A solução não é dar as costas ao espírito de maio de 1968 e ao movimento social: é preciso, ao contrário, se apoiar neles para desenvolver um novo programa internacionalista de redução das desigualdades
Thomas Piketty
Fonte: Carta Maior
Tradução: Clarisse Meireles
Data original da publicação: 14/05/2018
Devemos enterrar maio de 1968? Segundo seus detratores, o espírito de maio teria contribuído para o triunfo do individualismo e, até mesmo, do ultraliberalismo. Tais declarações, no entanto, não resistem a uma análise detalhada: o movimento de maio de 1968 foi, ao contrário, o início de um período histórico de redução acentuada das desigualdades sociais na França que, em seguida, perdeu fôlego por uma série de razões. A questão é importante porque condiciona o futuro.
Voltemos no tempo. O período 1945-1967 foi caracterizado, na França, por um forte crescimento, mas também por um movimento de reconstrução da desigualdade, com um aumento acentuado na participação dos lucros na renda nacional e uma reconstituição das hierarquias salariais. A parcela dos que detinham 10% das rendas mais altas, que chegava a 31% da renda total em 1945, subiu gradualmente para 38% em 1967.
O país estava totalmente focado na reconstrução, e a prioridade não era a redução das desigualdades, especialmente porque todos sentiam que elas haviam diminuído muito após as guerras (destruição, inflação) e as reviravoltas políticas da Libertação (Previdência Social, nacionalizações, faixas salarias mais estreitas).
Nesse novo contexto, os salários de executivos e engenheiros progridem estruturalmente mais rápido do que os salários baixos e médios nos anos 1950-1960 e, num primeiro momento, ninguém parece se incomodar. Um salário mínimo foi criado em 1950, mas quase nunca era reajustado, de modo que perdeu muito comparado à evolução do salário médio.
A sociedade nunca foi tão patriarcal: nos anos 60, 80% da massa salarial eram destinados aos homens. As mulheres têm muitas missões (especialmente cuidar das crianças, dando conforto e ternura à era industrial), mas o controle do orçamento claramente não é uma delas. A sociedade também é profundamente produtivista: as 40 horas prometidas em 1936 ainda não se aplicam, porque os sindicatos concordaram em fazer o máximo da cota de horas extras para ajudar o país a recuperar o atraso.
A ruptura ocorre em 1968. Para sair da crise, o governo do General de Gaulle assinou os acordos de Grenelle, que incluem um aumento de 20% no salário mínimo. O salário mínimo será oficialmente indexado – parcialmente – ao salário médio em 1970, e especialmente todos os governos de 1968 a 1983 se sentirão obrigados a conceder quase todo ano “ajudinhas” importantes, em um clima social e político em plena ebulição.
Assim, o poder de compra do salário mínimo aumenta em mais de 130% entre 1968 e 1983, enquanto que, no mesmo período, o salário médio aumenta em cerca de 50%, daí uma forte contração das desigualdades salariais. O rompimento com o período anterior é franco e importante: o poder de compra do salário mínimo havia aumentado apenas 25% entre 1950 e 1968, enquanto o salário médio mais do que dobrara. Impulsionada pelo aumento acentuado dos baixos salários, a massa salarial, como um todo, cresceu substancialmente mais rapidamente do que a produção entre 1968 e 1983, resultando em uma queda acentuada na participação do capital na renda nacional. Tudo isto reduzindo o tempo de trabalho e prolongando as férias pagas.
O movimento se inverteu novamente em 1982-1983. O novo governo socialista eleito em maio de 1981 provavelmente teria adorado continuar indefinidamente essa política. Infelizmente para ele, o movimento social já havia imposto a grande recuperação dos baixos salários aos governos de direita, vencendo a democracia eleitoral. Para prolongar o movimento de redução das desigualdades, outras ferramentas teriam que ser inventadas: poderes reais para os empregados nas empresas, investimento massivo e igualdade educacional, estabelecimento de um sistema universal de seguro de saúde e de aposentadoria, desenvolvimento de uma Europa social e fiscal.
Em vez disso, o governo usa a Europa como bode expiatório na virada do rigor de 1983, mesmo que ela não tenha nada a ver com o congelamento de salários: o salário mínimo não pode progredir eternamente três vezes mais rápido que a produção, seja a economia aberta ou fechada.
Pior: desde 1988, os governos franceses contribuem fortemente para o movimento de dumping fiscal europeu do imposto sobre as empresas e, em seguida, com o Tratado de Maastricht de 1992, estabeleceram uma união monetária e comercial pura, sem orçamento e tributação comum, sem governança política. Uma moeda sem Estado, sem democracia e sem soberania: um modelo cuja fragilidade pudemos constatar após a crise de 2008 e que contribuiu para a recessão de dez anos, da qual estamos apenas começando a sair.
Hoje, a crise da social-democracia europeia é geral. É acima de tudo a consequência de um internacionalismo inacabado. Durante o século XX, e particularmente entre os anos 1950 e 1980, o estabelecimento de um novo pacto capital-trabalho foi concebido e realizado dentro dos Estados-nação. Com sucessos inegáveis e, ao mesmo tempo, com grande fragilidade, porque as políticas nacionais viram-se imprensadas pela crescente concorrência entre os países.
A solução não é dar as costas ao espírito de maio de 1968 e ao movimento social: é preciso, ao contrário, se apoiar neles para desenvolver um novo programa internacionalista de redução das desigualdades.
Thomas Piketty é um economista francês, autor de “O Capital no século XXI”.