“Não existe um catador na cidade de São Paulo”, afirma a educadora Gabriela Couto, que foi técnica administrativa da Cooperativa dos Catadores de Papel e Papelão (Coorpel), um projeto de reinserção de pessoas em situação de rua que faz parte do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, localizado no bairro da Luz, em São Paulo. Por três anos, ela trabalhou e desenvolveu seu mestrado com catadores e destaca que os perfis destes trabalhadores se diferenciam até mesmo pela região em que residem e trabalham.
“Na Coorpel, Recifran e Coopere, aqui no centro da cidade, vocês encontram catadores com o perfil da população em situação de rua. Mas se forem em cooperativas da periferia, vão encontrar um outro tipo: o de pessoas que são catadoras realmente como profissão”, analisa a educadora.
Mulheres, mãe solteiras, pessoas em situação de rua, “desempregados”, aposentados, autônomos, atrelados a ferros velhos, de centrais de triagem conveniadas com a Prefeitura, com problemas de álcool e outras drogas, de cooperativas e associações e do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).
O catador que usa a “caixa de geladeira” como suporte para seu carrinho; o temporário que “não conseguiu trabalho em carteira”; o que nunca saiu na rua para pegar material; a mãe que tem a reciclagem como profissão e como única fonte de renda para sua família; o que por meio da catação consegue dinheiro para o marmitex na Sé e a droga na cracolândia. O personagem social é polifônico e escapa a qualquer generalização. Gabriela sabe disso e lembra da importância em se enxergar as diferentes faces dos catadores e, principalmente, das catadoras da cidade.
“Apesar de aqui na Coorpel termos um maior número de homens, já que atendemos mais pessoas em situação de rua, nas demais cooperativas o número de mulheres é significativamente maior”, diz.
No livro Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social, o autor Fernando Braga da Costa relata as circunstâncias de humilhação e esquecimento de garis dentro da USP. A invisibilidade parece ser “característica em comum” entre os que lidam diretamente com os resíduos produzidos por todos. E, em uma espécie de cegueira coletiva, esta sociedade não enxerga os agentes que todos os dias passam com os carrinhos na porta de sua casa, que coletam suas latinhas de alumínio em grandes eventos ou que trabalham em cooperativas que, possivelmente, não saberia diferenciar de um depósito de ferro-velho.
Em relação à composição de catadores em âmbito nacional, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicou em seu comunicado Nº 145 em abril de 2012 que existem entre 400 e 600 mil catadores no país, sendo que 10% participam de alguma organização coletiva. Estima-se que cerca de 80% destes profissionais são mulheres. Ainda segundo o comunicado, a renda média dos catadores brasileiros não atinge o salário mínimo, alcançando entre R$420,00 e R$ 520,00.
De acordo com o ex-presidente da Autoridade Municipal de Limpeza Urbana de São Paulo (Amlurb), Márcio Matheus, a Prefeitura e os catadores foram os pioneiros em relação ao trabalho com materiais recicláveis na cidade. Do antigo garrafeiro da década de 1960 às catadoras politizadas de cooperativas formadas nos anos 2000, a lógica paulistana para resíduos sólidos foi se alterando e, hoje, oferece oportunidade de sobrevivência para indivíduos de diferentes contextos e histórias de vida.
A possibilidade de definição exata destes profissionais é remota e até mesmo infundada. Isso porque os catadores não constituem um grupo homogêneo. São milhares que saem para a rua, diariamente, para recolher e vender material reciclável e variam suas perspectivas (ou falta delas) sobre política, gestão de negócio ou mesmo condições de trabalho.
Sobre o trabalho de reintegração social proposto pela Coorpel, Gabriela criticou a expectativa de reinserção produtiva dos catadores pelo governo municipal frente a realidade: a sociedade paulistana não prevê a inclusão social, muito menos, destes indivíduos. “Para a Prefeitura, a gente tem que pegar a pessoa que está fora do mercado de trabalho, dar treinamento e encaminhá-la para alguma vaga de emprego. Só que a gente sabe que isso é bem distante da realidade,” alertou. Gabriela observou que, na maior parte dos casos, o problema das pessoas em situação de rua é crônico e elas se acostumam com a vida que levam. “Muitos catadores saem de uma cooperativa e vão pra outra, ou vão pra rua e ficam andando pela cidade. Temos que questionar também onde estamos querendo inserir estas pessoas? Em qual sociedade?”, indagou a educadora.
No caso da Coorpel, os atendidos são maiores de idade e têm, em média, 40 anos. “Esta também é a faixa etária média da população que está na rua. Aqui temos cerca de 70% homens, a maioria da região sudeste sendo que muitos são da Grande São Paulo e possuem familiares na cidade”, relata.
Gabriela, que nos primeiros meses de 2012 defendeu a dissertação de mestrado “Aprendizagem social e formação humana no trabalho cooperativo de catadores(as) em São Paulo”, pela USP, explicou que o trabalho do catador possui quatro dimensões: a da conscientização ambiental, a técnica, a de luta e a do trabalho coletivo.
Os catadores passam a se apropriar cada vez mais do discurso ambiental ao atrelar o trabalho que realizam com a proteção do meio ambiente, deixando de ser “pobres coitados” para se identificarem como agentes ambientais que salvam o planeta.
A dimensão técnica refere-se à complexidade do trabalho da reciclagem. “Não é um trabalho fácil, nem para qualquer um. A técnica é muito importante para que o catador tenha conhecimento sobre os materiais, sobre a comercialização e sobre o gerenciamento de uma cooperativa”, explicou Gabriela.
De acordo com a educadora, o governo Lula foi o primeiro, em âmbito federal, a se aproximar da categoria dos catadores, fazendo com que eles ganhassem força e projeção nacional. A política e a luta dos catadores, segundo ela, faz com que os mesmos se aproximem das pautas levantadas pelo Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis. “Todo ano eles se reúnem com a presidência, mas tem algumas questões políticas que precisam avançar. A própria política nacional, por exemplo, ficou 20 anos pra ser aprovada e pode ficar mais 20 para ser colocada em prática”, alerta.
Já a dimensão do trabalho coletivo diz respeito à nova forma de gestão entre catadores que, até a década de 1990, se acostumaram a trabalhar individualmente e a coletar seu próprio material. “Na cooperativa o trabalho é bem diferente da rua. Temos que pensar também nos limites e nas possibilidades desse tipo de estrutura, já que o cooperativismo é uma forma de organização ainda marginal no Brasil”, diz Gabriela.
A educadora também observou em seu mestrado que, além de gerar renda, o trabalho de catadores em cooperativa “traz reflexos positivos na subjetividade dos catadores, em sua autoestima e autoimagem, e os ajuda a construir caminhos de luta por reconhecimento, dignidade e inclusão social”.
Neste sentido, com a reciclagem os catadores inserem-se no mercado de trabalho, “ainda que de forma mais perversa, por executarem um trabalho informal pouco reconhecido”. Porém estes trabalhadores são “’incluídos’ em uma sociedade de consumo por meio das sobras, do resíduo do consumo”. Por estarem inseridos nesta lógica, “passam a obter renda e ascendem ao status de consumidores, entrando na cadeia de produção e gerando mais lixo”.
Na dissertação defendida pela educadora, ela identifica a alta rotatividade como uma das características no trabalho da coleta seletiva por catadores. Devido a precariedade do trabalho, “muitos catadores permanecem na busca de melhores condições devida, abandonando a atividade quando se deparam com oportunidades de emprego que julgam melhores. Muitas vezes, retornam à atividade de reciclagem quando o novo emprego não supre as necessidades ou apresenta problemas de outra ordem”.
Apesar da polêmica entre a profissionalização da atividade de catador – de um lado, entendida como forma de garantir direitos; de outro, como maneira de restringir a atividade para os profissionais avulsos –, a Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) os caracteriza, desde 2002, como os “responsáveis por coletar material reciclável e reaproveitável, vender material coletado, selecionar material coletado, preparar o material para expedição, realizar manutenção do ambiente e equipamentos de trabalho, divulgar o trabalho de reciclagem, administrar o trabalho e trabalhar com segurança”.
Fonte: Outras Palavras
Texto: Gabriel Salgado
Data original da publicação: 15/07/2013