O Brasil é um dos piores lugares para um jornalista exercer sua profissão de acordo com organizações que sistematizam e analisam casos de violência e assassinatos.
Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 01/05/2020
Jornalistas têm relatado os impactos econômicos da pandemia de coronavírus na vida dos trabalhadores. Mas, apesar de não sofrerem o mesmo impacto que categorias mais vulneráveis, profissionais de imprensa também são afetados.
Para além do excesso de trabalho e da estafa de realizar uma atividade que se tornou mais intensa devido ao aumento de demanda da sociedade por informação, muitos reclamam de outros problemas, como pressão para aceitarem acordos individuais com base na Medida Provisória 936 – editada pelo governo, chancelada pela Suprema Corte. O Primeiro de Maio serve, portanto, para nos lembrar que jornalistas também são trabalhadores, apesar de, não raro, nos esquecermos disso.
O Brasil é um dos piores lugares para um jornalista exercer sua profissão de acordo com organizações que sistematizam e analisam casos de violência e assassinatos, como a Repórteres Sem Fronteiras e a Artigo 19. Ao mesmo tempo, parte das instituições do Estado brasileiro não dá a mínima se um jornalista é ferido ou morto. Pelo contrário, parece que, às vezes, torce por isso. Ainda mais se os alvos forem mulheres.
Em meio ao ódio semeado pelo grupo político no poder, que elevou os ataques a profissionais de imprensa a patamares só comparáveis a regimes autoritários, deixamos de perceber que há outras formas de assédio, que passam em silêncio em comparação ao absurdo da violência institucional.
Já fui cuspido, agredido fisicamente e recebi ameaças de morte na rua por conta do meu trabalho. Mas tenho a sorte de trabalhar para veículos de comunicação que sempre me deram apoio e respaldo, técnico, jurídico e financeiro, ou seja, tranquilidade, para que realizasse meu trabalho. Suporte que continua inalterado mesmo durante a crise. De acordo com colegas com quem converso, há também outros locais que vêm fazendo malabarismos para não reduzir a proteção de seus jornalistas e merecem reconhecimento.
A sensação de segurança faz uma diferença brutal na vida de trabalhadores que estão desempenhando uma atividade essencial, levando informação para uma sociedade ilhada e com medo.
Empresas de mídia, governantes (pelo menos o naco que evoluiu para além da Idade Média), a chamada “opinião pública esclarecida” e nós, os próprios jornalistas, demonstramos certa satisfação e orgulho em dizer que jornalismo é serviço essencial em meio à pandemia. Bonito. Mas na hora em que a discussão vai para o custo disso, esse sentimento fica acanhado.
Parte dos anunciantes desaparece e dos atores da chamada opinião pública se ausenta, finge que não tem nada a ver com o tema. E há uma parcela dos empregadores que parece esquecer a essencialidade do discurso que fazia até meia hora atrás, descarregando o ônus no elo mais frágil dessa cadeia.
A questão aqui não é que jornalistas querem ser privilegiados em relação a outras categorias que estão aceitando medidas para atravessar a crise, mas também desejam proteções mínimas e garantias que outras empresas de mesmo porte estão concedendo. E participação a negociações abertas, coletivas e transparentes. Afinal, transparência é o que cobramos de governos.
Se a insegurança já está presente em redações de grupos de comunicação que alijam sindicatos de negociações, imagine o que acontece em empresas que não estão sob os holofotes.
Devido às peculiaridades da nossa profissão, nós, jornalistas, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que essa situação não é real e que também somos operários, transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são mais passíveis de serem remunerados em determinado lugar.
E isso atinge a todos: focas e veteranos, especialistas e generalistas, casados e solteiros, os que recebem altos salários e os que ganham abaixo do piso, conservadores e progressistas, “governistas chapa-branca” e “oposição golpista”. E se em veículos da imprensa tradicional, ouve-se que é “privilégio trabalhar em grande veículo”, não raro na mídia alternativa escuta-se que “o mais importante é a causa”.
A crise econômica aliada à crise do modelo de financiamento do próprio jornalismo (a publicidade em meios tradicionais despenca, migrando para redes sociais e mecanismos de busca) é uma tempestade perfeita que já estávamos enfrentando mesmo sem pandemia assassina. Ao passo que o Brasil em convulsão política, social e econômica nunca exigiu tanto da produção de boas reportagens – antídoto para a desinformação e as notícias falsas.
Infelizmente, parte da sociedade não entende ataques a jornalistas e sua fragilização como um soco na liberdade de expressão, um pilar da democracia. Vê isso como uma manifestação do descontentamento ao estado das coisas. Incendiada por conteúdos superficiais distribuídos principalmente pelas redes sociais e não acostumada ao debate público de ideias, à aceitação da diferença de opinião e à empatia pelo outro, há quem – à direita e à esquerda – diga “bem-feito” aos jornalistas diante de demissões. Chamam de “lixo” o trabalho da imprensa, mesmo que a maior parte do conteúdo que consomem venham dela.
Sociedade, poder público, empresas de mídia, anunciantes deveriam cuidar da integridade e da vida dos jornalistas. Caso contrário, podemos passar a acreditar que servimos apenas para ilustrar um discurso bonito.
Vale lembrar que nós mesmos cometemos violências contra nossos colegas diariamente. Ao ficarmos calados diante de ataques verbais cometidos por políticos que se dizem o novo, mas cheiram a naftalina. Ou quando, diante da organização das jornalistas contra o assédio, rimos e chamamos isso de “coisa de feminazi”. Ou ainda, ao vermos ondas de demissões, não nos organizarmos para dialogar sobre as explicações técnicas e financeiras para o que está acontecendo mas, pelo contrário, nos afundamos o mais baixo possível em nossas baias, torcendo para não sermos vistos nessa vez.
A greve geral que começou no dia Primeiro de Maio de 1886, em Chicago, nos Estados Unidos, exigindo a redução da jornada de trabalho para oito horas por dia, acabou em tragédia, com manifestantes e policiais mortos e sindicalistas condenados (injustamente) à morte. Nos anos seguintes, a data foi escolhida para ser um dia de luta por condições melhores de trabalho. Menos nos Estados Unidos, em que o Labor Day é na primeira segunda-feira de setembro.
Desde então, a mobilização de trabalhadores, que se reconhecem como tais e percebem o peso de crises muitas vezes recai sobre eles, não apenas manteve salários, mas já ajudou a derrubar regimes, a democratizar países, a mudar o rumo da história.
Parabéns, trabalhadores. Mesmo que acreditem que isso não é com vocês.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative – Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de “Pequenos Contos Para Começar o Dia” (2012), “O que Aprendi Sendo Xingado na Internet” (2016), entre outros.