Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 13/05/2018
O Brasil nunca conseguiu inserir socialmente a população negra. Na verdade, não quis. Os descendentes daqueles trabalhadores escravizados do final do século 19 continuam a ser tratados como carne de segunda, sofrendo todo tipo de discriminação, recebendo bem menos que os brancos pela mesma função, enfrentando as piores condições de trabalho, sendo mortos sumariamente nas periferias das grandes cidades simplesmente por ter a “cor errada”.
Uma ultraminoria rica e branca controla a riqueza, as oportunidades, o sentido da Justiça, a produção de leis, a construção simbólica da sociedade. Ela apresenta o 13 de Maio como representação da liberdade quando, em verdade, a data nos remete a uma abolição imperfeita e tardia, adiada ao longo da segunda metade do século 19 pelo poder econômico. Enquanto isso, o dia 20 de novembro, escolhido para celebrar a Consciência Negra e o protagonismo de homens e mulheres negros, é duramente criticado por muitos daqueles que dizem não haver racismo no Brasil.
Há muito mais negros entre os trabalhadores libertados da escravidão do que sua proporção na sociedade dada à vulnerabilidade histórica desse grupo social. Pois, se por um lado, o trabalhador escravizado contemporâneo é o pobre, por outro, o pobre tem cor de pele. E ela é principalmente negra.
Vulnerabilidade que só tende a crescer, ainda mais após a aprovação, pelo governo Michel Temer, da PEC do Teto dos Gastos – que limitou, por 20 anos, investimentos públicos em áreas como educação e saúde em nome da tranquilidade do mercado. E de uma Reforma Trabalhista, que reduz a proteção à saúde e segurança do trabalhador. Como pano de fundo, um desemprego de 13,1% (primeiro trimestre de 2018), com 13,7 milhões de desempregados, que cisma em não cair rapidamente. Ou seja, ao invés de estarmos caminhando para criar condições socioeconômicas e oportunidades a fim de reduzir os riscos de alguém ser escravizado, continuamos gerando mecanismos para tornar a vida dos mais humildes um inferno.
Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer, diante das Nações Unidas, a persistência de formas contemporâneas de escravidão. Foi o primeiro a criar uma política nacional efetiva de libertação de trabalhadores em 1995. O primeiro a lançar um plano integrado de combate ao crime em 2003 e a publicar, periodicamente, um cadastro com os infratores a partir do mesmo ano. Criou o primeiro pacto empresarial multisetorial contra a escravidão em 2005. E implementou ações pioneiras de repressão e prevenção que se tornaram referência em todo o mundo. Foram mais de 52 mil libertados.
Contudo, no ano passado, tornou-se o primeiro país a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em um caso de trabalho escravo por omissão. O governo foi o primeiro que se tem notícia a recorrer à Justiça para deixar de cumprir uma medida considerada exemplar pelas Nações Unidas no combate à escravidão, que era a publicação do cadastro de infratores, a “lista suja” do trabalho escravo. Provocou espanto quando, em agosto, o setor de fiscalização de trabalho escravo alertou que havia acabado o pouco dinheiro que o governo reservara para o combate a esse crime, dificultando operações.
E a parte mais inacreditável: em 16 de outubro de 2017, o Ministério do Trabalho publicou uma portaria alterando o conceito de trabalho escravo a ser utilizado em fiscalizações, resumindo-o a cárcere privado com vigilância armada. Se não fosse a sociedade dizer “não” e o Supremo Tribunal Federal bloquear a medida, tinha gente que não seria libertada por conta disso. No final das contas, o governo Temer teria trocado a dignidade do povo mais pobre para agradar ruralistas e de empresas da construção civil no momento em que tentava se livrar, no Congresso Nacional, da segunda denúncia criminal contra ele.
Para além da luta contra nosso racismo estrutural e da batalha para mantermos de pé o sistema de combate ao trabalho escravo contemporâneo, este momento abre um novo desafio. Precisamos proteger o ensino de História nas escolas contra a sanha estúpida de pessoas e movimentos que desejam que você saiba a data em que foi assinada a Lei Áurea, mas não seja instigada a refletir por que o 13 de maio de 1888 não garantiu autonomia aos negros e negras deste país. Se as novas gerações de não-negros não compreenderem isso, continuarão sendo um entrave na luta por equidade e dignidade. Provavelmente, continuarão agindo como nós que, não raro, somos atores da perpetuação da desigualdade por nossa ignorância ou má fé.
Ao invés de celebrar, que a data de hoje lembre que a História do sofrimento humano, que moldou a forma como nos relacionamos com o mundo e com as outras pessoas, deve ser conhecida e contada aos quatro ventos até entrar fundo na alma de nossas crianças e adolescentes. A fim de que nunca se esqueçam que a liberdade plena ainda é sonho distante para muita gente.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.