Eles gastaram centenas de milhões no financiamento de candidatos extremistas hostis aos impostos, aos direitos sindicais e ao controle de emissões.
Antonio Muñoz Molina
Fonte: El País Brasil
Data original da publicação: 23/09/2019
As revoluções empreendidas em nome dos trabalhadores e pobres começaram em derramamentos de sangue e acabaram em despotismo, incompetência e corrupção. São as revoluções dos ricos que têm sucesso. Perguntaram a Warren Buffet, um dos três ou quatro homens mais ricos do mundo, se acreditava na guerra de classes e respondeu com naturalidade: “Claro que sim. Nós vencemos”. Ao longo do século passado, os movimentos revolucionários de classe foram se tornando reformistas e, através da pressão sindical e ativismo político, foram conquistando melhorias que acabaram definindo o Estado de bem-estar europeu, essa mistura de economia de mercado, saúde e educação universais, igualdade perante a lei, governança democrática e impulso de progresso que até recentemente dávamos como certo. Até mesmo nos Estados Unidos, desde a época do New Deal de Roosevelt, a crueza extrema do capitalismo e do individualismo a todo custo foi moderada graças às leis que limitavam o tamanho das grandes empresas, promoviam um nível básico de proteção social e asseguravam, graças à força dos sindicatos, condições salariais aceitáveis, serviços de saúde e aposentadorias decentes aos trabalhadores.
Os reformistas consideravam que as coisas poderiam sempre melhorar, que se poderia avançar na igualdade e nos direitos civis, que gradualmente, com um esforço contínuo, as mulheres poderiam ser iguais aos homens e as minorias marginalizadas e perseguidas alcançariam uma cidadania plena. Os reformistas, entretanto, não contavam com os revolucionários. Mas os revolucionários não eram os iluminados da extrema esquerda, místicos e sectários como cristão primitivos, adoradores de velhos tiranos e de burocracias esclerosadas. Os revolucionários de verdade, os radicais sem consideração, os adversários mais temíveis do estabelecido não eram os militantes intoxicados de catecismos ideológicos, os pobres que não tinham lugar na sociedade de bem-estar e os imigrantes forçados a arriscar a vida para fugir da fome e da opressão. Os revolucionários incorruptíveis a toda moderação reformistas foram os ricos, e com eles, seus porta-vozes e propagandistas.
Há pouco mais de dois anos Jane Mayer publicou um estudo corajoso e rigoroso sobre a maneira que alguns bilionários financiaram desde o começo dos anos setenta a guinada teórica e política que levou ao desmantelamento das conquistas sociais, às maciças diminuições de impostos a favor dos ricos e à eliminação das regulamentações que desde a época da New Deal limitavam a capacidade de especulação e manipulação dos grandes bancos e das agências financeiras de Wall Street. Jane Mayer dedica em seu livros muitas páginas aos irmãos David e Charles Koch, dos quais pouca gente havia ouvido falar até então, mas que possuíam um dos grupos empresariais mais poderosos do mundo, e há décadas financiavam cadeiras universitárias, centros de estudo, campanhas políticas, toda uma máquina formidável dedicada a um único objetivo: o descrédito e a anulação da capacidade reguladora e de redistribuição do Estado, e de qualquer limite fiscal, social e ambiental à exploração dos recursos naturais e ao enriquecimento dos mais ricos.
Dark Money é um livro instrutivo e aterrorizante. Agora estou lendo outro que dá ainda mais medo, talvez porque se concentre exclusivamente na história desses dois irmãos, Kochland, de Christopher Leonard, e do gigante empresarial que levantaram. A Koch Industries tem negócios em 60 países e mais de 100.000 empregados. Possui refinarias, fábricas de gás natural, redes de oleodutos, fábricas de fertilizantes e de ração, de toalhas de rosto, de papel higiênico, até de cartões de aniversário. Entre os dois irmãos —um deles morreu meses atrás— reuniam uma fortuna de mais de 100 bilhões de dólares (414 bilhões de reais). Gastaram centenas de milhões em financiamentos de campanhas de candidatos extremistas hostis aos impostos, aos direitos sindicais e a qualquer tipo de controle de emissões de gases de efeito estufa. Em suas empresas fizeram todo o possível para minar qualquer tipo de ativismo sindical e implantaram métodos de controle e de produtividade que não dão respiro aos trabalhadores e que os forçam a competir uns com os outros. Pelo dinheiro e tráfico de influências, fizeram fracassar a lei de proteção ambiental bem moderada promovida por Barack Obama em seu primeiro mandato. Financiaram e organizaram campanhas contra qualquer projeto de transporte público colocado em andamento em qualquer grande cidade americana. Nos anos oitenta se descobriu que a Koch Industries roubava as tribos indígenas em cujas reservas explorava petróleo, declarando quantidades inferiores às que extraíam; também lançavam resíduos tóxicos e águas contaminadas nas matas e rios próximos a sua maior refinaria de petróleo. Pagaram multas ridículas.
Kochland não é um panfleto. Christopher Leonard é um jornalista econômico dotado desse invejável talento anglo-saxão para esclarecer o complexo sem simplificá-lo e para dar ímpeto narrativo à história do crescimento e da expansão de um grupo empresarial que está disposto a nunca aceitar o menor limite à vontade de enriquecimento e domínio de seus donos. Nos anos oitenta a Koch Industries sofreu contratempos por burlar as leis. A estratégia dos Koch a partir de então foi assegurar-se de que nenhuma lei ficasse em seu caminho, e de comprar quantos políticos fossem necessários para consegui-lo. São revolucionários porque só se contentam com tudo.
Anular a resistência dos trabalhadores sempre foi outro de seus objetivos principais. O episódio mais triste do livro de Leonard é a crônica de uma negociação entre os diretores de uma fábrica de tratamento de papel dos Koch e os representantes sindicais. O sindicato está dizimado e desmoralizado porque tem cada vez menos membros. Os salários são tão baixos que os trabalhadores não podem se arriscar a uma greve, sequer a uma sanção. Do modo reformista, os porta-vozes sindicais procuram uma modesta melhoria salarial, uma segurança de que poderão manter suas aposentadorias. Nem mesmo isso conseguem. A Koch Industries é uma empresa revolucionária: não querem vencer a negociação com o sindicato, querem destruí-lo. A produtividade aumentou mais de 70%, mas os salários continuam congelados e perdem valor há anos. É 2016 e nas primárias do Partido Democrata os trabalhadores sindicalizados votam em Bernie Sanders. Quando chegam as eleições, ainda que a diretoria sindical que não soube e não pôde defender seus direitos peça o voto em Hillary Clinton, a maior parte dos trabalhadores da fábrica, vencidos, amargurados, ressentidos, vota em Trump.