O pressuposto de qualquer projeto consistente de Nação tem que ser o atendimento das demandas da população.
Luis Nassif
Fonte: A terra é redonda, com GGN
Data original da publicação: 27/10/2021
Há uma vertente de discussão sobre a Lei do Teto, defendendo sua aplicação desde que haja espaço para investimentos públicos. Da mesma maneira que a Lei do Teto original, reduz-se uma questão complexa – o desenvolvimento – a um ângulo apenas, o macroeconômico. Faz parte de uma herança das últimas décadas, de só se enxergar o desenvolvimento a partir da ótica macroeconômica, para manter a supremacia dos economistas na formulação das políticas públicas.
É por isso que toda a discussão de projeto de pais fica restrita ao liberalismo atual, ao desenvolvimentismo tradicional e à vertente do desenvolvimentismo social – a ausência de Estado, o desenvolvimentismo se restringindo à prioridade dos investimentos públicos e o desenvolvimentismo social privilegiando as políticas sociais.
Projeto de desenvolvimento é algo muito mais amplo e sistêmico. Em meados dos anos 2000 procurei sintetizar em uma série de colunas na Folha, posteriormente incluídas em meu livro Os cabeças de planilha. Na época, a série foi reproduzida no site do BNDES pelo presidente Carlos Lessa – um dos derradeiros formuladores de planos sistêmicos, herdeiro da tradição de Celso Furtado e Darcy Ribeiro.
A parte macroeconômica é só o fecho do projeto, assim como, em uma empresa privada, o financeiro é apenas o técnico que cuida do financiamento da estratégia maior. Ou seja, primeiro tem que se desenhar o modelo de país que se pretende e a estratégia para se chegar lá. Depois, as formas de financiar.
O pressuposto de qualquer projeto consistente de Nação tem que ser o atendimento das demandas da população. Mesmo porque esse atendimento tem reflexos relevantes na oferta de mão de obra, na criação do mercado de consumo, na manutenção da paz social.
A cultura popular é a argamassa do projeto. É o que fortalece o sentimento de solidariedade nacional, permite enxergar o país como um todo, reforça a aposta no potencial humano e no conceito de Nação – sem xenofobia. Em algum momento no final da década de 2.000, quando o país atingiu o ápice da auto-estima, o “jeitinho” passou a ser visto como um valor, mostrando a flexibilidade do brasileiro para encontrar soluções, encantando os grandes gestores de qualidade.
Essa descoberta dos talentos naturais do brasileiro é essencial para cimentar programas educacionais e políticas sociais inclusivas. No final do segundo governo Lula, o orgulho de ser brasileiro tornou-se uma bandeira que abriu espaço para as políticas de cotas no ensino público.
Dentro dessa mesma lógica, é peça essencial o estímulo ao pequeno empreendedor, às micro e pequenas empresas, que não apenas garantem o emprego, mas, em seu processo de crescimento, a renovação e a vitalidade da economia.
Ao longo do pós-Constituinte, foram criados inúmeros instrumentos de apoio às PMEs, a partir da reestruturação do Sebrae no governo Collor. Pode-se estimular as PMEs com programas de gestão, com apoio dos institutos públicos à inovação, com os modelos de Arranjos Produtivos Locais e com financiamentos a custos razoáveis, como nos experimentos isolados de bancos do povo.
Na parte agrícola, o cooperativismo exerceu um enorme papel. E, mais recentemente, o modelo campeão do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), com suas propostas inovadoras de conferir ao trabalhador o usufruto, mas não a posse da terra – para impedir jogadas especulativas.
Políticas, como o apoio à agricultura familiar – garantindo a demanda a partir das escolas e outras organizações de serviço público -, as tentativas de produção de bioetanol por pequenos agricultores, tudo isso são experiências historicamente recentes, que poderão ser recuperadas.
Todo esse modelo é alicerçado na capacidade na capacidade da sociedade de trabalhar em conjunto, de juntar forças, de instituir formas de colaboração, só possível após o trabalho prévio de construção, pela cultura, dos símbolos de uma alma brasileira, como forma de reforçar a solidariedade.
Paralelamente, há a necessidade de instituir políticas industriais visando manter a competitividade da produção brasileira. A única maneira de consolidar o modelo é garantir empregos de qualidade. E empregos de qualidade não se consegue na uberização e na consolidação de uma sociedade eminentemente de serviços.
É aí que a intervenção do Estado se torna necessária. Vive-se um período de eliminação de empregos. E empregos são essenciais para a paz social, para o bem-estar geral, para o fortalecimento do mercado de consumo. Daí a necessidade de políticas pró-ativas de geração de emprego, leis que domem a selvageria anti-emprego das plataformas, da uberização. É movimento internacional, que tenderá a crescer cada vez mais. O desafio será termos governos capazes de alinhar o país com as novas ideias que começam a se espalhar pelo mundo civilizado.
Outro ponto essencial, nas políticas públicas, é o papel do Estado no financiamento da inovação, seja pelo sistema Finep-Fundações de Amparo à Pesquisa, seja retomando o papel essencial da Petrobras e das grandes corporações privadas no espalhamento da pesquisa, através de parceria com universidades e de aprimoramento das práticas de seus fornecedores.
A armadilha dos indicadores financeiros
Ponto dos mais relevantes é sair da armadilha dos indicadores meramente financeiros.
Lembro-me da grande revolução gerencial dos anos 90 e a tentativa de levar a melhoria de gestão, e inovação, a pequenas e micro empresas. Havia uma lógica férrea reforçando a relevância desse trabalho. Como as PMEs eram maioria, qualquer ganho incremental teria um impacto grande sobre a produtividade como um todo.
Em um debate nos anos 90, polemizei com Luciano Coutinho, defensor do conceito de campeões nacionais – uma das principais marcas da escola desenvolvimentista. E salientei a falta de indicadores sobre aspectos micro da economia. Por exemplo, um grupo de pequenas empresas, trabalhando de forma consorciada, representaria um ganho de eficiência relevante da economia. E, no entanto, esse ganho não era mensurado.
Entra-se aí em outro terreno relevante da economia, e pouco considerado no país: a análise das externalidades dos investimentos públicos e privados. Isto é, das consequências indiretas desses investimentos, no plano social, de meio ambiente e no campo do desenvolvimento, especialmente para superar uma das grandes marcas do subdesenvolvimento do pensamento mercadistas brasileiro: a falácia da composição.
Um exemplo claro foi a distribuição dos investimentos de pesquisa pelos novos campus. Houve intensa reação de pesquisadores do triângulo São Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte. Como possuem as melhores instituições públicas, partia-se do pressuposto que cada centavo aplicado nelas seria mais eficiente do que os centavos aplicados em novas instituições, sem tradição de pesquisa.
A realidade demonstrou o contrário. Os novos institutos levaram o conceito de pesquisa para as diversas regiões, permitindo a criação de políticas eficientíssimos, de consórcios de pesquisas bancados pela Petrobras e pela Confederação Nacional da Indústria, trazendo um sangue novo aos pesquisadores e, principalmente, um foco maior na solução dos problemas regionais.
Outro desafio foi a enorme concentração de poder nos frigoríficos nacionais. Transformou a JBS em um campeão internacional, mas quais os resultados sobre a cadeia produtiva da carne e do couro? Ora, o que impactaria o país seria a JBS como instrumento de modernização da produção pecuária. Ao contrário, seu poder – e dos demais frigoríficos – provocou enormes desequilíbrios na pecuária e na indústria de couros. Com isso, o campeão nacional se internacionalizou, com baixíssima contribuição ao desenvolvimento sistêmico do setor.
Outro tema dos mais relevantes foram as cotas sociais-raciais nas Universidades públicas. A reação dos idiotas da objetividade é que, colocando alunos menos preparados nas universidades, haveria uma perda de qualidade do ensino.
A lógica da inclusão é que havia uma assimetria na partida – a diferença de formação e de oportunidade entre alunos de escola pública e privada. Contornada essa assimetria pelas cotas, o que se viu – e foi comprovado pela Unicamp – é que a geração de cotistas, na média, tem melhor desempenho que a média dos não-cotistas, por saber que o estudo é a única maneira de superar a maldição das barreiras socioeconômicas.
E, se o potencial de um país se mede pela soma de potencialidades aproveitadas de sua população, como deixar de fora a maior parte da população, negra e pobre?
Há inúmeros outros temas essenciais, dentro de um projeto de desenvolvimento, como a capacidade de compra do Estado – fundamental em setores como de medicamentos e, em outros tempos, na construção de plataformas pela Petrobras.
O desenvolvimentismo
Voltando ao início da nossa conversa, como ficam os princípios desenvolvimentistas, de aumento do investimento público?
Investimentos públicos não podem ser vistos exclusivamente da ótica da recuperação conjuntural da economia – como costumam ser tratados -, mas como peça essencial de desenvolvimento, ou seja, em um horizonte temporal de longo prazo. Assim como a valorização da produção interna, do uso do mercado de consumo como barganha para a transferência de tecnologia pelas multinacionais – como foi feito pelo Brasil dos anos 50 e pela China do terceiro milênio.
Não existe bala de prata para o desenvolvimento.
O grande projeto de desenvolvimento será aquele que englobar todas essas política simultaneamente, como foco direto no melhor do Brasil: os brasileiros. E o grande estadista será o que juntar todas essas peças em um todo lógico e souber explicar o todo ao país, estimulando o grande pacto do desenvolvimento nas pequenas, médias, grandes empresas, nos arranjos sociais, nas cooperativas, nos APLs, nos movimentos sociais.
E salve Manoel Bonfim, Celso Furtado, Josué de Castro, Rômulo de Almeida, Anisio Teixeira, Paulo Freire, João Paulo dos Reis Velloso, salve a brilhante geração dos anos 60, ceifada pelo golpe militar e, depois, pelo economicismo emburrecedor contemporâneo.
Luis Nassif é jornalista, editor do Jornal GGN. Autor, entre outros livros, de Os cabeças de planilha (Ediouro).