Klaus Dörre e uma nova teoria para o capitalismo

O capitalismo é um sistema sempre em expansão, que depende constantemente da colonização de um “outro” não capitalista, ou menos capitalista, em seu processo ininterrupto de expropriação.

Fabrício Maciel

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 03/11/2022

O capitalismo é um sistema em constante transformação, o que exige o esforço ininterrupto para sua reinterpretação. Não é outra a tarefa que vem sendo assumida há anos pelo sociólogo alemão Klaus Dörre, o que o transformou em um dos principais intérpretes do capitalismo contemporâneo. A publicação recente, pela Boitempo, de seu livro Teorema da expropriação capitalista, oferece ao público brasileiro uma excelente chance de conhecer a fundo a obra deste autor, urgente diante dos dilemas atuais que enfrentamos.

Klaus Dörre se tornou conhecido no cenário alemão, e no atlântico norte como um todo, por várias razões. Ele é, sem dúvida, um dos nomes que vem renovando o marxismo contemporâneo, sendo hoje também bastante lido no cenário latino-americano. Além disso, é um dos autores pioneiros nos debates sobre precariedade e precarização do trabalho na Alemanha, tendo organizado, por exemplo, ao lado de Robert Castel, a coletânea Prekarität, Abstieg, Ausgrenzung [Precariedade, Rebaixamento, Exclusão], publicada em 2009. Com a participação de autoras e autores de peso, o livro se tornou rapidamente uma referência na Europa.

Ainda em 2009, em pleno contexto da crise econômica global iniciada no ano anterior, Dörre protagonizou um dos principais debates atuais sobre o capitalismo contemporâneo, ao lado de seus colegas Hartmut Rosa e Stephan Lessenich. Os três publicaram juntos o livro Soziologie – Kapitalismus – Kritik [Sociologia – capitalismo – crítica], no qual confrontaram suas teorias da expropriação capitalista (Dörre), aceleração (Rosa) e ativação social (Lessenich). Este livro se tornou também rapidamente uma referência central para as discussões sobre o capitalismo no cenário pós-crise de 2008, com o qual os três autores, reconhecidos como os principais representantes da “Escola de Jena”, marcaram presença decisiva no debate.

A obra de Dörre pode ser situada também no contexto não só de renovação do marxismo alemão e europeu, mas também como contribuição decisiva para a renovação da teoria sociológica em sua totalidade. Depois de um amplo período de dominação de teorias que evocavam um suposto fim da centralidade do trabalho e das classes como categorias interpretativas, iniciado nos anos de 1980, presenciamos agora o retorno da vitalidade de tais conceitos, ao lado da própria ideia de capitalismo, especialmente após 2008. Ou seja, a própria realidade capitalista e o acirramento global de suas múltiplas desigualdades exigiram a revisão de tais teorias.

Neste cenário, Dörre sempre se mostrou um teórico dinâmico, dialogando com perspectivas diversas, não apenas reconstruindo o belo marxismo de autoras como Rosa Luxemburgo, de quem recupera o conceito de Landnahme [expropriação], mas passando por autoras como Hannah Arendt e debatendo criticamente com as obras de Bourdieu e Boltanski, dentre outros. Com isso, o autor mostra que a vitalidade da teoria depende do sério enfrentamento de suas diversas configurações atuais.

Recentemente, Klaus Dörre publicou o livro Die Utopie des Sozialismus: Kompass für eine Nachhaltigkeitsrevolution [A utopia do socialismo: compasso para uma revolução sustentável] (2021), no qual apresenta para o grande público algumas de suas ideias centrais, que vem desenvolvendo há anos, dentre elas a de que uma revolução sustentável é imprescindível nos países centrais do capitalismo, diante da dupla crise, econômica e ecológica, na qual se encontram.

No Brasil, a obra do autor vem sendo paulatinamente conhecida nos últimos anos. Ele participou, por exemplo, de uma das conferências do congresso anual da ANPOCS, em 2017, e do congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, virtualmente, em 2021. Além disso, publicou o artigo intitulado “A nova Landnahme: dinâmica e limites do capitalismo financeiro”, na revista Direito & Praxis (UERJ), em 2015, e o artigo “Capitalismo de risco. Landnahme, crise bifurcada, pandemia. Chance para uma revolução sustentável?”, na revista Sociedade & Estado (UnB), em 2020.

Agora, com a publicação Teorema da expropriação capitalista em português, temos acesso a um conjunto de textos que sintetizam bem a vasta produção do autor e a sua análise teórica. O livro é mais uma excelente publicação da coleção “Mundo do trabalho”, coordenada por Ricardo Antunes, contando ainda com apresentação de Guilherme Leite Gonçalvesorelha de Lena Levinas e quarta capa de Ruy Braga e Virgínia Fontes.

O livro é didaticamente dividido em três partes, sendo elas: Teoria geral do regime de expropriação capitalista (I), Expropriação capitalista e classes sociais (II) e O retorno da sociologia crítica (III). No capítulo 1, na parte 1, o autor apresenta sua teoria da Landnahme capitalista, traduzida aqui como “expropriação”. Com este conceito, Dörre procura tematizar que o capitalismo é um sistema sempre em expansão, que depende constantemente da colonização de um “outro” não capitalista, ou menos capitalista, em seu processo ininterrupto de expropriação.

Este “outro” pode ser configurado por países, povos, classes sociais, grupos e até mesmo dados, tema este hoje de profunda importância, os quais não estejam ainda totalmente submetidos à lógica total do lucro. Ao explicar “o que é o capitalismo?”, o autor revisa, dentre outros, a importante obra de Karl Polanyi, para quem a liberdade positiva só pode existir exclusivamente através da restrição e regulação das forças de mercado. Ou seja, exatamente o contrário do que vivenciamos hoje em escala global.

Ao procurar compreender “como o capitalismo se desenvolve?” Klaus Dörre faz uma importante distinção entre economia de mercado e capitalismo, o qual considera “um sistema absurdo”. Ao reconstruir a “generalização da tese da expropriação capitalista”, passando por Hannah Arendt e Rosa Luxemburgo, além de Gramsci e David Harvey, o autor compreende que regimes de acumulação, modos de regulação e modelos de produção são constantemente derrubados e transformados para a autopreservação do capitalismo. Além disso, o autor apresenta uma bela análise da economia mista do capitalismo social-burocrático e da crise do fordismo. Ao tematizar o que há de “novo” no capitalismo financeiro, Dörre apresenta como resposta o fato de que a precarização é consequência de um regime de expropriação capitalista com motivação financeira que deforma, prejudica e enfraquece instituições e sistemas de regulação do mercado.

No capítulo 2, Klaus Dörre mostra como o norte global enfrenta dilemas de crescimento, sendo incapaz de promover autoestabilização expansiva com crescimento sustentável. Com isso, o autor compreende que, para sua autoestabilização, as sociedades capitalistas exigem um aumento contínuo da riqueza social, que pode ser alcançado apenas por meio da internalização de espaços externos, antes inexplorados e agora mercantilizados. Recorrendo a Hannah Arendt, Dörre mostra que a acumulação de capital supostamente ilimitada precede a acumulação de poder igualmente ilimitado, em sua autolegitimação ideológica. Além disso, ele compreende a crise de 2008-2009 como uma condensação espaço temporal dos limites autoimpostos de acumulação e reprodução do capitalismo financeiro. Diante disso, Klaus Dörre é incisivo ao afirmar que falta coragem para a renúncia expansionista no norte global.

Em busca de saídas, Dörre compreende que a transição para “sociedades pós-crescimento” parece utópica, pois afeta a socialização capitalista. Mesmo assim, para ele, existem pontos de partida nas sociedades atuais. A economia capitalista já não pode mais existir em sua forma pura. Continua dependente de setores que não funcionam de acordo com os imperativos de crescimento e do lucro. Aqui, Dörre tem em mente, por exemplo, os trabalhos de cuidados. Ou seja, existe saída para a lógica da expropriação capitalista.

No terceiro capítulo, agora na parte 2, Klaus Dörre reconstrói a discussão contemporânea sobre a precariedade, que ele criativamente define como “imposição de um sistema de constantes provas de força para as classes populares”. Ele também compreende a precariedade como categoria relacional, que depende diretamente da definição dos padrões sociais de normalidade vigentes em cada sociedade. Com isso, o autor define a Alemanha, país central que, assim como outros atualmente, sofre com a precariedade, como uma “sociedade precária de pleno emprego”.

O autor entende ainda a precariedade como um mecanismo de disciplinamento que pode fomentar tendências xenófobas e populistas de direita, mas também pode levar a protestos. Esta definição é possível a Klaus Dörre depois de realizar anos de pesquisa empírica na Alemanha, nos quais mostrou quais as razões que sempre levaram frações consideráveis da classe trabalhadora a aderir a sentimentos da extrema direita. Por fim, Dörre percebe sociedades como a brasileira enquanto “sociedades precárias”.

No capítulo 4, o autor vai defender a tese de que a Alemanha e outros países desenvolvidos estão passando por uma transição de uma sociedade de classes pacificada pelo fordismo para uma sociedade de classes mais polarizada, ainda que caracterizada por uma peculiar estabilização do instável. A força motriz para tanto se encontra nas expropriações, agora também intensificadas no centro do capitalismo.

No capítulo 5, já na parte 3, Dörre vai mostrar como nos Estados centrais a segurança interna se torna agora o foco da ação política, em lugar da segurança social. Surgem neste cenário novas “classes perigosas”, cuja simples existência vai legitimar expropriações cada vez mais autoritárias por parte do Estado. Para tanto, o autor vai fazer uma discussão crítica com a antropologia reflexiva de Pierre Bourdieu e os fundamentos de uma sociologia do Estado por ele oferecida. Partindo da interessante metáfora do “Estado predador”, que surge no cenário francês do governo Sarkozy, Dörre vai analisar como o fortalecimento do Estado policial condiciona em grande medida o estigma das “subclasses”. Neste capítulo, o autor mostra também o mecanismo causal da formação de subclasses no âmbito do capitalismo financeiro que, para ele, impulsiona este processo.

No capítulo 6, é retomada a relação entre teoria crítica e crise, que precisa se articular ao conceito de regime de expropriação capitalista. Para tanto, Klaus Dörre aponta que a corrente predominante da teoria crítica mais recente se apropria de uma interpretação do capitalismo que se encontra na tradição de paradigmas neo-harmônicos. Com isso, temos uma recusa das interpretações político-econômicas das crises e seus fundamentos, mediante uma teoria dos regimes de expropriação capitalistas. Por fim, o autor busca reflexões acerca das crises econômico ecológicas e dos novos desafios para uma teoria crítica das crises capitalistas. Esta reflexão é de tamanha importância para os dias atuais, nos quais fala-se muito em crise, de maneira imprecisa e tendendo-se a naturalizar as crises do capitalismo.

Além disso, o autor vai mostrar, de modo a compreender a crise atual nos países centrais, com especial referência ao caso alemão, três aspectos centrais. Primeiro, é preciso entender a estagnação secular e o capitalismo pós crescimento. A isso é necessário articular as expropriações internas e externas de cada país. Por fim, não se pode ignorar a bifurcada crise econômico ecológica que hoje assola as economias centrais do atlântico norte.

Diante de tamanha riqueza analítica, amparada em anos de pesquisa empírica, a leitura desta obra prima de Klaus Dörre não é simplesmente obrigatória, mas também um alento em tempos tão difíceis. O diagnóstico geral não pode ser otimista, em uma época tão obscura, marcada por uma crise múltipla que afeta todas as dimensões de nossa existência. Só nos resta, diante disso, a busca por conhecimento profundo e cientificamente embasado, em tempos de negacionismo intelectual, político e afetivo. O livro de Klaus Dörre é uma contribuição decisiva nesta direção, contribuindo para que possamos vislumbrar utopias viáveis em um futuro bem próximo.

Referências

CASTEL, Robert; DÖRRE, Klaus. Prekarität, Abstieg, Ausgrenzung. Die soziale Frage am Beginn des 21. Jahrhunderts. Frankfurt; New York: Campus Verlag, 2009.

DÖRRE, Klaus. A nova Landnahme: dinâmica e limites do capitalismo financeiro. Direito & Praxis, UERJ, v. 6, n.3, 2015.

DÖRRE, Klaus. “Capitalismo de risco. Landnahme, crise bifurcada, pandemia. Chance para uma revolução sustentável?”. Sociedade & Estado, UnB, v. 35, n.3, 2020.

DÖRRE, Klaus. Die Utopie des Sozialismus. Kompass für eine Nachhaltigkeitsrevolution. Berlin: Matthes & Seitz, 2021.

DÖRRE, Klaus; ROSA, Hartmut; LESSENICH, Stephan. Soziologie – Kapitalismus – Kritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009.

Fabrício Maciel é professor de Teoria Sociológica na UFF/Campos e no PPG em Sociologia Política da UENF. Bolsista de produtividade do CNPq. Atualmente, professor visitante na Universidade de Jena, Alemanha.

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