Lygia Jobim tinha 29 anos e estava grávida de três meses quando recebeu a notícia de que seu pai tinha desaparecido. Era início de tarde de uma quinta-feira, dia 22 de março de 1979. O embaixador José Jobim tinha saído de sua casa, no bairro de Cosme Velho, na zona sul do Rio, para visitar um amigo jornalista. O diplomata se preparava para escrever um livro sobre as negociatas que permearam a construção da hidrelétrica de Itaipu, na fronteira entre o Brasil e Paraguai.
Jobim não voltou para casa. A família, preocupada com o sumiço, acionou a polícia. “Foram duas noites assim. Eu fui com meu marido até a casa de minha mãe. Lá pelas tantas, me deitei na cama dela, nos deitamos nós duas. E eu senti um frio descomunal. Minha mãe se levantou, pegou um cobertor e me agasalhou, uma sensação de terror”, disse Lygia Jobim, em entrevista à Agência Pública.
As buscas não evitaram a tragédia. Dois dias depois, às 7 horas da manhã de 24 de março, o corpo do diplomata José Jobim foi encontrado por um gari que trabalhava próximo à ponte da Joatinga, na Barra da Tijuca. Jobim pendia em uma corda amarrada ao galho de uma árvore. Suas pernas, curvadas, tocavam o solo, numa simulação grotesca de suicídio.
Naquele dia, o marido de Lygia, Ênio Silveira, foi ao local para identificar o corpo. Ele ouviu do delegado e do diretor do Instituto de Criminalística que todas as evidências apontavam que Jobim tinha morrido, na realidade, em outro local e após ter sofrido violência física, sendo pendurado ali, depois, para insinuar a situação de enforcamento.
Uma semana antes da morte, José Jobim esteve em Brasília em uma cerimônia para participar da transmissão de cargo entre embaixadores e da posse do militar João Figueiredo, que acabara de assumir a Presidência da República. Naquela ocasião, Jobim comentou com os convidados sobre o livro que preparava a respeito de Itaipu. Conhecedor do projeto em profundidade, o diplomata era dono de um vasto acervo de documentos sigilosos com potencial de implodir os esquemas que marcaram as obras daquela que foi, por anos, a maior hidrelétrica do mundo.
Ao comentar publicamente sobre o tema do livro, José Jobim chegou a ser alertado por pessoas próximas para que tivesse cuidado, porque parte daqueles que pretendia denunciar estava ali, ao seu lado, naquela mesma recepção.
Passados 44 anos do assassinato, Lygia ainda não sabe quem matou seu pai nem quem mandou matá-lo. A certidão de óbito, que foi feita nove dias após o corpo ter sido encontrado, classificou a causa mortis como “indefinida”, porque dependia de “resultados dos exames complementares”. Em 1985, último ano da ditadura militar, a Justiça do Rio pediu o arquivamento do caso, diante da “visível inutilidade da continuação das inócuas idas e vindas do presente inquérito”.
Lygia Jobim tinha 29 anos e estava grávida de três meses quando recebeu a notícia de que seu pai tinha desaparecido. Era início de tarde de uma quinta-feira, dia 22 de março de 1979. O embaixador José Jobim tinha saído de sua casa, no bairro de Cosme Velho, na zona sul do Rio, para visitar um amigo jornalista. O diplomata se preparava para escrever um livro sobre as negociatas que permearam a construção da hidrelétrica de Itaipu, na fronteira entre o Brasil e Paraguai.
Jobim não voltou para casa. A família, preocupada com o sumiço, acionou a polícia. “Foram duas noites assim. Eu fui com meu marido até a casa de minha mãe. Lá pelas tantas, me deitei na cama dela, nos deitamos nós duas. E eu senti um frio descomunal. Minha mãe se levantou, pegou um cobertor e me agasalhou, uma sensação de terror”, disse Lygia Jobim, em entrevista à Agência Pública.
As buscas não evitaram a tragédia. Dois dias depois, às 7 horas da manhã de 24 de março, o corpo do diplomata José Jobim foi encontrado por um gari que trabalhava próximo à ponte da Joatinga, na Barra da Tijuca. Jobim pendia em uma corda amarrada ao galho de uma árvore. Suas pernas, curvadas, tocavam o solo, numa simulação grotesca de suicídio.
Naquele dia, o marido de Lygia, Ênio Silveira, foi ao local para identificar o corpo. Ele ouviu do delegado e do diretor do Instituto de Criminalística que todas as evidências apontavam que Jobim tinha morrido, na realidade, em outro local e após ter sofrido violência física, sendo pendurado ali, depois, para insinuar a situação de enforcamento.
Uma semana antes da morte, José Jobim esteve em Brasília em uma cerimônia para participar da transmissão de cargo entre embaixadores e da posse do militar João Figueiredo, que acabara de assumir a Presidência da República. Naquela ocasião, Jobim comentou com os convidados sobre o livro que preparava a respeito de Itaipu. Conhecedor do projeto em profundidade, o diplomata era dono de um vasto acervo de documentos sigilosos com potencial de implodir os esquemas que marcaram as obras daquela que foi, por anos, a maior hidrelétrica do mundo.
Ao comentar publicamente sobre o tema do livro, José Jobim chegou a ser alertado por pessoas próximas para que tivesse cuidado, porque parte daqueles que pretendia denunciar estava ali, ao seu lado, naquela mesma recepção.
Passados 44 anos do assassinato, Lygia ainda não sabe quem matou seu pai nem quem mandou matá-lo. A certidão de óbito, que foi feita nove dias após o corpo ter sido encontrado, classificou a causa mortis como “indefinida”, porque dependia de “resultados dos exames complementares”. Em 1985, último ano da ditadura militar, a Justiça do Rio pediu o arquivamento do caso, diante da “visível inutilidade da continuação das inócuas idas e vindas do presente inquérito”.
Arquivo pessoal
Lygia Jobim, filha do diplomata assassinado, busca respostas até hoje
Após investigações, coleta de testemunhos e depoimentos tomados pela Comissão Nacional da Verdade, entre 2011 e 2014, a morte de Jobim foi incluída na relação de pessoas assassinadas pela ditadura. Em 2018, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) retificou seu atestado de óbito, esclarecendo que o diplomata, com 69 anos, foi vítima de um “crime de Estado”, consumado por “motivação exclusivamente política”.
Mais de quatro décadas depois, ao ser questionada pela Pública sobre como se sente a respeito do assunto, Lygia Jobim reflete em silêncio por alguns segundos, até formular uma resposta. “O que eu sinto, 44 anos depois, depende do dia. Tem dias em que volto ao momento em que isso aconteceu. E aí vem um sentimento de horror”, diz ela. “O que fizeram com ele é uma coisa inenarrável, e isso não se apaga. O tempo não apaga isso. Persigo até hoje a autoria do crime, quem fez e, sobretudo, quem mandou fazer, quem deu a ordem. Eu quero o nome de quem disse ‘mata’. Eu quero esse nome. Eu vou conseguir.”
O crime cometido contra a família Jobim transpassa o histórico de violência, perseguição política, afronta a direitos humanos e mortes que marcou os anos de construção da hidrelétrica de Itaipu, a usina binacional que teve início em 1975 e seria concluída nove anos depois, em 1984.
Projeto desenvolvimentista da ditadura, Itaipu fez parte dos quatro grandes empreendimentos nacionais que os militares projetaram como símbolo de poder nacional, ao lado da construção da ponte Rio-Niterói, da abertura da Transamazônica (BR-231) e das usinas nucleares de Angra.
Os acontecimentos que marcaram os canteiros de obra da usina naqueles anos foram analisados por seis historiadores, durante 18 meses. O levantamento faz parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”, trabalho de pesquisa sobre a atuação de dez empresas estatais e privadas nos anos de chumbo. Os estudos foram conduzidos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).
A partir dos relatórios, aos quais a Pública teve acesso com exclusividade, a reportagem avançou sobre os casos, buscando informações e depoimentos inéditos para revelar lacunas de um período marcado pela barbárie da ditadura.
Cada uma das informações contidas nesta reportagem foi repassada previamente à Itaipu, para que a estatal se posicionasse. Hoje, a hidrelétrica é controlada pela estatal Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar), vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Suas respostas e explicações, na íntegra, estão inseridas ao longo desta reportagem.
Mortes e acidentes aos milhares
Lygia Jobim tinha 29 anos e estava grávida de três meses quando recebeu a notícia de que seu pai tinha desaparecido. Era início de tarde de uma quinta-feira, dia 22 de março de 1979. O embaixador José Jobim tinha saído de sua casa, no bairro de Cosme Velho, na zona sul do Rio, para visitar um amigo jornalista. O diplomata se preparava para escrever um livro sobre as negociatas que permearam a construção da hidrelétrica de Itaipu, na fronteira entre o Brasil e Paraguai.
Jobim não voltou para casa. A família, preocupada com o sumiço, acionou a polícia. “Foram duas noites assim. Eu fui com meu marido até a casa de minha mãe. Lá pelas tantas, me deitei na cama dela, nos deitamos nós duas. E eu senti um frio descomunal. Minha mãe se levantou, pegou um cobertor e me agasalhou, uma sensação de terror”, disse Lygia Jobim, em entrevista à Agência Pública.
As buscas não evitaram a tragédia. Dois dias depois, às 7 horas da manhã de 24 de março, o corpo do diplomata José Jobim foi encontrado por um gari que trabalhava próximo à ponte da Joatinga, na Barra da Tijuca. Jobim pendia em uma corda amarrada ao galho de uma árvore. Suas pernas, curvadas, tocavam o solo, numa simulação grotesca de suicídio.
Naquele dia, o marido de Lygia, Ênio Silveira, foi ao local para identificar o corpo. Ele ouviu do delegado e do diretor do Instituto de Criminalística que todas as evidências apontavam que Jobim tinha morrido, na realidade, em outro local e após ter sofrido violência física, sendo pendurado ali, depois, para insinuar a situação de enforcamento.
Uma semana antes da morte, José Jobim esteve em Brasília em uma cerimônia para participar da transmissão de cargo entre embaixadores e da posse do militar João Figueiredo, que acabara de assumir a Presidência da República. Naquela ocasião, Jobim comentou com os convidados sobre o livro que preparava a respeito de Itaipu. Conhecedor do projeto em profundidade, o diplomata era dono de um vasto acervo de documentos sigilosos com potencial de implodir os esquemas que marcaram as obras daquela que foi, por anos, a maior hidrelétrica do mundo.
Ao comentar publicamente sobre o tema do livro, José Jobim chegou a ser alertado por pessoas próximas para que tivesse cuidado, porque parte daqueles que pretendia denunciar estava ali, ao seu lado, naquela mesma recepção.
Passados 44 anos do assassinato, Lygia ainda não sabe quem matou seu pai nem quem mandou matá-lo. A certidão de óbito, que foi feita nove dias após o corpo ter sido encontrado, classificou a causa mortis como “indefinida”, porque dependia de “resultados dos exames complementares”. Em 1985, último ano da ditadura militar, a Justiça do Rio pediu o arquivamento do caso, diante da “visível inutilidade da continuação das inócuas idas e vindas do presente inquérito”.
Arquivo pessoal
Lygia Jobim, filha do diplomata assassinado, busca respostas até hoje
Após investigações, coleta de testemunhos e depoimentos tomados pela Comissão Nacional da Verdade, entre 2011 e 2014, a morte de Jobim foi incluída na relação de pessoas assassinadas pela ditadura. Em 2018, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) retificou seu atestado de óbito, esclarecendo que o diplomata, com 69 anos, foi vítima de um “crime de Estado”, consumado por “motivação exclusivamente política”.
Mais de quatro décadas depois, ao ser questionada pela Pública sobre como se sente a respeito do assunto, Lygia Jobim reflete em silêncio por alguns segundos, até formular uma resposta. “O que eu sinto, 44 anos depois, depende do dia. Tem dias em que volto ao momento em que isso aconteceu. E aí vem um sentimento de horror”, diz ela. “O que fizeram com ele é uma coisa inenarrável, e isso não se apaga. O tempo não apaga isso. Persigo até hoje a autoria do crime, quem fez e, sobretudo, quem mandou fazer, quem deu a ordem. Eu quero o nome de quem disse ‘mata’. Eu quero esse nome. Eu vou conseguir.”
O crime cometido contra a família Jobim transpassa o histórico de violência, perseguição política, afronta a direitos humanos e mortes que marcou os anos de construção da hidrelétrica de Itaipu, a usina binacional que teve início em 1975 e seria concluída nove anos depois, em 1984.
Projeto desenvolvimentista da ditadura, Itaipu fez parte dos quatro grandes empreendimentos nacionais que os militares projetaram como símbolo de poder nacional, ao lado da construção da ponte Rio-Niterói, da abertura da Transamazônica (BR-231) e das usinas nucleares de Angra.
Os acontecimentos que marcaram os canteiros de obra da usina naqueles anos foram analisados por seis historiadores, durante 18 meses. O levantamento faz parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”, trabalho de pesquisa sobre a atuação de dez empresas estatais e privadas nos anos de chumbo. Os estudos foram conduzidos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).
A partir dos relatórios, aos quais a Pública teve acesso com exclusividade, a reportagem avançou sobre os casos, buscando informações e depoimentos inéditos para revelar lacunas de um período marcado pela barbárie da ditadura.
Cada uma das informações contidas nesta reportagem foi repassada previamente à Itaipu, para que a estatal se posicionasse. Hoje, a hidrelétrica é controlada pela estatal Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar), vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Suas respostas e explicações, na íntegra, estão inseridas ao longo desta reportagem.
Caio Coronel/Itaipu
Documentos ligam hidrelétrica a violações no regime de exceção
Mortes e acidentes aos milhares
Itaipu foi, por anos, a maior hidrelétrica do mundo, com seus 14 mil megawatts de potência instalada. Manteve esse posto por décadas, até perder a posição para a usina de Três Gargantas, na China, inaugurada em 2003. Seus números superlativos incluem a mobilização trabalhista. Documentos das construtoras da hidrelétrica mostram que, por seus canteiros de obra, passaram mais de 100 mil trabalhadores ao longo de toda a construção. No auge dos serviços de engenharia, em 1978, chegou a reunir 32 mil trabalhadores. Maior do que muitos municípios brasileiros, a usina somava 11 vilas habitacionais no Brasil e no Paraguai. É nessa cidade temporária que os militares exerceram todo tipo de opressão, com ostensivo aparato de vigilância e monitoramento sobre a vida, o trabalho, o lazer e as atividades sindicais e políticas dos operários, quando estas existiam.
Com a imposição de jornadas diárias de trabalho que chegavam, muitas vezes, a 16 horas ininterruptas, aliadas à precariedade da infraestrutura de segurança, Itaipu se converteu num sem-fim de acidentes, muitos fatais. “O que chamava a nossa atenção era o excesso de acidente de trabalho. Não havia respeito nenhum. Caiu e morreu? Enterra. Era sim, a toda hora”, disse Antônio Fernandes Neto, 71 anos, em entrevista à Pública.
Fernandes Neto conta que viu muitas tragédias de perto, porque era técnico em segurança do trabalho de Itaipu. À época, sua equipe chegou a reunir documentos e relatos sobre mortes e acidentes ocorridos na obra. O acervo de dados apontava que até 800 pessoas teriam morrido nas obras. Todos os documentos, porém, diz ele, foram perdidos em dois incêndios “acidentais”.
“Tínhamos duas cópias desses arquivos, uma que ficava na área administrativa e outra que guardávamos numa sala, em outro prédio, ao lado do local do Corpo de Bombeiros. Primeiro, pegou fogo no material da sala administrativa. Depois, houve outro incêndio naquela sala. Você vê que coincidência, pegar fogo nos dois arquivos? Eram os métodos da ditadura”, diz. “Não foram situações acidentais. Eu trabalhei neste levantamento e cruzamento dos dados. Aquilo foi um desrespeito total, foi um absurdo.”
Muitos acidentes ocorreram no trânsito de veículos no canteiro de obras e no lançamento de concretagem. Registros mostram que, em apenas um acidente com um guindaste sobre trilhos do tipo “Peiner”, por exemplo, cinco operários morreram de uma vez.
A Pública questionou Itaipu sobre o número de acidentes e mortos em suas obras, além dos incêndios que acabaram com os documentos e que são mencionados por seu ex-técnico em segurança do trabalho. A empresa informou que não tem conhecimento sobre os incêndios, mas detalhou seus números oficiais a respeito das atrocidades.
Segundo a estatal, “as estimativas indicam que, de 1978 a 1984, aconteceram 43.530 acidentes de trabalho no canteiro de obras da usina, considerando brasileiros e paraguaios”. Sobre o número de mortes, Itaipu afirma que, dentro do total de acidentes, 106 foram fatais.
“Itaipu tem construído uma versão harmônica das relações de trabalho, com o apagamento da memória dos trabalhadores, produzindo uma história oficial, como a do ‘barrageiro de aço’”, diz Carla Silva, pesquisadora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e coordenadora do trabalho de pesquisa relacionado à hidrelétrica. “O que vemos, na realidade, é que, muitas vezes, há uma negação da memória de quem a construiu, daqueles que sofreram acidentes ou que morreram na obra.”
Em sua defesa, a binacional informou à Pública que “foi pioneira ao estabelecer, ainda em 1975, os Atos Normativos para a Saúde e Segurança dos Trabalhadores” e que “naquela época, não havia regulamentação sobre o tema no Brasil e no Paraguai”.
De acordo com a empresa, foi a partir do “aproveitamento e da ampliação de documentos surgidos na Itaipu”, como os atos normativos, que o Ministério do Trabalho e Emprego aprovou a Portaria 3.214, de 8 de agosto de 1978, instituindo as “Normas Regulamentadoras (NRs), série de regras voltadas para a prevenção de acidentes e doenças nas empresas brasileiras”.
Listas sujas de funcionários
A avaliação sobre os trabalhadores que seriam contratados para atuar na obra não se limitava a uma leitura curricular de sua experiência profissional. A vigilância sobre a vida pregressa dos funcionários ficava a critério das Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESIs), departamentos da usina que tinham militares em posição de comando e estavam diretamente ligados ao governo.
Os dados eram compartilhados com a Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Minas e Energia e com a pasta do Conselho de Segurança Nacional (CSN), órgão marcado por sua atuação no período do golpe militar. Agentes do CSN tinham presença constante nos canteiros da obra.
“Como projeto da ditadura, Itaipu tinha os militares nestas missões. Eram órgãos que faziam o controle dos funcionários, as listas sujas daqueles que podiam ou não ser contratados”, diz a pesquisadora Carla Silva.
As AESIs existiram tanto do lado brasileiro quanto do paraguaio, e tinham processo militarizado de funcionamento. A troca de informações entre cada área impedia que um trabalhador que fosse demitido numa operação viesse a buscar trabalho em outra empreiteira, por exemplo. O mesmo tipo de controle era aplicado em relação aos trabalhadores estrangeiros, fazendo com que uma ficha de trabalho fosse transformada em ficha de investigação.
Nos anos 1980, durante os movimentos grevistas que se espalharam pelo país, as obras de Itaipu seriam, então, visitadas por blindados. Em 1987, durante uma paralisação na fase em que a usina estava prestes a entregar energia, tanques de guerra chegaram a ser deslocados para o interior da hidrelétrica.
Indígenas Avá-Guarani vítimas de Itaipu
A construção de Itaipu interrompeu o fluxo do rio Paraná, numa área antes conhecida como Sete Quedas, um conjunto de cachoeiras que tinha forte apelo turístico na região. Tudo ficou debaixo d’água, com o fechamento da represa erguida entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este. À época, tratava-se da maior represa do mundo, com uma área de 1.350 km², sendo 780 km² do lado brasileiro e 570 km² em território paraguaio.
Essa imensidão de água alterou completamente a região e a vida de milhares de pessoas que, até hoje, sofrem os impactos ambientais e questionam o processo de desapropriação feito pela estatal militar. Dados da época indicam que a construção levou ao deslocamento de aproximadamente 40 mil pessoas, envolvendo diretamente nove municípios do oeste do Paraná. Estima-se que cerca de 8.500 propriedades foram atingidas, mas os dados não são precisos.
Uma das populações locais mais atingidas, de acordo com os pesquisadores, foram os indígenas, o povo Avá-Guarani que vive no entorno do rio Paraná, vítima de deslocamentos forçados e de etnocídio, segundo sua própria visão.
As pesquisas mostram que, embora o tratado de construção da usina tenha sido assinado em 1973, milhares de pessoas não sabiam, em 1983, que destino teriam na vida. “Não há como não inferirmos que os problemas humanos e sociais foram deixados para o último momento, levando à exaustão a capacidade de resistência e mobilização da população atingida”, afirmam os pesquisadores no relatório. “O problema vai muito além do limite econômico. Não é por falta de recursos financeiros que essa demora e aparente desorganização ocorreu. Há um descaso que redunda em deslocamentos forçados no último prazo disponível para liberação da área que seria atingida pelo reservatório. A situação segue em paralelo com a população dos avá-guaranis.”
Uma das medidas tomadas à época para retirar as pessoas da região passou pelo projeto de colonização da Amazônia. Itaipu bancou a visita de colonos ao Acre. Uma das áreas oferecidas era um assentamento organizado para os atingidos em outra barragem, a da hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia, que nem mesmo aqueles atingidos aceitaram ocupar, devido à distância e às condições inapropriadas.
As pesquisas revelam que a primeira posição da binacional foi rejeitar a presença dos povos indígenas, como se não houvesse povos originários na região, insistindo na tese do “vazio demográfico”. Depois, houve a tentativa de “normatizar”, através de profissionais contratados, quem podia ou não ser considerado autóctone, ou seja, que se origina da região onde é encontrado, dentro daquilo que, à época, se estabelecia como “padrões antropológicos de indianidade”.
Outra iniciativa foi separar indígenas “brasileiros” dos “paraguaios”, apesar de ser de pleno conhecimento que os indígenas se movimentavam em torno do rio Paraná, sem limites claros de fronteiras entre os países, em suas relações sociais e familiares. Há questionamentos, ainda, sobre expropriações de famílias de pescadores e pequenos agricultores da região.
“As expropriações dos indígenas foram feitas de forma irregular e permanecem em aberto até hoje.” É uma luta dos avás-guaranis, que exigem o devido tratamento como povo originário e sua reparação histórica.
Questionada pela Pública sobre o tema, a estatal declarou que, neste momento, está em fase de estruturação um grupo de trabalho para retomar as discussões sobre os impactos causados. Esse grupo será constituído por representantes da própria Itaipu Binacional, do Ministério dos Povos Indígenas, Funai, Casa Civil, Advocacia-Geral da União e lideranças indígenas.
“Trata-se de um grupo para debater eventual reparação histórica e temas afeitos às questões do povo avá-guarani na região”, informou a binacional.
Mortos e desaparecidos
A truculência militar ostentada no processo de construção de Itaipu deixou como legado episódios trágicos como o operário Francisco Nunes Marques, que era funcionário da empresa Adolpho Lindenberg, uma das construtoras da hidrelétrica.
Registros mostram que, no dia 28 de abril de 1975, Marques, após ter sido despedido, foi impedido de entrar na fila para apanhar sua marmita de jantar. Ao reclamar do bloqueio, foi agredido a pauladas por quatro funcionários da empresa e, por fim, acabou baleado. O operário chegou a ser conduzido ao Hospital São Vicente de Paula, mas morreu.
Outro capítulo sombrio diz respeito ao médico paraguaio Agustín Goiburú, que esteve sob constante vigilância das AESIs de Itaipu. Goiburú consta, até hoje, como um dos desaparecidos políticos da ditadura de Alfredo Stroessner, a ditadura militar paraguaia, que durou de 1954 a 1989. Segundo os pesquisadores, Goiburú foi alvo de forte monitoramento no ano de 1976, tendo o comando Itaipu recebido informações constantes de sua presença.
A documentação referente a Itaipu aponta para a conexão da estatal com órgãos repressivos do Cone Sul atuaram no âmbito da Operação Condor, em ações secretas internacionais.
Aliança de ditaduras militares que governavam os principais países da América do Sul, a Operação Condor realizava troca de informações sigilosas com o propósito de perseguir pessoas contrárias aos regimes ou ligadas ao comunismo.
“Há documentos que relatam uma suposta ‘infiltração comunista’ nos diversos setores das atividades. Havia um monitoramento cruzado, com intercâmbio sistemático de informações. Empregados tinham que saber fazer cifragem e decifragem de documentos”, diz a pesquisadora Jussaramar da Silva.
Bloqueio de informações
Os relatos colhidos pelos pesquisadores apontam a atuação direta da estatal Itaipu no âmbito da ditadura, mas as restrições de acesso a documentos impostas até hoje aos pesquisadores prejudicaram o resultado do trabalho, impossibilitando que se tenha uma visão mais horizontal do que se passou na construção da hidrelétrica naqueles anos.
Carla Silva, pesquisadora e coordenadora do trabalho, afirma que foram apresentados vários pedidos de acesso ao acervo completo de informações, mas que foram negados pela estatal. Em uma resposta enviada aos pesquisadores para rejeitar o pedido, Itaipu declarou que um dos membros do grupo já tinha solicitado informações no passado e que, por isso, não liberaria o acesso novamente.
“Usaram isso como justificativa, mas isso não tem nenhum fundamento”, diz Carla. “Não tivemos acesso a todo o material de Itaipu. Por mais que tenhamos solicitado, foram indeferidos os nossos pedidos de informações. Sabemos que a estatal tem a documentação organizada, mas não fomos atendidos.”
Dadas as limitações impostas pela empresa, os pesquisadores passaram a recorrer a todas as bases de dados oficiais possíveis e conseguiram, ainda assim, reunir e analisar cerca de 10 mil documentos. “Foi mais fácil pesquisar na Argentina e Paraguai do que em Itaipu. Fomos ao centro de documentação que pertence ao Ministério da Justiça do Paraguai, o ‘Arquivo do Terror’, que guarda documentos da Operação Condor. Encontramos muita coisa.”
A Pública questionou por que Itaipu não garantiu acesso irrestrito ao material solicitado e encaminhou à estatal o próprio indeferimento. Em nota, a hidrelétrica não explicou a negativa e declarou que “a atual gestão da Itaipu Binacional (margem brasileira) tem interesse em esclarecer quaisquer questões de interesse público que envolvam a empresa”.
Segundo a empresa, é mantido um canal aberto na internet para receber e analisar pedidos de informação, “com o compromisso de responder no menor prazo possível”.
O acervo sobre Itaipu com documentos e testemunhos faz parte de um relatório inédito da Unifesp/Caaf que será enviado ao MPF e que pretende servir de base para ações de reparação a vítimas da repressão na ditadura militar.
Reparações históricas em aberto
Quem visita hoje a usina de Itaipu se depara com uma história de vitórias e força contada por homens desbravadores que tiveram a sua imagem sintetizada na imagem do “Homem de Aço”, uma escultura de duas toneladas, construída pelos operários da hidrelétrica com pedaços de sucata de maquinários, nos anos 1980.
Para os pesquisadores e milhares de atingidos pela obra, porém, a imagem do barrageiro “Nicão”, como a escultura passaria a ser conhecida, não conta toda a história do que se passou no local, e isso precisa ser reparado, tanto por meio de indenizações quanto por meio de reparações históricas. A criação de um centro de memória da construção da usina de Itaipu – que expresse as violações cometidas contra os trabalhadores e populações expropriadas – é uma dessas demandas.
Atos para omitir histórias sempre rondaram a construção da hidrelétrica. A filha do diplomata José Jobim, assassinado no Rio de Janeiro uma semana depois de ter dito que iria escrever sobre as irregularidades cometidas na construção da usina, contou à Pública que, dias depois da morte do pai, os documentos que José Jobim guardava sobre o tema desapareceram de sua casa.
“O material estava numa mala, que foi colocada no sótão da casa, no bairro de Laranjeiras, no Rio. Tempos depois, quando abrimos a mala, vimos que parte da documentação tinha desaparecido. O material estava dentro de um envelope escrito ‘documentação sobre Itaipu’. Esse envelope estava vazio”, disse. “Meu pai tinha começado a rascunhar as memórias. O capítulo Itaipu e Paraguai desapareceram.”
Por alguns anos, exatamente no dia do aniversário da morte de José Jobim, um telefonema anônimo tocava na casa da família. “Minha mãe recebia uma ligação, mandando a gente parar de investigar. Isso aconteceu durante cinco, seis anos. Minha mãe respondia, com toda calma, que a gente pararia quando descobrisse a verdade.”
A mãe de Lygia Jobim morreu em 2006 sem saber toda a verdade. Ela segue investigando o caso até hoje.
Fonte: Agência Pública
Texto: André Borges
Data original da publicação: 19/06/2023