O que acontece na infância não fica na infância. Crianças que vivem a exploração do trabalho acumulam alterações osteomusculares e falhas de desenvolvimento físico, mental e psíquico.
Aparecida**, de 57 anos, tornou-se empregada doméstica aos 10 para ajudar a pagar o aluguel de onde morava. Enquanto ela crescia, já era babá de filhos dos outros, limpava a casa e fazia as refeições da família de classe média de Belo Horizonte. “Eu lavava prato enquanto balançava a menina (na cadeirinha) com o pé”, lembra Cida, que depois de adulta ficou apaixonada por bonecas – foi quando pôde comprar uma.
Nunca teve brinquedo nem brincadeiras. “Sofri muito quando meu pai me tirou da escola”, ressente. Parou de estudar no 6º ano. Os patrões iam à praia todos os anos, mas Aparecida não tinha sentido o cheiro do mar com quase seis décadas de vida. Os dez anos de exploração deixaram muitas marcas. A mineira não se permitiu folgas ou viagens para o litoral, mas está quase completando 50 anos em faxinas.
Era bom não viajar com a família que a explorava, confessa Aparecida. Assim, pelo menos evitaria o assédio do patrão que ia ao quarto de empregada à noite. Ela decidiu não dormir mais no serviço e preferia enfrentar horas de ônibus de madrugada nos trajetos entre periferia e área nobre. Ainda herdou dessa relação trabalhista ilegal o alcoolismo, já que a bebida era oferecida a ela pelo casal “empregador” constantemente, mesmo sendo menor de idade. “Foi muito difícil, só me curei depois que virei evangélica”.
Sempre nefasto
Quando se fala de violência física ou abuso sexual contra crianças, a maioria das pessoas consegue entender e se compadecer, mas quando o assunto é trabalho infantil, muitos não percebem as consequências para a vida adulta. Tampouco assimilam a graça roubada de uma infância nunca devolvida.
“Praticamente não tive infância, somente trabalho duro e estudo, tudo isso deixou-me marcas profundas na alma, tornei-me um adulto sério demais, um homem sem graça nenhuma. O trabalho precoce é sempre nefasto”
João Oreste Dalazen, ex-ministro do Tribunal Superior do Trabalho, que na infância foi engraxate, lavador de carro e vendedor ambulante.
A equipe do Lição de Casa descobriu o exemplo extremo de Antônio*, de 13 anos, que perdeu uma mão por causa da exploração infantil em um engenho, mas também investigou histórias muitas vezes já normalizadas, como a de Rafaela*, que aos 10 anos seguia por caminho semelhante ao de Aparecida, já aprendendo e dividindo serviço de doméstica com a mãe.
No caso de Rafaela, a ausência da escola por uma crise sanitária mundial foi o que a levou à casa dos patrões. Mas, estando lá, não lhe foi permitido ser menina, brincar ou ler livros; precisava justificar sua presença.
As oportunidades concedidas a Antônio, Rafaela e às dezenas de crianças que localizamos na produção do Sem Recreio não são as mesmas recebidas por aquelas que crescem protegidas em casa. Trabalhar precocemente não gera qualquer qualificação nem prepara para o mercado. “Ao contrário, implica em uma formação escolar deficitária que vai impactar lá na frente”, pondera Luciana Coutinho, procuradora do Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais.
Com a formação comprometida, menor a chance de empregabilidade, restando funções mal remuneradas. “O risco é aquela criança repetir esse histórico de vida com seus filhos e netos; é o que chamamos de ciclo intergeracional da pobreza”, acrescenta Luciana.
Na estrada da escravidão
Pessoas resgatadas do trabalho escravo comumente passaram pelo trabalho infantil e não concluíram os estudos. Ficam cada vez mais expostas às violações. “Você não permitir que o ser humano se torne crítico, com habilidades que vão ajudar no futuro, é muito perverso”, enfatizou Tânia Dornellas, especialista em Políticas Públicas e em Ensino Interdisciplinar em Infância e Direitos Humanos.
937 crianças e adolescentes foram resgatados de trabalho escravo no Brasil entre 2003 e 2018, segundo dados do Observatório da Prevenção e da Erradicação do Trabalho Infantil.
No primeiro ano de pandemia, em três operações de resgate no Mato Grosso do Sul tinham menores de idade – o que surpreendeu o auditor fiscal do trabalho Antônio Parron. “Fazia muito tempo [desde 2003] que eu não via tanto menino assim em serviço pesado”, afirmou ele, que está nessa função há 25 anos.
Oito adolescentes foram escravizados no município de Nioaque, ocorrência que detalhamos no mapa das histórias. Em Porto Murtinho, dois indígenas de 14 e 15 anos foram resgatados fazendo limpeza de pasto com uso de agrotóxico. Estavam em condições semelhantes à escravidão havia dois meses, alojados em barracos de lona, sem banheiro, no meio do mato.
A terceira operação, também com indígenas, foi em uma fazenda em Itaquiraí, onde 24 trabalhadores, sendo quatro adolescentes, colhiam mandioca em jornadas exaustivas de 11 horas. Eles ainda terminariam endividados com o patrão se não tivesse ocorrido o resgate.
Rede para mudança
No início, era uma brincadeira: “Eu via os peões no manejo com o gado, era uma admiração. Eu queria ser igual a eles”, lembra Arnaldo Joaquim dos Santos, que começou a trabalhar aos 13 anos. Aos 15, tornou-se ajudante de veterinário e passou a viajar: São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul. “Tinha vez que passava três dias fora de casa, sem ir pra escola”.
Acabou repetindo dois anos por faltas. O veterinário que o empregava se aposentou e indicou Arnaldo para outra empresa, mas ele perdeu a vaga por não ter diploma. Foi esse impedimento que lhe abriu os olhos, nas palavras dele. Decidiu retornar aos estudos.
Atualmente, aos 21, cursa o 2° ano do Ensino Médio Técnico em Agropecuária, em Belo Jardim, interior de Pernambuco. Lá, tinha alimentação inclusa, recebia bolsa e estava em projetos de extensão. Mas, com essas atividades suspensas em decorrência da pandemia, precisou arrumar trabalho em uma fazenda da região.
As aulas voltaram no modo online e ele iniciou uma dupla jornada. Durante três meses em uma rotina de 14 horas, perdeu 25 kg e enfrentou um início de depressão. Deixou o emprego e optou pelos estudos novamente: “Eu não desisti, mesmo atrasado, eu tô indo”.
Muitos ‘Arnaldos’ conseguem mudar o curso da própria vida, mas não há meritocracia. “Para os casos serem bem sucedidos as pessoas precisam de rede de apoio, sozinho é muito difícil”, conclui Tânia Dornellas.
**Nome fictício para proteger a identidade da entrevistada
Fonte: Lição de Casa
Texto: Joana Suarez e equipe LC
Data original da publicação: 22/03/2021