Inteligência artificial: uma oportunidade ou uma ameaça?

Eduardo Camín

Fonte: CLAE
Tradução: DMT
Data original da publicação: 20/03/2019

O roteiro continua, os dados já estão jogados. A inteligência artificial dará seu golpe final no mundo do trabalho. Se perpetua rapidamente o novo choque cultural em escala global; e já não é mais um horizonte, mas um porto de destino. O tema está se tornando cada vez mais presente e a OIT será uma caixa de ressonância global durante a conferência anual em junho de 2019.

Não há dúvidas de que a inteligência artificial (IA) terá um papel importante no futuro do trabalho; um futuro que, por outro lado, já começou. Os rápidos progressos em IA têm o potencial para criar novas oportunidades, aumentar os níveis de produtividade e gerar lucros mais elevados. No entanto, há também o medo de que possa causar a perda de empregos e o aumento das desigualdades. Enquanto uns poucos afortunados se apropriarão dos benefícios da IA, outros serão deixados para trás.

Este é um dos temas de destaque no histórico informe “Trabajar para un futuro más prometedor”, que a Comissão Mundial sobre o Futuro do Trabalho publicou em janeiro e que será discutido na Conferência Internacional do Trabalho em junho deste ano.

Assim, alguns especialistas da OIT, como Ernst Ekkehard, antecipam suas conclusões afirmando que “podemos ser moderadamente otimistas, se os tomadores de decisão e os parceiros sociais tomarem as medidas apropriadas”.

Algumas conclusões argumentam que as tecnologias digitais baseadas em IA podem permitir que segmentos mais amplos do mercado de trabalho melhorem sua produtividade e tenham acesso a empregos mais bem remunerados, o que, por sua vez, pode contribuir para a promoção do crescimento inclusivo.

De acordo com os informes, a grande redução nos custos de capital propiciada por aplicações de IA, juntamente com o fato de que a direção da mudança tecnológica é, pelo menos em parte, guiada pela oferta relativa de trabalhadores pouco qualificados em comparação com trabalhadores altamente qualificados, significa que os países em desenvolvimento poderiam se beneficiar da IA.

Em muitos casos, os usuários de inteligência artificial não precisam saber muito sobre o modo como a tecnologia funciona nem introduzir dados sofisticados nos dispositivos que utilizam. Pelo contrário, seu uso cotidiano permitiria que ferramentas baseadas em inteligência artificial forneçam conselhos sobre as melhores práticas globais combinadas com as circunstâncias locais.

Isso significa que mesmo os países que não têm recursos para apresentar as competências necessárias para produzir aplicativos de IA podem fazer uso extensivo desses aplicativos, o que gera grandes benefícios para o potencial de crescimento. No entanto, se as oportunidades acabarem por superar os riscos, as políticas devem ser ajustadas, nacional e internacionalmente.

Isso inclui ajudar a força de trabalho a se adaptar. Com a rápida evolução das tecnologias, é necessário que a educação e a formação passem a ir muito além dos anos escolares, para que os trabalhadores possam ser treinados ou re-treinados profissionalmente, quando necessário, ao longo de suas carreiras.

De forma que as políticas em matéria de competências profissionais são indispensáveis, mas não suficientes. Precisamos garantir a disseminação de novas tecnologias em todo o mundo e permitir o acesso aos dados. Os responsáveis por tomadas de decisão e os interlocutores sociais devem garantir que certas empresas não dominem o mercado e, assim, excluam outras.

O aumento observado na concentração de mercado entre as empresas digitais é motivo de preocupação e ações decisivas devem ser tomadas. É necessário formular políticas fiscais que criem condições de igualdade entre as empresas, promovam a cooperação internacional e assegurem o diálogo social, a fim de permitir que novas tecnologias e seus benefícios sejam compartilhados com mais eficiência. A OIT tem a estrutura ideal para fornecer essa importante plataforma para o intercâmbio de experiências e para apoiar os países e os parceiros sociais a ajustar e negociar as informações necessárias e as recomendações políticas.

O outro lado: usos e costumes da IA ou seu paradoxo totalitário

O homem vive há milênios e milênios oprimido por circunstâncias adversas, precárias, muito limitadas. Tiranizado por dificuldades. Assim, o horizonte humano consiste em um repertório de facilidades e dificuldades, onde qualquer realidade pode ser facilidade e dificuldade.

Um rio caudaloso é uma facilidade se eu quiser nadar ou beber, mas seria uma dificuldade se eu quiser atravessá-lo e não conseguir, ou se eu não nadar e me afogar. Esta é a questão essencial, uma vez que nos movemos em um repertório de facilidades e dificuldades, embora o resultado esperado seja muitas vezes imposto a nós por certas circunstâncias. É verdade que a capacidade de inovação não pode ser transformada em defeito e consagrar, como virtudes supremas, a prudência, a imobilidade e a desconfiança, mas os erros podem e geralmente são fatais em momentos evolucionários.

O capitalismo e sua ideologia legitimadora, o liberalismo, impregnaram todos os tipos de relações humanas subordinando todo pensamento social e todo pensamento à racionalidade econômica. Desta forma a economia tornou-se o emblema do mundo moderno e não há nada, nem pensamento ou sentimento que não esteja sujeito ao cálculo econômico, à rentabilidade que se torna o nutriente da acumulação.

Pensemos nos usos e costumes da vida, o que é dito, o que é feito, o que é pensado, o que se acredita, o que se consome… os usos atuam como a automatização da vida, a regulação da mesma. De alguma forma e no mesmo sentido, a incursão da tecnologia através da inteligência artificial predetermina, estabelece diretrizes e pistas pelas quais a vida continuará.

Não devemos esquecer que o desenvolvimento histórico da sociedade burguesa, de 1859 até hoje, fugindo da automatização da produção mas, sendo forçado em diferentes estágios de seu desenvolvimento ao seu uso pela força da competição entre múltiplos capitais obsessivos em sua ambição de aumentá-lo e torná-lo lucrativo.

No entanto, se fizermos uma análise mais apurada, veremos como o desenvolvimento da IA durante os séculos XX e XXI é altamente paradoxal: na verdade, a inteligência artificial tem sido usada em smartphones e computadores pessoais, assim como em todo tipo de aplicações fora do processo de produção, incorporada no consumo, no escritório e na circulação comercial e financeira.

Ao mesmo tempo, a robótica é timidamente estendida a esse processo de produção, libertando seres humanos de trabalhos perigosos ou simplesmente eliminando-os para incorporá-los ao exército de reserva, a fim de obter maior lucratividade e eficiência geral.

Desta forma, a IA é introduzida efusivamente em toda a linha quando se trata de tarefas de monitoramento e controle social, bem como de manipulação política e invasão de privacidade ou, também, de domínio do espaço exterior, espionagem ou ataques com mísseis, sendo também a ferramenta por excelência para a manipulação e criação de notícias falsas.

Hoje podemos ter acesso fácil aos meios de transporte ou retirar dinheiro da conta bancária, bastando colocar o dedo em um dispositivo de reconhecimento de impressões digitais e, simultaneamente, ser registrado nos arquivos administrativos e de inteligência do governo.

Recentemente Narendra Modi, primeiro ministro da Índia, em conluio com 30 megacorporações – como Master Card, Visa, entre outras, parceiras da OIT em muitas iniciativas – impôs invalidar o dinheiro de um dia para o outro e obrigar as pessoas a usar cartões de crédito em todas as suas transações mediante identificação da impressão digital em computadores e smartphones, sob o pretexto do combate ao terrorismo, tráfico de drogas e mercado negro.

Este é o resultado de um experimento múltiplo de engenharia social totalitária em escala global, o que neste caso é a desmonetização da vida em favor da financeirização e do total controle do Estado sobre a população, onde milhões de câmeras de reconhecimento facial e corporal vigiam todo o território durante 24 horas, a fim de “proteger” todos os cidadãos.

O estado capitalista gera no contexto atual a aplicação desviante e perversa da IA no metabolismo social: em uma aplicação fraca em nível de produção, mas intensiva em consumo, comércio e finanças, sustentando sua aplicação classista e com base na propriedade privada; por isso, em nível político, atua intensivamente no controle, vigilância e submissão da população.

E, de passagem, tampouco devemos esquecer que isso permite a falsificação da democracia formal republicana, através da venda de dados de eleitores aos partidos (caso Cambridge Analytica/Facebook).

Enquanto uma série de cidades europeias sob o manto do terrorismo coexistem na doutrina do grande irmão, isso nos mostra um avanço perturbador e sofisticado da vigilância totalitária, sem que a segurança seja garantida.

Tendo em conta o que hoje são os interesses e preocupações da maioria dos intelectuais ocidentais, podemos afirmar que estes se mostram incapazes de vislumbrar onde está a linha de frente de batalha, parecendo desorientados e confundindo em que lado da guerra se está, já não havendo quem esboce os mapas do poder que orientem as lutas.

Em momentos cruciais em que existem dispositivos extraordinariamente poderosos gerados pela IA, constrói-se um mundo paralelo (virtual) que, ao mesmo tempo que disfarça e invisibiliza a subjugação e a exploração, distrai as resistências. Há outros, certamente uma grande maioria que dedica todas suas energias e inteligência a procurar, em geral no nível puramente retórico, saídas “viáveis” ao capitalismo, “humanizá-lo” com reformas, caminhos alternativos e espaços de consenso que evitem riscos desnecessários, para continuar vendendo livros.

No monolítico e cinzento edifício em Genebra, sede da OIT, a IA fará sua reunião internacional: milhares de delegados abordarão as redes neurais que navegam incansavelmente pelo big-data (macro dados) em busca de padrões que um dia sirvam para prever nossos mais ínfimos desejos.

Mas o temor é que a argumentação siga o curso de usos e costumes, em sua retórica de certezas teóricas que isenta sua práxis de responsabilidades. Um caminho difícil onde a tensão social está em brasas e os desequilíbrios são abundantes.

Eduardo Camín é jornalista uruguaio, membro da Associação de Correspondentes de Imprensa da ONU em Genebra. Associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la).

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