Para Jessé, a classe média é o atual capataz da elite, organizando, controlando, pregando valores e visões de vida.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: Conjur
Data original da publicação: 30/05/2021
Jessé Souza é um pensador polêmico. Jessé Souza é um pensador corajoso. “A Elite do Atraso” é um livro que enfrenta explicações simplificadoras da realidade brasileira. Jessé descortina os equívocos de conceitos que radicam em lugares-comuns, a exemplo de “homem cordial”, “patrimonialismo”, “jeitinho brasileiro”, “populismo”. Em “A Elite do Atraso” tem-se um acerto de contas com o legado dos explicadores oficiais do Brasil. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta são os autores escrutinados nesse livro seminal para um esforço de compreensão do Brasil. Há alguma concessão para com Florestan Fernandes.
O tema central do livro é o espólio intelectual marcado por fortíssimo racismo, que reduziria a nós brasileiros a párias e continuadores de uma trajetória da qual não conseguiremos nos livrar. As explicações tradicionais nos matizam como vira-latas. A ideia está freudianamente contida no “complexo de vira-lata”, expressão cunhada por Nelson Rodrigues, ainda que em outro contexto, ligado ao futebol. De acordo com Jessé, somos reféns de uma herança maldita, marcada por clichês. Essa tradição intelectual se apresenta como uma reminiscência crítica. No entanto, deixa de levar em conta nosso principal problema, que predica na escravidão, e nas suas formas atuais, que se relevam, entre outros, pelo ódio que a classe média tem em relação ao pobre.
O livro é dividido em três núcleos temáticos, em forma de capítulos, relativamente autônomos. Jessé trata da escravidão como nosso berço, apresenta as classes sociais do Brasil moderno, discorre sobre o tema da corrupção. Quanto a esse último tema, Jessé argumenta que há uma falsa concepção de que a corrupção na política seria o grande problema nacional. Aponta para uma corrupção real, protagonizada por banqueiros e rentistas, que nos prejudicaria muito mais.
Em “A Elite do Atraso”, Jessé critica o livro de Sérgio Buarque de Holanda. Afirma que em “Raízes do Brasil” tem-se uma narrativa totalizadora, que pretende resolver problemas centrais (de onde viemos, quem somos e para onde vamos), exatamente como ocorre nas experiências religiosas. Em “Raízes do Brasil” pode-se alcançar um discurso legitimador da dominação oligárquica. Jessé aponta os paradoxos dessa mensagem. Afirma que o autor é incensado pela direita e pela esquerda. Porta-voz do liberalismo conservador, Sérgio Buarque seria contraditoriamente reivindicado pelo progressismo político. Não nos esqueçamos que Sérgio foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT).
Em “A Elite do Atraso”, Jessé também critica a obra de Gilberto Freyre, que define como uma figura demiúrgica de nossa tradição cultural. Jessé reconhece os valores da obra de Freyre, especialmente quanto à fixação de um sentimento brasileiro de identidade nacional. Antes do escritor pernambucano não havia essa percepção, não obstante sua necessidade teria sido intuída, entre outros, por José Bonifácio. Freyre, na leitura de Jessé, construiria a matéria-prima para o conceito de homem cordial de Sérgio Buarque.
Influenciado por Franz Boas (com quem estudara nos Estados Unidos), Freyre teria utilizado uma interpretação culturalista, que se ressentia, no entanto, de uma fortíssima herança do racismo genético, que viceja com foros de ciência. Era o paradigma até 1920, que de acordo com Jessé estava centrado em uma concepção fenotípica. O traço definidor do excluído era a cor da pele. O culturalismo referenciava-se em um estoque cultural, que seria hereditário.
Seu zênite ocorreria na obra de Talcott Parsons, fortemente influenciado por Max Weber, que traduziu para o inglês. Desenha-se, nesse modelo, uma concepção valorativa de norte-americanos, que se entenderiam superiores aos africanos e a nós, latino-americanos. Nessa percepção, segue Jessé, os norte-americanos se entenderiam como objetivos, pragmáticos, antitradicionais, universalistas e produtivos. Essa ideia, acrescento, viveu foros de verdade no Brasil. Ao longo dos anos 60 os norte-americanos eram elogiados até mesmo pelos hábitos alimentares: o vigoroso café da manhã que tomavam seria prova irrefutável dessa verdade que se tinha por incontestável. Eram superiores. E nós pensávamos que éramos inferiores. Chega.
Jessé aponta para várias ambiguidades na construção conceitual de Gilberto Freyre. A ideia de uma cultura única resultaria também de uma falsa concepção de continuidade histórica que ligaria o Brasil a Portugal. Segundo Jessé, o “culturalismo cultural [que] refaz a fantasia da continuidade com Portugal (…) é falsa da cabeça aos pés”. Para Jessé, há em Gilberto Freyre um conjunto de generalizações carregadas de preconceitos pré-científicos.
A par de “Casa Grande & Senzala”, Jessé fez referência a “Sobrados & Mocambos”. Nesse último se constataria a passagem do patrimonialismo rural para sua forma urbana. O sobrado, segundo Jessé, seria o prolongamento material da personalidade do poderoso senhor de escravos. Com o processo de urbanização, concomitante ao alargamento do Estado, este último arrebanharia os filhos do senhor, drenando-os para as tarefas burocráticas. É a origem social de juízes, advogados, delegados e fiscais. Dessa elite que de algum modo se desmantelava surgia uma classe média incipiente, cujo valor será aferido pelo capital cultural.
Na visão bem informada de Jessé há um embuste em torno do patrimonialismo. O autor de “Os donos do poder”, Raymundo Faoro, teria instrumentalizado uma apropriação malfeita de uma categoria weberiana, inaplicável ao contexto brasileiro. Teria havido uma utilização inadequada, por parte de Faoro, de conceitos de matriz weberiana. Jessé conhece profundamente a obra de Max Weber, sobre quem publicou extensivamente. Faoro teria utilizado esse conceito de modo estático e não histórico. Pretendia demonstrar um suposto caráter patrimonialista no Estado brasileiro, circunstância que radicaria na experiência medieval portuguesa. Reconhecendo que a narrativa de Faoro se mostra elegante e erudita, Jessé, no entanto, aponta os desacertos da aplicação do conceito de patrimonialismo à realidade brasileira. De acordo com Jessé, Weber havia tratado o tema do patrimonialismo no contexto dos mandarins, em ambiente chinês, que absolutamente nada pode ser associado à nossa experiência.
Faoro, segundo Jessé, teria se equivocado ao buscar uma referência histórica inaplicável à nossa experiência, justamente porque substancialmente anacrônica. O patrimonialismo, no sentido de apropriação do público pelo privado, pressupõe uma noção de soberania popular e de um patrimônio público afeto ao cidadão, e não ao governante. Essa condição política somente se realiza após as revoluções liberais do século 18. Faoro buscou exemplos e referências na idade média portuguesa. Nesse tempo, sabe-se, o poder real era absoluto, não havia limites ou restrições. Por isso, não como o particular assenhorar-se do público, na medida em que não havia uma distinção clara das esferas pública e privada. O conjunto normativo das Ordenações do Reino comprova a assertiva.
Jessé também contesta a percepção de Roberto DaMatta, para quem o “jeitinho brasileiro” seria uma característica nossa. DaMatta teria dado continuidade às generalizações de Freyre. Em “Sobrados & Mocambos”, segundo Jessé, teria colhido esquemas que aperfeiçoou nas generalizações que opõem casa e rua, ao que acrescento indivíduo e pessoa, sempre com as áreas de passagem. O homem cordial deteria um capital centrado em suas relações pessoais.
Os chamados intérpretes oficiais do Brasil (Jessé poupou Caio Prado Jr.) deixam ao largo os modos como privilégios de classe se comunicam, obcecados que estão com a premissa de que a corrupção seria uma herança diretamente portuguesa. Jessé constrói um conceito provocativo de explorado, que tipifica idealmente como a “ralé”. É o pobre, odiado pela classe média, em regime de transferência do horror que foi devotado ao escravo. Na percepção de Jessé, a ralé é intimidada pela polícia, com apoio e aplauso da classe média.
Jessé percebe quatro estoques de classe média. Um grupo está disposto a penhorar apoio à intimidação via violência. O grupo liberal preocupa-se em aumentar o saldo bancário e em recolher menos tributos. O grupo expressivista é o segmento instruído, que lê, debate, discute e frui de bens culturais. Há ainda um grupo que Jessé identifica como o “grupo da classe média de Oslo”; a exemplo de alguns noruegueses, onde o estado de bem-estar social já resolveu todos os problemas relevantes, haveria uma concentração com preocupações em torno de espécies ameaçadas, alhures e bem distantes. Seria o grupo dos eleitores de Marina Silva, na acepção de Jessé. Os vários segmentos da classe média se arvoraram como responsáveis por uma higiene moral da nação.
Para Jessé, a classe média é o atual capataz da elite, organizando, controlando, pregando valores e visões de vida. Um exacerbado moralismo nada crítico teria engendrado adesão ao desmonte dos arranjos e rotinas institucionais construídos a partir da promulgação da Constituição de 1988. Em “A Elite do Atraso”, Jessé mostra apreço por um capitalismo regulado, em detrimento de um socialismo estatizado. Pode-se discordar de suas premissas e conclusões, porém, não é um livro que justifique qualquer indiferença. Faz pensar. Algo raro nos dias de hoje.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é advogado em Brasília, livre-docente pela USP e doutor e mestre pela PUC-SP.