Lute pelo seu direito de ser preguiçoso

Fotografia: Clay Banks/Unsplash

No final do século XIX, o marxista francês Paul Lafargue apresentou uma demanda que ainda ressoa quase um século e meio depois: os trabalhadores têm o direito de serem preguiçosos.

Nicholas Burman

Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Natanael Alencar
Data original da publicação: 17/02/2023

“Ninguém quer mais trabalhar!”, declararam vários artigos em resposta ao fenômeno “quiet quitting“, ou “demissão silenciosa”, em 2022. Eles se referiam aos trabalhadores de colarinho branco que faziam simplesmente aquilo que estava descrito no cargo, algo que foi considerado um sinal de que todos nós estávamos ficando improdutivos. Um meme que enfatizava essa frase em artigos escritos ao longo dos últimos 130 anos rapidamente se tornou popular.

Ele se dirige às máquinas cuja “produtividade empobrece” os trabalhadores, mas ele não é um Ludita; seu argumento é que ao invés de superproduzir mercadorias que o capitalismo explora no exterior, os trabalhadores de nações industrializadas deveriam desfrutar de sua abundância em casa e trabalhar apenas três horas por dia, deixando as máquinas realizarem a maior parte do trabalho. Disso decorre que o desejo capitalista de expandir pode ser interrompido para que as pessoas ao redor do mundo não temam mais “os pontapés da Vênus civilizada e os sermões da moral européia”. Em certas partes, ele é premonitório: “Todos os nossos produtos são adulterados para facilitar o seu escoamento e abreviar a sua existência”, algo ainda válido para os produtos hoje em dia.

A moral burguesa é um alvo constante de Lafargue. Em O direito à preguiça, ele condena o “progresso” europeu tal qual era celebrado por Victor Hugo, assim como os Direitos do Homem, os quais ele descreve como “os direitos da exploração capitalista”. Sua aversão à arrogante propaganda da civilização ocidental também pode ser compreendida quando analisamos as circunstâncias que o antecedem. Seus avós eram jamaicanos, haitianos, fanceses judeus, bem como franceses cristãos. Quando questionado sobre sua descendência por Daniel De Leon, editor americano-caribenho, ele respondeu: “eu sou extremamente orgulhoso da minha origem negra.” Apesar disso, seus laços familiares não desestimularam que utilizasse chavões antissemitas em O direito à preguiça — embora ele tenha diferido de boa parte da esquerda francesa quando apoiou Alfred Dreyfus, o capitão judeu injustamente condenado.

Geralmente, Lafargue é tido como um coadjuvante na história de outras pessoas, mas sua influência no socialismo, especialmente na França, e sua dedicação ao internacionalismo o faz algo mais do que isso. Sua história também revela os laços que os caribenhos e pessoas descendentes de africanos na Europa tinham com o socialismo desde o princípio. Lafargue nasceu em meio ao luxo em Cuba, no ano de 1842. Seu pai era dono de plantações de café e “teve” um escravo até 1866. A família rearranjou-se na França, em 1851, ano da Expedição Lopez, por causa da repressão que pessoas negras e mestiças enfrentaram na ilha. Tendo crescido na França, tornou-se um radical. Sua adoção à filosofia positivista abriu caminho para sua contínua rejeição dos românticos. Ele os criticou pela ausência de “alegria, ceticismo e efusividade” — algo que ninguém pode acusar O direito à preguiça de não ser.

Seu plano original era seguir a medicina, mas o seu contato com republicanos e a adoção do anarquismo adotado por Pierre-Joseph Proudhon o encorajaram a se envolver em protestos contra o Segundo Império de Napoleão III. No fim das contas, isso o levou a ser banido das universidades francesas e, depois, a exilar-se em Londres. Mais tarde, a morte de todos os seus três filhos ainda durante a infância deles o levaria a rejeitar completamente a prática médica. Por possuir uma carta de recomendação de Karl Marx, graças ao seu envolvimento na Primeira Internacional, Lafargue tornou-se um visitante regular na casa de Marx em Londres. Mesmo que mantivesse alguma sensibilidade anarquista, Lafargue logo tornou-se um sonoro promotor do socialismo.

Ele casou-se com Laura, a segunda filha de Marx, e os dois mudaram-se para Bordeaux. Eles nunca conseguiram manter uma renda estável e eram constantemente auxiliados por Friedrich Engels. Ainda que tanto Engels quanto Marx apoiassem Lafargue e ele tivesse um papel indispensável na popularização do marxismo na França, ambos desumanizavam Lafargue ao usar insultos étnicos quando se referiam a ele. O status mestiço de Lafargue parece ter sido utilizado contra ele para deslegitimar o papel que ele teve no desenvolvimento da esquerda.

De volta à França, Lafargue fez campanha contra o governo de Adolphe Thiers e visitou a Comuna de Paris. Ele foi punido pelos dois atos, mais uma vez sendo exilado do país. Laura e ele só retornariam em 1879, ano da anistia geral. O casal passou um tempo em Madri, onde Lafargue, a partir da difusão das ideias de seu sogro, tentou em vão conter a maré do anarquismo na Espanha. O casal então retorna à Londres, um período em que ele fez o primeiro contato com Jules Guesde e agiu como uma espécie de mensageiro entre Marx e o socialista francês em ascensão.

Em Londres, Lafargue geralmente evitava circular entre os exilados franceses e, em lugar disso, devotou seu tempo a desenvolver uma abordagem marxista à crítica literária. Lafargue estava interessado na crítica porque, como Leslie Derfler explica, “a burguesia tinha orgulho de sua glória intelectual e seus ídolos precisavam ser atacados”. A sua lente materialista para analisar autores como Victor Hugo envolvia a tentativa de descrever o “clima social” dos públicos leitores e entender os trabalhos literários como resultados de contextos sociais. Laura e Lafargue passaram as últimas décadas de suas vidas na França, tempo esse em que Lafargue seria preso diversas vezes por, entre outras coisas, incitamento à rebelião.

Lafargue ajudaria a fundar a Federação dos Trabalhadores Socialistas da França em 1880 com Guesde. Guesde também co-fundou o jornal radical L’Égalité, do qual Lafargue tornou-se editor e um contribuidor regular, escrevendo sobre tópicos como a importância das greves e cooperativas. Algumas vezes ele chegou a ser publicado por veículos alinhados ao establishment, o que gerou muita discussão. Nesse meio tempo, Laura e ele traduziram vários trabalhos de Marx e Engels para o francês.

Ele se tornou um dos primeiros socialistas a ser eleito para o Parlamento Francês. Embora seus esforços nesse período possam ser encarados como uma tentativa de equilibrar reformas com uma visão histórica de longo prazo, seus contemporâneos não ficaram impressionados. De maneira geral, os visitantes ficaram desapontados com a organização da Segunda Internacional, da qual ele foi parcialmente responsável. Lafargue descrevia o projeto socialista na França de seu tempo como uma boca sem um corpo. O marxismo até havia deixado sua marca na França, mas a classe trabalhadora ainda não havia sido persuadida de tornar-se revolucionária. Lafargue se aposentou e se dedicou à escrita. Seu trabalho que “tentava descrever… as relações por ele percebidas entre negros e ‘outros proletários’”, como Derfler descreve, pode ser interpretado como uma forma incipiente de abordagem intersecional.  

Tanto Laura quanto ele puseram fim às suas vidas em um pacto de suicídio em 1911. Apesar de figuras como Karl Kautsky e V. I. Lenin terem prestado homenagens a ele, Lafargue foi, em larga medida, descartado pelos franceses e acadêmicos socialistas até a década de 1930, embora tenha havido alguns esforços de acadêmicos cubanos para reabilitar suas contribuições. Críticos literários franceses marxistas só começaram a mencioná-lo a partir da década de 1960 — e ainda assim de forma muito breve. Isso ocorreu, provavelmente, por causa da força de seus detratores, sendo Georges Sorel um deles. Sorel criticou Lafargue por meramente reconstituir o trabalho de Marx ao invés de prover ideias inovadoras. Leszek Kołakowsk chamou Lafargue de um “marxista hedonista”, o que não soa muito como um insulto nos dias de hoje, uma era em que pairam ideias como “marxismo ácido” e “comunismo de luxo totalmente automatizados”.

O direito à preguiça leva a sério a insistência de Engels em “dar a mais alta prioridade à questão das horas de trabalho”. Campanhas pela jornada de oito horas de trabalho por dia já estavam em andamento, bem como as conversas sobre o que fazer com a abundância que o capitalismo produz. Até J. S. Mill descreveu uma possível economia da abundância em “estado estacionário”. Questões sobre as horas de trabalho precisavam ser levadas a sério: entre o meio do século XVII e o século XIX, a média de horas trabalhadas no norte industrializado da Inglaterra havia aumentado de 2,860 horas por ano para 3,666.

Mas e o “regime de preguiça” que Lafargue sonha a respeito em seu panfleto? É algo vago em detalhes, além da opinião do autor que uma combinação de exercícios e atividades artísticas é o que constitui uma vida boa. O trabalho, de fato, às vezes parece ingênuo. É complicado dizer se a sua idealização do ocidente americano e as vidas das mulheres antes da Revolução industrial é uma ironia ou não. Sua auscultação da “sociedade primitiva” não é apenas primitivista, mas também mal orientada, dado que nós hoje sabemos que as sociedades pré-literárias eram diversas, complexas e, com muita frequência, não eram muito comunistas. Mesmo assim, o ensaio de Lafargue permanece sendo uma leitura excitante porque ainda emana um sentimento visceral. Você pode até ser capaz de apontar os buracos em sua teoria ou ficar desconcertado por algumas das generalizações que são feitas, mas ele possui uma imediaticidade e uma energia cativantes. Aparentemente, Lafargue não era um orador muito bom; seus escritos mostram que as suas energias ficaram bem melhor depositadas em páginas.

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