Comprimem-se as despesas com educação e saúde, corta-se o Bolsa Família. Só uma torneira do Estado continua a jorrar abundantemente: a dos juros da dívida pública.
Paulo Kliass
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 06/06/2018
A crise de abastecimento acentuada pelo movimento dos caminhoneiros, a tentativa de paralisação dos petroleiros abortada pela arbitrariedade da Justiça do Trabalho e a comemorada renúncia de Pedro Parente do comando da Petrobras terminaram por ofuscar a divulgação das tenebrosas informações oficiais a respeito dos efeitos provocados pela política fiscal do governo Temer.
No dia 30 de maio, às vésperas do feriado de Corpus Christi, o Banco Central tornou pública a versão mais recente de sua tradicional Nota sobre as Estatísticas Fiscais. Dentre as inúmeras informações constantes do documento elaborado todos os meses, salta aos olhos a continuidade da monumental despesa financeira do governo central. Esse tipo de gasto está intimamente associado ao pagamento de valores derivados dos compromissos com juros da dívida pública.
O aprofundamento da política do austericídio, a partir da consumação do golpeachment perpetrado contra Dilma Roussef e contra a ordem constitucional, só serviu para agudizar a crise econômica e suas consequências políticas e sociais. Ao contrário do que havia sido prometido pelos arautos da solução golpista, a chegada do time dos sonhos ao comando da economia não resolveu os problemas enfrentados pelo País. A duplinha dinâmica do financismo manteve a estratégia iniciada ainda por Joaquim Levy, ampliando a recessão e generalizando a desgraça do desemprego.
Austericídio e superávit primário
Meirelles & Goldfajn conseguiram patrocinar a maior redução do PIB de nossa História. O discurso oficial articulou-se de forma bem azeitada com a narrativa propagada pelos grandes meios de comunicação. De acordo com tal enredo farsesco, a situação das contas públicas era catastrófica, o risco de inflação elevada era iminente e a única solução possível residia no estrangulamento fiscal a qualquer custo. Com isso, a política monetária de juros estratosféricos deveria se combinar à política fiscal restritiva. Esse diagnóstico criminoso foi coroado com a Emenda Constitucional 95, que impôs o congelamento das despesas orçamentárias por vinte longos anos.
No entanto, havia um detalhe especialmente maquiavélico nesse jogo de cena todo. Trata-se da continuidade da lógica e do funcionamento da armadilha do superávit primário. De acordo com tal visão, a sociedade brasileira deveria mesmo sofrer todos os sacrifícios dos cortes em áreas essenciais como saúde, educação, previdência social, pessoal, investimentos e outros. O argumento continha um certo quê de sofrimento merecido. Seria uma espécie de castigo por ter se permitido viver a época daquilo que era equivocadamente qualificado como “populismo irresponsável” na condução da política econômica desde 2003.
Mas o pulo do gato embutido pelo poder do financismo era praticamente ignorado pela grande imprensa, sempre tão zelosa em suas loas à eficiência e à competência da equipe à frente do Ministério da Fazenda. Esse carnaval todo desfilado a favor da seriedade com que a política fiscal estava sendo levada a cabo ignorava que as referências eram sempre feitas à dimensão “primária” dos gastos. Traduzindo-se o economês, percebe-se que as despesas com juros seguia livre, leve e solta. Ou seja, com os interesses da turma da finança ninguém ousava mexer. Afinal, eles mesmos eram os formuladores e os executores da política de destruição nacional.
R$ 30 bi no mês e R$ 381 bi no ano
Durante o último mês de abril, o Estado brasileiro comprovou, em mais uma oportunidade, a serviço de quem opera. Foram R$ 29,7 bilhões relacionados a despesas com juros da dívida pública. Isso significa a bagatela de R$ 1,24 bi por cada dia útil naquele período. Considerando-se a gravidade da crise social e a crueldade com que as autoridades da economia seguem promovendo cortes draconianos nos programas emergenciais e de amplo alcance, esses números revelam-se ainda mais chocantes. Mas a prioridade do Palácio do Planalto ficou mais uma vez cristalina para todos: com juros ninguém mexe! E ponto final!
A observação detalhada do boletim divulgado pelo BC nos permite concluir que, ao longo dos 12 meses compreendidos entre maio de 2017 e abril de 2018, o total gasto com juros foi de R$ 381 bi. Uma loucura! Ainda mais se levarmos em conta que esse tipo de “despesa nobre” não sofre contingenciamento algum e nem está submetida a nenhum tipo de congelamento como todas as demais. O governo federal fica nesse jogo de empurra com a questão das fontes de receita para resolver a (necessária) mudança na política de preços da Petrobras. E vai sacrificar as contribuições que sustentam a seguridade social ou quer repassar a batata quente para o colo dos governadores, via redução do ICMS. Mas responsabilidade fiscal com gasto parasita ninguém se atreve a mencionar.
Alguns poderão argumentar que essa despesa financeira está em queda. E é importante reconhecer que tal fato é verdade! Senão, vejamos. Ao longo de 2016, por exemplo, o total de gastos com juros da dívida foi de R$ 407 bi. Em 2017 esse número registrou R$ 401 bi. A diminuição foi pífia. No entanto, o problema é que ao longo desse período houve uma paulatina redução da taxa oficial de juros. Com a queda da SELIC, nada mais razoável do que se esperar por uma queda no volume de juros associados ao estoque da dívida pública.
E segue a dominância do financismo
E com isso percebe-se, mais uma vez, como a força dos interesses financeiros é devastadora. A redução da taxa definida pelo COPOM não foi suficiente para reduzir o volume de encargos financeiros que o governo federal assume para si e transfere para o 1% do topo de nossa pirâmide da desigualdade. Afinal a taxa média SELIC em 2016 havia sido de 14,2%, foi reduzida para 10,3% em 2017 e caiu para 8,2% para o período recente. A tabela abaixo nos indica que, caso o montante de despesas com juros tivesse acompanhado a queda na SELIC, as despesas a esse título dos últimos 12 meses deveriam ter sido reduzidas em quase 40%. O montante seria de R$ 232 bi ao invés dos R$ 381 bi efetivamente realizados.
Ocorre que seguimos vivendo sob a dominância do financismo. Podemos analisar os dados do último mês, do último trimestre, do último semestre, do último ano, do último triênio, do último quinquênio. E não tem jeito. As despesas realizadas pelo governo com a dimensão financeira seguem as campeãs absolutas.
O mais impressionante é que os dados são públicos e oficiais. Basta o indivíduo entrar na página do Resultado Mensal do Tesouro Nacional e observar as tabelas. Assim, percebe-se a permanência dessa tendência desde que a série foi iniciada em 1997. A preços de abril de 2018, por exemplo, ao longo desses quase 21 anos o País direcionou o equivalente a R$ 4,8 trilhões dos sucessivos orçamentos da União para o pagamento de juros. Esse valor representa em torno de 25% do total de todas as demais despesas não-financeiras realizadas ao longo dessas duas décadas. Uma completa inversão de valores em relação ao que deveria ser o foco prioritário das políticas públicas de uma nação tão desigual como a nossa.
O povo continua na miséria e vai pagando sua cota no sacrifício imposto pela lógica do ajuste. Enquanto isso, as despesas com juros seguem a todo vapor. Esse é o triste retrato do Brasil.
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.