento, porque o dinheiro que precisa para resolver essa demanda é tão grande que os governos não o têm; quem tem esse dinheiro é o mercado financeiro e ele está sempre disposto a financiar, desde que tenha segurança e retorno financeiro.

Portanto, precisamos criar um modelo que dê segurança para o mercado, que dê retorno financeiro justo, mas que possa ser atrativo também para que possamos produzir muito mais espaço urbano para atender a essa população e diminuir a expansão da informalidade.


João Sette Whitaker Ferreira é arquiteto-urbanista e economista, mestre em ciência política e doutor em urbanismo, professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP, pesquisador do LabHab-FAUUSP. Trabalha com a problemática urbana e habitacional no Brasil, e foi Secretário de Habitação do Município de São Paulo, na gestão de Fernando Haddad.

João Sette Whitaker Ferreira. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

João Sette Whitaker Ferreira – A resposta é a mais simples: a necessidade de moradia para a maioria da população. Mas essa afirmação é entrecortada por muitos outros fatores.

Um dos fatores pelo qual ela é entrecortada é que nem sempre a necessidade de moradia está associada à falta de moradia. Muitas vezes está associada, por exemplo, à falta de capacidade de pagar um aluguel. Então, a questão da moradia nesse caso está muito mais relativa a uma questão de emprego e de renda do que à questão da moradia em si. Uma grande parte dos movimentos de moradia é composta por pessoas que saíram do aluguel porque não conseguem mais pagá-lo.

Nesse ponto fica clara a existência de um problema, que é um problema de empobrecimento no Brasil que afeta a questão da moradia. Às vezes confundimos, achando que o problema da moradia será resolvido apenas produzindo novas casas, quando na verdade o que está no cerne é conseguir dar condições para as pessoas acessarem a moradia.

Também, no Brasil, por causa de muitas razões que não cabem explicar, o acesso à moradia é muitas vezes confundido com acesso à propriedade da moradia, porque seria uma garantia e uma segurança para as famílias mais pobres terem a propriedade da moradia. Mas, também, porque foi alimentada durante as décadas de 1970 e 1980 — na época do BNH —, a ideia da casa própria, porque era o modelo privatista que tinha sido adotado ao invés da locação social. Portanto, há uma série de aspectos que se misturam aí.

Também não existe no Brasil uma regulação pública do mercado privado de aluguéis para, por exemplo, fazer com que as cidades tenham ofertas de aluguéis baratos, subsidiados pelo Estado dentro do mercado privado, sem produzir novas moradias.

Como não tem nenhuma dessas políticas, recai sobre o Estado uma responsabilidade muito grande de produzir um volume de moradias muito alto para cobrir um déficit que é significativo. Então, isso não se resolve com seis a sete milhões de moradia da noite para o dia; precisaria de décadas para resolver isso. E sem uma conjunção de fatores, sem uma associação com políticas econômicas, de renda, de regulação de locação, de ocupação, de aluguel social e de aluguel em geral.

Além de outro elemento muito importante, que é o que está avançando no Brasil, que é o de não só produzir casas novas, mas fazer um esforço enorme de mudar a prioridade dos investimentos em infraestrutura, de tal forma que os bairros precários — de moradias consideradas muito precárias – possam ter as moradias reformadas, recuperadas e qualificadas enquanto moradias dignas. Isso diminuiria muito a pressão por políticas habitacionais, por moradias novas. Então, é uma priorização do investimento em infraestrutura e em melhoria habitacional nos bairros mais pobres do Brasil.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

João Sette Whitaker Ferreira – Na primeira pergunta eu já respondi um pouco da segunda. O cálculo do déficit habitacional é feito pela Fundação João Pinheiro. O cálculo considera a precariedade da casa em si, mas também outros fatores, como:

• O ônus excessivo de aluguel: famílias que não conseguem pagar seu aluguel e acabam ficando sem ter onde morar.

• A coabitação familiar: famílias de várias gerações que não têm para onde ir e acabam morando avós, filhos e netos na mesma casa.

• Densidade habitacional exagerada: casas muito pequenas. Vale lembrar que até mesmo o Minha Casa Minha Vida chega a fazer apartamentos de 38 metros quadrados para famílias de cinco pessoas, com dois quartos, o que é completamente inviável.

São esses os componentes todos do déficit, além, claro, de toda a população de rua, que não é, em geral, considerada, mas que precisa ser. Esse é o perfil do déficit habitacional.

Regularização fundiária

A regularização fundiária faz parte desse último ponto que abordei anteriormente. Isto é, permitir que os bairros que estão irregulares se tornem regulares e, portanto, possam entrar no mercado, — no sentido de que podem ser comprados ou vendidos, o que é um direito que as pessoas podem ter, mas também permitem que eles possam ser institucionalizados nas políticas. Isto é, a partir do momento que estão institucionalizados, a política pública pode chegar neles com mais facilidade e de maneira oficial. Além disso, isso implica na possibilidade, portanto, de se fazer a melhoria, pois quando é regularizado, abre-se a possibilidade de fazer rua, sarjeta, esgoto, tudo isso de maneira muito mais fácil.

Tem isso, além de políticas de locação social que precisam ser feitas, ou seja, unidades habitacionais públicas que são colocadas para alugar, mas a propriedade é do Estado. Regulação do aluguel significa regular o aluguel privado, os apartamentos que estão disponíveis para a locação, subsidiando para a redução dos preços dos imóveis mais simples para poder ter um patamar de aluguel mais baratos na cidade.

Políticas habitacionais complexas

A verdade é que precisa de uma diversidade de políticas porque os problemas habitacionais são muito diversos. Por exemplo: uma favela que está instalada há 50 anos em um lugar não tem nada a ver com um loteamento que está há cinco anos ou uma ocupação que está há três meses. Os graus de precariedade são diferentes, os riscos envolvidos podem ser diferentes e as políticas a serem realizadas têm que ser muito especificas, cada uma é uma.

Logo, tem que ter o tanto de políticas habitacionais quanto existem de problemas e situações diversas para serem resolvidos. É muito importante que a política habitacional faça isso, mas a tendência é que ela resolva sempre na ideia de fazer num só programa que faz milhares de casinhas iguais, porque responde à demanda política, é mais visível, mas normalmente acaba não se adequando. Vou dar um exemplo: O programa Minha Casa Minha Vida, do padrão que ele fazia no Norte, onde tem comunidades com tradição de vida ligada à cultura indígena e outras formas de construção e organização das casas no coletivo, precisa de políticas específicas para essa situação.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

João Sette Whitaker Ferreira – A questão da pandemia apenas evidenciou uma situação que existia e que se tornou mais clara. Se considerarmos que a Fundação João Pinheiro, há dez anos, no mínimo, fala que os condicionantes do déficit são coabitação familiar e adensamento exagerado numa casa, essas são exatamente as duas questões ligadas diretamente à questão de contaminação numa pandemia: muita gente morando junto em pouco espaço e avós morando junto com os netos — avós que são mais sensíveis e vulneráveis.

Então, dois elementos centrais para a proliferação do vírus da covid eram elementos estruturais da definição do déficit habitacional brasileiro. Se acrescentarmos a isso o fato de que o saneamento básico no Brasil é vergonhoso, é digno de países da África, enquanto somos a décima quinta economia do mundo, é inaceitável termos cidades com mais de um milhão de habitantes com 80% da população sem esgoto, ou mesmo Rio e São Paulo terem cerca de 40% do seu esgoto sem tratamento; é muito significativo. A pandemia também é uma questão de higiene, de acesso à água e de condições de salubridade e este é outro problema.

Outro problema que a pandemia revela é o transporte coletivo muito cheio e muito demorado. E temos sistemas de transporte precários, que fazem as pessoas ficarem horas a fio num ônibus apertado e lotado — outro elemento que se agravou na pandemia.

E, por fim, quem é mais pobre, pois quem não tem casa não pode fazer o home office porque não tem o “home”, e às vezes não tem trabalho ou tem um trabalho que não permite ficar em casa. É o caso da construção civil, que nunca parou e nem permitiu que ninguém parasse durante a pandemia. Ou, então, as pessoas que dependem do seu trabalho para a sobrevida, como os entregadores e vendedores informais. Todas essas pessoas tiveram que continuar trabalhando. Assim, vemos que a pandemia exacerbou as condições muito precárias e de muito risco, que na verdade eram condições já existentes, mas que se tornam de altíssima vulnerabilidade quando chega um drama como esse.


Marilene Maia é assistente social e professora do curso de Serviço Social da Unisinos. Coordenadora do Observatório da realidade e das políticas públicas do Vale do Rio dos Sinos, o Observasinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Ainda é participante da Rede Solidária São Léo e comprometida com estudos e trabalhos afirmadores da democracia, da garantia de direitos e das políticas públicas.

Marilene Maia. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Marilene Maia – Temos uma realidade de desigualdades econômicas, políticas, educacionais e de acesso aos direitos também de forma desigual. E esse direito humano, direito social de acesso à moradia, que foi inclusive reconhecido tardiamente na Constituição Federal, acaba sendo colocado, pelo dinamismo e estrutura social hegemônica no país e no mundo, cada vez mais com a moradia como mercadoria e não como um direito. E isso apesar de estar reconhecida como um direito social. Assim, nessa condição de desigualdade que vive a população, uma parcela enorme não tem acesso às garantias de vida digna, entre elas a garantia da moradia. Além disso, o empobrecimento recente e crescente vai determinando que a população vá se colocando ainda mais distante desse direito.

IHU – Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Marilene Maia – Observamos que, por exemplo, o déficit habitacional em São Leopoldo, que atinge mais de dez mil famílias, é uma das expressões de uma realidade completamente adversa. Então, essa população, além de não ter acesso à moradia, não tem também acesso aos outros direitos fundamentais e, com isso, às condições de dignidade necessárias para viver e conviver. A não garantia da moradia, que significa a casa, água, luz, saneamento, acesso à educação, à saúde, também o acesso ao trabalho, à renda e que ainda significa acesso à cultura, lazer, tudo isso vai ficando distante. Por isso, pensar a regularização fundiária é pensar a vida na sua condição de garantias para o desenvolvimento integral das pessoas, reconhecendo as condições e as perspectivas dessas pessoas.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Marilene Maia – Em relação à pandemia, penso que ela oportunizou o desvelamento de uma realidade de ineficiência desse estado em relação às políticas públicas e garantias de vida da população que vive em situação de vulnerabilidade social. Ficou evidente, por exemplo, que o acesso ao direto à educação já está violado há muito mais tempo, tanto é que encontramos, nas comunidades, moradores de ocupação, crianças com 10, 12, 14, 16 anos que não sabem ler e nem escrever. Isso significa que muito antes da pandemia já estavam com esse direito violado. Penso que, sim, houve uma agudização de todas as dimensões da vida que necessitariam ser garantidas, assim como provocou uma exigência maior da presença do Estado para a garantia dessas políticas.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Marilene Maia – Pensar a regularização fundiária para toda a população que dela necessita é pensar uma construção de cidade onde convivem as diversidades e, também, as desigualdades. E, aí, a exigência da regularização fundiária vai colocar em xeque os determinantes das desigualdades. E para isso, a arena está posta e a mediação do Estado é extremamente importante, no sentido de garantir que a disputa nesta arena seja em defesa, em especial, da população e dos cidadãos que não têm seus direitos fundamentais garantidos. Esse é um balizador fundamental para que tenhamos êxito nos processos. Do contrário, a regularização fundiária vai, talvez, maquiar uma realidade que vai continuar sendo desigual e não garantidora de uma moradia digna para toda a população.


Álvaro Pedrotti é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e Diretor de Regularização Fundiária na Secretaria Municipal de Habitação de São Leopoldo.

Álvaro Pedrotti. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Álvaro Pedrotti – A luta para superar a desigualdade. A moradia é um direito constitucional e o trabalhador brasileiro não consegue alcançá-lo somente com o seu salário. Quem constrói a casa não tem direito à moradia digna.

Segundo a Fundação João Pinheiro, maior referência nacional no estudo do déficit habitacional, no seu Relatório do Déficit Habitacional 2016-2019, página 87, em 2018 eram 5.868.000 de unidades do déficit, sendo 3.045.000 por ônus excessivo do aluguel, 1.423.000 por habitação precária e 1.400.000 por coabitação. 88% destas famílias tem renda de até três salários-mínimos.

Sem uma política de subsídio direto, linha mestre do Programa Minha Casa Minha Vida, a situação só tende a se agravar.

E lembre-se que em janeiro de 2019 o Ministério das Cidades foi extinto.

IHU – Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Álvaro Pedrotti – Voltar a ter o Ministério das Cidades, retomando os programas existentes que priorizavam atender famílias com renda de até três salários-mínimos mantendo, ou atualizando pontualmente, a Legislação de Regularização Fundiária da Lei Federal 13.465/2017 e do Decreto 9.310/2018.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Álvaro Pedrotti – O período é de resistência. Um importante marco conquistado no início da pandemia foi a aprovação da Legislação do Despejo Zero. Sem isto, o empobrecimento dos mais vulneráveis poderia ter sido maior do que constatamos no dia a dia das cidades.

Políticas que visam impulsionar a retomada do crescimento econômico e do combate à desigualdade deverão contribuir para desenvolver novos projetos de inclusão urbana e de construção de moradia para os que mais precisam.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Álvaro Pedrotti – Este país é enorme. Precisa de uma política de Estado perene que garanta moradia digna e subsidiada para quem não tem renda para comprar, com projetos que respeitem a diversidade econômica, cultural, climática e social.


Vanêsca Buzelato Prestes é doutora em Formas de Evolução do Direito pela Università Del Salento da Itália, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, especialista em Direito Municipal pela ESDM/Ritter dos Reis. Ainda é procuradora aposentada do município de Porto Alegre e atuou por mais de 30 anos nas áreas de urbanismo, meio ambiente e regularização fundiária. Atualmente é advogada, especializada em direito urbanístico, ambiental e municipal e consultora jurídica nestes temas, além de regularização fundiária e direito à cidade.

Vanêsca Buzelato Prestes. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Vanêsca Buzelato Prestes – O primeiro ponto é o reconhecimento das diferenças e o reconhecimento de que a moradia é um direito, pois essas questões todas passam para a perspectiva dos direitos só a partir da Constituição de 1988. Até então, era prerrogativa dos governantes. Tínhamos um enorme espaço de luta política, dos movimentos que vieram desde o fim da ditadura, dos movimentos que reconheceram a importância de proteção da moradia, de acesso à terra (e que depois vai inspirar o Estatuto das Cidades), a partir do reconhecimento do direito à moradia, que também tem reflexo jurídico. Então, as conquistas vão em outra ceara porque, hoje, a gente passa a discutir, ainda que de forma tímida, a perspectiva de que não se pode simplesmente desistir de programas. Eles podem mudar, modificar, trabalhar vieses diferentes de acordo com o projeto político, mas são também um reconhecimento de que isso é um direito. Com isso, se abre uma série de possibilidades.

Por outo lado, vemos que, se tínhamos tanto movimento e expressão da luta política, no momento em que houve esse reconhecimento jurídico da proteção do direito à moradia, essa luta passa a se dar na ceara jurídica. Com isso, parece haver muitas derrotas, uma sensação de impotência quando, na verdade, são sistemas diferentes e que precisam coexistir.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Vanêsca Buzelato Prestes – Nós temos um enorme déficit habitacional que não é de hoje. Mas, atualmente, nesse período pós-pandemia, temos um déficit habitacional daqueles que nunca tiveram esse acesso e também temos daquela enorme massa de pessoas que ficaram desempregadas, perderam sua fonte de renda. A pandemia mudou as relações de trabalho. As pessoas haviam investido em coisas que não eram compatíveis com o mundo virtual que precisamos viver no pior período pandêmico. Assim, temos hoje um déficit habitacional que também decorrente da pandemia.

E há, ainda, todo aquele déficit habitacional que não reconhecia diferenças, que a democracia fez emergir dos indígenas, dos quilombolas, dos ribeirinhos, de todas as situações nas cidades e daquela grande massa das cidades que não tinham onde morar e que só trabalhavam nessas cidades, das favelas, que é fruto de um movimento que veio a partir do final dos aos de 1990 sendo seus direitos reconhecidos a partir da possibilidade da regularização fundiária. Temos um enorme déficit de promoção de habitação já nesse período. O Minha Casa, Minha Vida foi insuficiente, tinham uns parâmetros que precisavam ser conversados a mais logo prazo, mas, pelo menos existia. Agora, temos um déficit habitacional que é gerado por essas pessoas todas excluídas de sua renda no período pandêmico e que talvez exigisse estratégias diferentes.

Tem países quem trabalhado muito com aluguel social, como forma não só paliativa, mas num período mais longo para esse volume grande de pessoas possam se recuperar. Precisamos compreender a diferença desses instrumentos. A regularização é para situações já consolidadas, em situações que não eram reconhecidas como irregulares para uma massa de população que já vivem com um mínimo de infraestrutura. Não existe regularização fundiária sem a infraestrutura mínima porque, se não, vamos seguir enxugando gelo.

E tudo isso passa, também, por outras estratégias vinculadas a políticas públicas de assistência social, melhora de renda, de enxergar essa invisibilidade criada pela ausência de um Estado que se preocupa com essas situações e que não tem dados dessas situações. Uma das grandes questões é que precisamos saber o que acontece, porque as coisas mudaram, ou seja, dados dessa situação recente.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Vanêsca Buzelato Prestes – Certamente, como referi, a pandemia criou outras situações de dramas sociais no país. Já tínhamos muitos desses dramas, que foram aumentados. Hoje, enfrentamos situações desde famílias inteiras que foram destruídas, muitas pessoas mortas, enfrentamos a questão do suicídio, que tem sido um problema muito grande decorrente das grandes depressões e da mudança nos processos do mundo do trabalho.

Então, são modificações que precisam ser observadas e serem adotadas políticas públicas diferentes para situações diferentes. O fato é que os movimentos de defesa de moradia aumentaram a sua intensidade e suas demandas, até porque aumentaram os próprios problemas. No período mais agudo da pandemia, tivemos bons exemplos de como esses movimentos enfrentaram seus próprios problemas. Paraisópolis [em São Paulo], por exemplo, conseguiu montar uma estrutura de atendimento naquele período. Agora, como seguir a partir disso? Muitos perderam seus trabalhos, suas fontes de renda. Dito de outo modo, é preciso reconstruir. E para reconstruir é preciso reconhecer o que de fato aconteceu.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Vanêsca Buzelato Prestes – Na verdade, nós não temos uma resposta para todas essas demandas. A questão da moradia e da regularização fundiária é uma das formas da expressão da moradia e precisam ser compreendidas, implementadas e realmente levadas a sério pelas administrações públicas do país nas três esferas. Hoje, os municípios ficam com uma enorme responsabilidade porque a demanda é concreta no seu âmbito, mas isso precisa ser partilhado.

Penso, também, que precisamos enxergar a regularização fundiária das áreas sociais na complexidade que elas realmente têm. Além do problema da fixação da posse, nós precisamos enxergar também a infraestrutura, os efeitos dos desastres, não podemos regularizar casas em áreas que já foram impactadas por desastres sem ter obras de infraestrutura avaliando se realmente as pessoas podem ficar naquele local. Os problemas de hoje em função das mutações ocorridas no mundo pelas mudanças climáticas são diferentes de 20 anos atrás, quando nós começávamos a discutir as políticas de regularização fundiária no Brasil.


Cristiano Schumacher foi assessor da Secretaria Especial de Habitação do Rio Grande do Sul e diretor de Segurança Alimentar da Prefeitura de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Foi, ainda, secretário de Planejamento e Governo na Prefeitura de Cachoeira do Sul, no RS. Atualmente, é dirigente estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM do Rio Grande do Sul.

Cristiano Schumacher. Fotografia: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Cristiano Schumacher – O que hoje parece estar no cerne do debate da questão da moradia e déficit habitacional no Brasil diz respeito ao Estado brasileiro. É preciso que ele realmente cumpra seu papel de garantir como direito fundamental, assim como está escrito na Constituição, a moradia. Hoje, a política de moradia tem todo o desenho institucional já construído e que passa pela Constituição, em que foram escritos os artigos 182 e 183 que falam da função social da propriedade. Depois, no artigo 6º da Constituição foi inserida a questão da moradia como direito fundamental, assim como saúde, educação, previdência e, infelizmente, até hoje o governo não trata como uma política de Estado, de maneira tripartite e organizada para garantir que de fato haja uma política de habitação de longo prazo, perene e que vai garantir a inclusão das pessoas.

Então, isso diz respeito a algumas coisas. Uma diz respeito ao acesso à terra, que por mais que tenha legislação que permita aos governos legitimar posse e propriedade e dar destino a áreas ociosas, isso ainda não é comum no Brasil e isso é um limite. Outra questão que é fundamental no debate à habitação são os recursos públicos. O Estado brasileiro precisa se organizar, União, estados e municípios, para constituir um fundo nacional de habitação de interesse social para que se tenha recursos a fundo perdido para subsídios à habitação das famílias mais pobres. Ou seja, é o governo que paga por essa moradia para garantir esse direito.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Cristiano Schumacher – Além daquelas famílias que nunca tiveram acesso e que vivem de maneira precária nas milhares de ocupações por aí se acrescentou um conjunto de pessoas que não conseguiram mais pagar o aluguel. Essas pessoas foram para a condição de coabitação, morando com parentes num mesmo terreno ou numa mesma casa e muitas outras que foram para ocupações e mesmo habitações muito precárias como cortiços, alguns morando até na rua. Por isso, com certeza a pandemia fez com que aumentasse ainda mais o déficit habitacional, também pelo empobrecimento da crise econômica que também não é causada só pela pandemia.

IHU – Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Cristiano Schumacher – Realmente há outras questões que dizem respeito à moradia, como as que dizem respeito à renda e desenvolvimento econômico. O povo mora onde o bolso dele alcança, e historicamente no Brasil o povo nunca teve acesso à terra. Moradia e terra se tornam mercadoria e a partir daí o povo foi buscando alternativas para morar, seja um barraco numa ocupação, aluguel precário.

Por isso é importante que a gente pense também o desenvolvimento econômico, pense possibilidade de, dentro de seus territórios, desenvolver políticas que possam alicerçar a economia, o desenvolvimento social, a integração das comunidades para que a gente não precise deslocar massas enormes de trabalhadores até as indústrias e que eles possam ter ocupação e geração de renda nos seus territórios. Também passa muito pela formação e capacitação das pessoas, investimentos em novos empreendimentos e ter, obviamente, investimento público nisso. É necessário fazer uma reparação de séculos de exclusão social de famílias que vivem um círculo de pobreza infinita e que precisa ser rompido.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Cristiano Schumacher – Ainda sobre a pandemia, vemos que ela foi um desafio para os trabalhadores que moram na periferia, para os movimentos e lideranças que se colocaram na situação de ter que proteger suas comunidades, levar esclarecimento e atender quem precisava de forma segura. Essas pessoas e seus parceiros construíram pelo Brasil uma verdadeira operação de guerra para garantir alimentação, água potável, condições mínimas de higiene. Nesses momentos bem críticos da pandemia, foi a população das comunidades da periferia que foi, dia a dia, avançando, desenvolvendo experiências de redes de solidariedade, de autoprodução de alimentos com cozinhas e hortas comunitárias, grupos de geração de renda para comercialização de produtos via internet. Ou seja, as pessoas foram buscando várias alterativas de sobrevivência e, com certeza, mesmo com a dor e sofrimento que foi a pandemia, foi um aprendizado muito importante para quem vive na periferia e para quem luta na luta popular.

A população sai mais organizada e consciente de seu papel enquanto sociedade. Agora, é continuar enfrentando, lutado pelo direito à moradia e desenvolvimento econômico e social nas periferias para que a gente possa ter um país melhor.


Karina Camillo Rodrigues é assistente social de formação, presidente da Associação de Moradores AMOBONFIM, dirigente Estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM do Rio Grande do Sul.

Karina Camilo. Foto: Arquivo pessoal

IHU – O que está no cerne das lutas para a conquista de moradia digna no Brasil de hoje?

Karina Camillo Rodrigues – É ainda a disputa pela terra, o acesso à terra, a definição correta dos recursos públicos para urbanização dessas terras, principalmente com a possibilidade de se fazer essa urbanização próxima dos grandes centros. Infelizmente, nesses grandes centros, ainda existe essa política de colocar o povo pobre o mais distante possível.

IHU – Quem são as pessoas que estão atualmente no chamado déficit habitacional? Além de políticas públicas de acesso à moradia e regularização fundiária, que outras ações devem ser empregadas para mudar a realidade dessas pessoas?

Karina Camillo Rodrigues – Quem são essas pessoas no déficit habitacional? Mais uma vez, são pessoas, famílias excluídas, em vulnerabilidade social, aqueles trabalhadores e trabalhadoras que muitas vezes não têm acesso ao trabalho e que não têm condição financeira de comprar sua moradia. Ainda é a classe mais vulnerável e pobre que continua aumentando esse déficit por conta da necessidade de moradia.

É muito importante destacar que hoje temos uma falta de política pública. Desde que se encerrou o Programa Minha Casa Minha Vida, que estava avançando para a construção de unidades habitacionais prioritariamente para famílias que tinham a necessidade da moradia, e se transformou na Casa Verde Amarela, não se possibilitou mais que as pessoas necessitadas consigam acessar esse novo programa. Esse retorno da política pública de habitação para famílias de interesse social é uma luta que a gente vai ter que continuar. Hoje, infelizmente, o poder público não tem mais investido em habitação. Ter uma política pública permanente de habitação e não só um programa de governo é a bandeira que os movimentos estão levantando.

A possibilidade de regularização dessas áreas já ocupadas também precisa ser mantida, porque a partir da regularização fundiária se abriu a possibilidade de se resolver essa questão no país. Os municípios também precisam pensar o que fazer com seu déficit habitacional, buscar alternativas, definir o que há de área pública e de possibilidades para poder atender as famílias que mais precisam no território. Isso, aliás, tanto na questão municipal, estadual ou federal. Precisamos também pensar na constituição de um banco de terras, pois a moradia é um direito, está lá previsto na Constituição, mas, infelizmente, ninguém fala mais nisso.

IHU – A experiência da pandemia agudizou uma série de dramas sociais no país. Como essa experiência da pandemia, com o empobrecimento da população que decorreu dela, impactou o número de pessoas que perderam moradia digna, aumentando o número daquelas que lutam por esse direito?

Karina Camillo Rodrigues – Na verdade, a pandemia demonstrou o quanto esse nosso Brasil é desigual, o quanto a vulnerabilidade social ainda existe em nosso país. E o que a pandemia revelou foi uma força coletiva, muitas pessoas se colocaram à disposição para ajudar de alguma forma.

Pensar nas políticas territoriais nos seus locais, envolvendo essas pessoas, pensando num desenvolvimento econômico local, pensando em alternativas locais, seja num núcleo de uma ocupação ou num bairro na periferia, mas pensar numa alternativa que envolva o coletivo é algo muito importante que devemos continuar fazendo. Foi a pandemia que colocou esses coletivos de pessoas para ajudar uns aos outros. Vimos muitos mutirões, redes se construindo, aqui no município de São Leopoldo, inclusive a Rede Solidária São Léo foi uma experiência que deu certo e que continua dando certo. Faço parte desse coletivo e acho que a gente conseguiu organizar de alguma forma essas lutas territoriais e estamos avançando, mesmo que lentamente.

Hoje, também temos um número maior de pessoas que têm consciência do tamanho da desigualdade, mas também de seus direitos. Só com luta se muda a vida. É só lutando, debatendo coletivamente que vamos conseguir melhorar o futuro.

Fonte: IHU
Texto: João Vitor Santos, Patricia Fachin, Ricardo Machado e Cristina Guerini
Data original da publicação: 29/04/2022

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