“Invisíveis”, como assim?

Cerca de 40 milhões de brasileiros que trabalham na informalidade. Como grupo social expressivo eram bem visíveis e até eram considerados “funcionais” ao mercado de trabalho

Flavio Fligenspan

Fonte: Sul21
Data original da publicação: 15/06/2020

A despeito da vontade do Governo, que sempre quis ignorar a pandemia, a tentativa de pelo menos diminuir seu impacto negativo trouxe o inevitável isolamento social. É bem verdade que sempre foi um isolamento à brasileira, longe do que praticaram outros países que atacaram o problema com mais força e obtiveram resultados muito melhores. De qualquer forma, a parada parcial das atividades forçou o Governo a implementar o programa de auxílio emergencial para os cidadãos que ficariam sem renda, especialmente os que retiravam seu sustento da informalidade ou mesmo os desempregados. Sempre é bom lembrar que o Ministério da Economia queria, inicialmente, um auxílio mensal de R$ 200 e que o valor final foi pactuado em R$ 600 depois da ação do Legislativo.

Seguiu-se a parte operacional do programa, cujo primeiro passo foi a auto inscrição dos elegíveis e a tentativa de cruzar os vários cadastros públicos, inclusive para evitar ou diminuir as fraudes. Hoje, já indo para o final do programa, com o pagamento da terceira parcela, ainda há muita confusão, com gente que teria direito e não recebeu e gente que recebeu sem ter direito. Feitas as contas, em maio o Ministério declarou que havia descoberto cerca de 38 milhões de pessoas que se apresentaram para receber o benefício e que até aquele momento não eram conhecidas pelos cadastros públicos dos programas anteriormente existentes, como o Bolsa Família, por exemplo. Seriam eles “invisíveis” antes de nascer o auxílio emergencial, na fala do próprio Ministro.

Como assim, “invisíveis”? A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, há muito tempo vinha mostrando cerca de 40 milhões de brasileiros que trabalhavam na informalidade, fora os desocupados cujo número chegava a cerca de 12 milhões. Eles até poderiam não ser individualmente conhecidos, posto que não estavam nos registros do Ministério do Trabalho, muitos estavam com CPF suspenso e tantos outros nem tinham CPF. Mas como grupo social expressivo eram bem visíveis e até eram considerados “funcionais” ao mercado de trabalho, porque desde sempre se entendeu que a informalidade representava um colchão que absorvia as pressões da parte formal do mercado, sobretudo em tempos de avanço do desemprego.

Se o Governo considerava um problema conhecê-los individualmente, com o nome e número (CPF) de cada um, bastava chamá-los a se cadastrarem. Não foi isto que aconteceu quando se lançou o auxílio emergencial? Com a promessa de amparo monetário diante da catástrofe sanitária, rapidamente se apresentaram os 38 milhões de “invisíveis” e o Governo prontamente os reconheceu. Ora, não era um problema técnico ou administrativo que deixava esta enorme parcela da sociedade brasileira à margem dos registros públicos e da possibilidade de serem atendidos. Era uma clara falta de intenção do Governo de direcionar políticas públicas para eles.

Então, o que mudou? Mudou a urgência de atendê-los, diante da pressão social e política que representaria esta massa de pessoas sem possibilidade de se sustentar, ainda que num curto espaço de tempo, e mudaram as pesquisas de avaliação do Presidente a partir de sua atuação na crise sanitária. A perda de apoiadores nas camadas de mais alta renda logo apareceu, mas ocorreu um movimento oposto nos extratos inferiores de renda, exatamente em função do auxílio emergencial. Assim que o Governo teve que começar a se preocupar com o pessoal de baixo da pirâmide, ainda que não fosse sua intenção inicial. E vai continuar a preocupação, tanto porque os efeitos negativos da pandemia ainda não passaram, quanto porque há que se sustentar percentuais mínimos de aprovação.

Isto nos remete para mais dois meses de auxílio emergencial, porém a um custo muito elevado, o que rebate nos objetivos fiscais, estes sim representantes das preocupações de primeira hora do Governo. O passo seguinte, já em estudo, é avaliar diversas formas de amparo à população mais carente, para manter seu apoio, reorganizando vários programas sociais. O problema é que, feitas as contas, os programas sociais são caros, sobretudo devido ao enorme número de famílias que precisa de ajuda. A resposta ao problema é: ou retira-se a assistência aos mais pobres e perde-se popularidade ou busca-se financiamento para sustentá-la. Um financiamento que se daria pelo aumento da taxação do topo da pirâmide ou bancando os programas sociais com dívida pública, o que iria de encontro aos objetivos prioritários do Governo. Está dada a sinuca de bico proporcionada pela visibilidade dos “invisíveis”.

Flavio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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