Desenvolvimentistas como Antônio Ermírio defendiam industrialização. Em seu lugar há hoje rentistas como André Esteves. Novo governo criará alternativas a estes embates?
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 22/05/2023
A crítica intelectual contribui quando exaspera o olhar sobre os rostos das multidões de sobrantes do capital, cada vez mais rebeldes à condução da ordem interna no Brasil. Mas, pela predominância do academicismo quantitativista de especializações das partes, a visão do todo aparece obscurecida, quando inviabilizada pelo foco do choque político em curso fundamentalmente nos vértices do poder.
A mudança do cenário nacional parece romper os laços com a uniformidade da continência à ordem que decorre da imposição do reino das mercadorias e da consagração consumista. Uma vida quase sem destino e permeada por angústias e irritações contamina multidões distantes de horizontes organizadores do destino presente e, sobretudo, do futuro, tornando o quotidiano crescentemente violentado por exigências de uma mera sobrevivência física.
Diante da retórica analítica e discursos políticos exagerados pelo conteúdo próprio do museu de grandes novidades – para lembrar Cazuza (“O tempo não para”) – transcorre a reviravolta antropológica brasileira. Assim como Paolo Pasolini vislumbrou na experiência italiana (Escritos corsários, 2020), o beneplácito conformista do “andar de cima” da sociedade não tem impedido que as vísceras apodrecidas da República alimentem a rebeldia de massas enfurecidas pela postergação da catástrofe nas veias da ruína na sociedade industrial brasileira.
Destaca-se a inventividade das elites conformadas com a reversão do processo do desenvolvimento nacional desigual e combinado regionalmente, ocorrido entre as décadas de 1930 e 1980, quando o Brasil buscou acompanhar a modernidade, reduzindo a situação do atraso material em relação ao progresso do norte-ocidental. Os desenvolvimentistas daquela época poderiam ser considerados utópicos idealistas, pois sabiam que não conseguiriam produzir plenamente a sociedade industrial que imaginaram os protagonistas da Revolução de 1930.
Para o utópico desenvolvimentista, a modernidade viria com a superação do subdesenvolvimento e da dependência externa. A internalização da produção manufatureira seria fundamental para viabilizar o acesso e a homogeneização do padrão de consumo próprio da sociedade industrial em construção.
Nesse sentido, a burguesia industrial se faria central na promoção do processo de transformação de um país retardado pelas imposições do longevo e primitivo agrarismo exportador de commodities e importador de bens de maior valor agregado, conteúdo tecnológico e emprego decente. Nas palavras de Antônio Ermírio de Moraes, o empresário que ao fazer fortuna apostando na indústria nacional e que se tornou um dos primeiros brasileiros a aparecer na lista de bilionários da revista Forbes, afirmou: “Se eu não acreditasse no Brasil, seria banqueiro” ou, ainda: “O empreendedor deve estudar muito, preparar-se enquanto for jovem, e depois trabalhar pensando no Brasil, com amor à terra. Se tivermos gente pensando no Brasil, como tem que pensar, este país será um dos grandes países do mundo”.
No contexto desenvolvimentista, o Estado como planejador e coordenador do movimento do investimento coletivo dos capitalistas era estratégico. Conforme o mesmo Antônio Ermírio também destacou: “Eu não sou contra o capital estrangeiro. Eu sou contra o capital que vem aqui apenas para especular os juros que o governo paga. Eu sou a favor de que o capital venha para cá, entre conosco aqui, tijolo por tijolo, construa os empreendimentos e produza”.
O tripé do investimento constituído no Brasil daquela época se conformou compatível com a associação do capital estatal com os capitais privados nacional e estrangeiro. As experiências dos governos Getúlio Vargas (1882-1954), Juscelino Kubitschek (1902-1972) e Ernesto Geisel (1907-1996) apontaram tardiamente na direção modernizante do capitalismo periférico associado à construção da sociedade urbana e industrial.
Ao contrário disso, os neoliberais da atualidade ascenderam concomitantemente com a montagem do ciclo político da Nova República. Mas foi a partir de 1990 que passaram a dominar a cena política e econômica enquanto utopistas antagônicos, pois sequer conseguiam imaginar o que estariam por produzir mediante a imposição da ruína na sociedade industrial.
Na oportunidade, o descompasso entre o que seria o moderno e o atraso foi estabelecido pelo convencimento nacional e por uma nova maioria política neoliberal comprometida com a passagem passiva e subordinada para a globalização estadunidense. No contexto dominante do utópico antagônico, a diferença entre o moderno e o atraso se resumiria à preferência pelo consumo externo, ao contrário do avanço na produção interna.
Assim, a imposição da imitação do padrão de consumo dos países ricos estaria liberada ao “andar de cima” da sociedade, cujas migalhas da concentração de riqueza pelo rentismo e modelo primário-exportador poderiam até padronizar certa modernização consumista aos empobrecidos. Identificado com o atraso representado pela insistência em produzir internamente o que se poderia comprar lá fora, o presidente Fernando Collor (1990-1992) afirmou, simbolizando a mentalidade da elite neocolonial que: “Os carros brasileiros são carroças”.
Assim, a justificativa abrupta e desorganizada da abertura externa do mercado interno, sem critérios impostos pela adesão à globalização neoliberal, prosseguiu incólume durante os governos de Fernando H. Cardoso (1995-2002), Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022). Uma vez aberta a porteira nacional ao neoliberalismo, parafraseando certo ministro do governo passado, a “boiada” passaria com se fosse “ouro dos tolos”.
O otimismo de segmentos enriquecidos, poderosos e privilegiados pareceu não ter limites. O banqueiro André Esteves, identificado pela Revista Forbes como “self made” bilionário brasileiro, por exemplo, afirmou: “O Brasil está se transformando em um grande país de classe média”, pois: “Vivemos um processo de transformação comparável ao dos EUA há 60 anos”. Só “achei que caiu demais os juros”.
No mesmo sentido do conformismo validador da cultura dominante e opaca ao curso da reviravolta antropológica brasileira, o empresário Beto Sicupira, o quarto homem mais rico do país e o 162o do mundo pela lista de bilionários da revista Forbes, declarou: “Se vocês estão achando que o Brasil é um negócio que vai virar EUA, estão no lugar errado. O Brasil é o país do coitadinho, do dinheiro sem obrigação, o país da impunidade. Isso não vai mudar. Então o Brasil é isso aí.”
Será mesmo?
Márcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. .