Lei 14.297/22: os direitos previstos

Uma perspectiva crítica sobre a lei que prevê medidas de proteção ao entregador que trabalha para aplicativos.

Guilherme Guimarães Feliciano e Ana Paula Miskulin

Fonte: Jota
Data original da publicação: 04/10/2022

Seguimos aqui com a penúltima parte – de um total de cinco colunas – do nosso estudo encetado em derredor da Lei 14.297/2022, que [d]ispõe sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela covid-19”. Seguiremos examinando, em perspectiva crítica, os direitos em espécie previstos na referida lei ordinária federal.

Voilà.

1) Seguro contra acidentes de trabalho

Nos termos do artigo 3º da Lei 14.297/22, a empresa de aplicativo deverá contratar um seguro-acidente em favor do entregador nela cadastrado. Tal seguro não terá franquia e deverá cobrir, obrigatoriamente, os acidentes pessoais, a invalidez permanente ou temporária e o evento morte. A cobertura, entretanto, aplica-se tão somente em caso de acidentes ocorridos durante o período compreendido entre a retirada e a entrega dos produtos (ou dos “serviços”[1]) contratados via aplicativo.

Neste aspecto, não ficou claro se haverá cobertura caso o acidente ocorra estritamente no trajeto entre o local de retirada (e.g., o restaurante-cliente) e o local da entrega (o consumidor) do produto ou serviço, ou se também alcançaria os acidentes havidos no percurso entre a residência do entregador e o local de retirada do produto/serviço (ou, adiante, entre o derradeiro local de entrega do produto/serviço e a residência do entregador).

Seguindo a linha da alteração legislativa trazida pela Lei 13.467/2017, que alterou o parágrafo 2º do artigo 58 da CLT para desconsiderar, como tempo de serviço, aquele gasto no percurso entre a residência e o local de trabalho, é bem provável que surjam vozes a defender que a cobertura estará limitada ao período entre a retirada e a entrega do produto/serviço.

Não é, porém, o melhor entendimento, inclusive à luz dos demais preceitos legais que devem ser examinados em conjunto com o próprio artigo 3º da Lei 14.297/2022, como, p. ex., os artigos 927, 932, 933 e 942 do Código Civil e o artigo 21, IV, da Lei 8.213/1991.

Demais disso, não é demais lembrar que, mesmo nos períodos destinados a refeição ou descanso, ou por ocasião da satisfação de outras necessidades fisiológicas, considera-se que o trabalhador está no exercício do trabalho, seja no local do trabalho ou então durante o trabalho, nos termos do art. 21, parágrafo 1º, da mesma Lei 8.213/1991.

Logo, é indefensável que a cobertura do seguro seja restrita ao momento entre a retirada do produto e a sua entrega ao destinatário; e, a bem de preservar o seu próprio patrimônio – e prevenir desembolsos inesperados –, andará bem a empresa de aplicativo que contratar o seguro do art. 3º da Lei 14.297/2022 para o “período de retirada e entrega” compreendido em sentido lato (i.e., desde o momento em que o trabalhador sai de sua residência para fazer as entregas até o momento em que, ao final do dia, retorna para a sua casa).

Aliás, ao se manifestar sobre a delimitação do tempo à disposição do aplicativo (Case n. 2202550Q/2015), a Suprema Corte do Reino Unido entendeu que “todo o tempo gasto por um motorista que trabalha sob um contrato de trabalho com a Uber Londres, incluindo o tempo gasto em serviço conectado ao aplicativo Uber Londres, disponível para aceitar uma solicitação de viagem, é tempo de trabalho”. Não poderia ser diverso no caso brasileiro, para os trabalhadores em aplicativos de entrega (e, por extensão, também aos trabalhadores em aplicativos de transportes). Isso porque, p. ex., nos próprios termos de serviços da Uber, há uma cláusula contratual que estipula que, a partir do momento em que o motorista está “logado” no aplicativo, ele deve manter um mínimo de taxa de aceitação; e, além disso, quando o cadastro é feito, nas mensagens de boas-vindas para os novos motoristas, a empresa deixa claro que “entrar em serviço significa que você está disposto e pode aceitar solicitações de viagem”.

Disso se deduz que o critério de se “logar” no  aplicativo terminou definido pela própria Uber London como sendo o momento a partir do qual os motoristas  têm a obrigação de aceitar trabalho, se lhes for oferecido; logo, já estão à disposição, para todos os efeitos (seja a quem for, i.e., aos estabelecimentos-clientes, aos consumidores ou – como entendemos – sobretudo à plataforma).

Ora, esse mesmo critério deve ser utilizado não só para mensurar a quantidade de horas à disposição da empresa, mas também para delimitar, na dimensão espácio-temporal, a cobertura por acidente de trabalho. É a intelecção mais adequada, para o Reino Unido, como também para todos os demais países em que estejam em funcionamento plataformas que ofereçam serviços “on demand” (como é o caso do Brasil).

Ademais, em caso de o trabalhador estar ativo em duas plataformas de forma simultânea, a responsabilidade da empresa deverá ser definida pontualmente, observando-se o disposto no parágrafo único da Lei 14.297/2022, segundo o qual, nesses casos, a indenização será paga pelo seguro contratado pela empresa para a qual o entregador prestava o serviço no momento do acidente”.

2) Assistência financeira

O segundo direito contemplado pela Lei 14.297/2022 diz respeito à proteção financeira contra a Covid-19, mediante a concessão de uma assistência financeira, a ser concedida ao entregador contaminado, que pode durar de quinze a quarenta e cinco dias (= duas prorrogações do período mínimo).

De acordo com o artigo 4º da Lei 14.297/2022, se o trabalhador for infectado pelo  coronavírus, fará jus a uma assistência financeira durante quinze dias, prorrogáveis duas vezes por igual período. Para reclamar o benefício, basta apresentar comprovante de resultado positivo para Covid-19, obtido por meio de exame RT-PCR ou de laudo médico que ateste condição decorrente da Covid-19, justificando o afastamento do trabalho.

Vale observar, mais uma vez, que a Lei 14.297/2022 não se imiscui na discussão em torno da natureza jurídica do vínculo entre o entregador e a empresa de aplicativos (“classification litigation”), de modo que a referida assistência financeira beneficiaria, em tese, entregadores empregados – embora as plataformas neguem sistematicamente essa condição – ou autônomos. Na prática, porém, a assistência terá interesse basicamente para entregadores autônomos, porque empregados terão aprioristicamente o direito ao auxílio-doença, ut art. 60 da Lei 8.213/1991; e, nesse caso, o valor mínimo equivalerá a um salário mínimo. Já no caso da assistência financeira do art. 4º da Lei 14.297/2022, a base de cálculo não será o piso correspondente ao salário-mínimo, como previsto originalmente no parágrafo único do artigo 4º da redação original do Projeto de Lei 1.665/2020 (que originou a Lei 14.297/2022); antes, será calculada com base na média dos últimos três pagamentos mensais percebidos pelo entregador.

E, nessa ordem de ideias, qual será a base de cálculo para contratos com duração inferior a três meses? Nesse caso, caberá entender que o cálculo ainda assim se realizará à base mensal, com ou sem projeção (i.e., a média aritmética simples dos últimos dois meses, ou o valor do único mês trabalhado, ou ainda, por projeção, o valor mensal equivalente a trinta dias de trabalho, pela média diária dos dias trabalhados entre o início da atividade laboral plataformizada e a inaptidão para o trabalho). Outra interpretação – como, p. ex., a de que a assistência não seria devida a entregadores com menos de três meses – violaria, a um tempo, a dignidade constitucional do trabalho, o direito fundamental à proteção social contra sinistros e o próprio vetor hermenêutico do “in dubio pro operario” (que, a nosso sentir, tanto alcança trabalhadores subordinados como trabalhadores economicamente dependentes).

3) Medidas preventivas contra a Covid-19

Apesar da previsão legal para o caso de contaminação pelo Sars-Cov-2, o artigo 5º da Lei 14.296/2022 trata de uma questão antecedente, voltada à prevenção. Trata-se do direito à informação quanto aos riscos do coronavírus e quanto aos cuidados necessários para se prevenir do contágio e para evitar a disseminação da doença. Ainda nessa ordem de ideias, dando concreção ao princípio constitucional do art. 5º, XXII (risco mínimo regressivo ou melhoria contínua), a lei determina que as empresas de aplicativo disponibilizem máscaras e álcool em gel (ou outro material higienizante), a todos os entregadores, para proteção pessoal durante as entregas. Tais equipamentos podem ser fornecidos diretamente ou por meio de reembolso das despesas efetuadas pelo entregador para tal finalidade.

Neste aspecto, a redação final da lei também sofreu uma sensível piora em relação ao texto original do PL 1.665/2020, cujo parágrafo 1º do artigo 5º previa que deveriam ser fornecidas, aos entregadores plataformizados, não apenas máscaras e álcool, mas também luvas para proteção pessoal (visando ao uso durante as entregas) e material para a limpeza da mochila, da bicicleta, da motocicleta do capacete e/ou de outros itens utilizados para a entrega de produtos e serviços, além do acesso à água potável e à alimentação (esses mantidos, como se dirá) e a um espaço seguro para descanso entre as entregas.

A previsão original busca arrostar, como se vê, um problema social visível nas ruas dos grandes centros[2], onde é comum notar um aglomerado de entregadores com suas mochilas, instalados em calçadas, esquinas ou praças, descansando sob o céu aberto ou aguardando o chamado para a próxima entrega.

Por fim, a última medida destinada à prevenção contra o contágio da doença está prevista no artigo 7º da Lei 14.297/2022, segundo o qual “a empresa de aplicativo de entrega e a empresa fornecedora do produto ou do serviço deverão adotar prioritariamente forma de pagamento por meio da internet”. Segundo a redação original do projeto (parágrafo único do artigo 8º), a empresa de aplicativo deveria adotar “todos os cuidados para evitar o contato do entregador, caso seja necessário utilizar dispositivo eletrônico ou outro instrumento para a cobrança”. Já não é mais assim.

Aguardamos as suas sugestões e as suas críticas, amigo leitor, pelo e-maildunkel2015@gmail.com. Lembre-se: você é réu do seu juízo! Até o próximo texto, com os derradeiros direitos dos entregadores por aplicativos: medidas protetivas contra a Covid 19, água potável, acesso a sanitários, transparência e… vínculo empregatício. Quid iuris?…

[1] Seja lá o que se possa entender por “retirada” e “entrega” de serviços

[2] Há pouco mais de um ano, reportagem do G7 mostrou a realidade de trabalhadores durante uma pausa para descanso no metrô Santa Cruz, em São Paulo. Disponível emꓽ https://noticias.r7.com/economia/entregadores-trabalham-mais-de-12h-por-dia-para-sustentar-familia-29062022. Acesso em 29 ago 2022.

Guilherme Guimarães Feliciano é juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019.

Ana Paula Miskulin é juíza do Trabalho do TRT 15. Mestre em Direito do Trabalho pela USP. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UFG. É pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão “O trabalho além do Direito do Trabalho” (USP). Professora de diversos cursos de pós-graduação e escolas judiciais. Autora do livro “Aplicativos e Direito do Trabalho: a era dos dados controlados por algoritmos”. Coordenadora de diversas obras sobre Direito do Trabalho e Tecnologia.

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