Quando a Netflix se reuniu com os veteranos documentaristas Julia Reichert e Steven Bognar para comprar o novo filme dos dois, Indústria Americana – em janeiro, o filme acabara de fazer sua aclamada estreia no Festival Sundance de Cinema ―, havia executivos da Higher Ground Productions presentes.
“Eles nos disseram quem eram. Nunca tínhamos ouvido falar da produtora”, recordou Reichert.
Vencedor do prêmio de direção em Sundance na categoria melhor documentário americano, o filme de Reichert e Bognar apresenta o que aconteceu em 2014, quando a Fuyao, empresa chinesa de vidros, reativou uma antiga fábrica da General Motors na periferia de Dayton, Ohio, perto de onde os dois cineastas vivem.
Como os co-diretores ficariam sabendo mais tarde, os executivos trabalhavam para a produtora do ex-presidente Barack Obama e primeira-dama Michelle Obama, criada em maio do ano passado juntamente com seu acordo com a Netflix.
Desde então os Obama não têm divulgado muito seu trabalho com a Netflix. Mas na primavera americana deste ano eles anunciaram sua primeira leva de projetos – vários filmes e séries, incluindo uma cinebiografia do abolicionista americano Frederick Douglass, uma série dramática de época da roteirista de Thelma e Louise, uma série documental baseada na coluna de obituários Overlooked, do New York Times, e uma série infantil sobre verduras.
À diferença de outros projetos dos Obama ainda em fase de gestação, Indústria Americana já estava pronto quando a Netflix e a Higher Ground a compraram, de modo que a produtora não participou da criação do documentário, segundo Reichert e Bognar. Mas eles são gratos pelo selo de aprovação dos Obama, que, para Bognar, provavelmente quer dizer “que o filme será conhecido e comentado num círculo muito maior do que seria o caso de outro modo”.
Em julho os documentaristas encontraram o ex-presidente e a ex-primeira-dama em Washington. Foi o dia antes de conversarem com o HuffPost, e no dia seguinte eles ainda pareciam estar um pouco estarrecidos pela honra de seu trabalho ter sido a primeira produção dos Obama com a Netflix.
“Eles são pessoas maravilhosas”, comentou Reichert. “Foi incrível quando soubemos que o presidente e a primeira-dama tinham visto nosso filme, queriam abraçá-lo e nos promover como cineastas. Eles acreditam e investem muito em artistas e roteiristas.”
Produzido pela Participant Media (que recentemente produziu Roma e Olhos Que Condenam), Indústria Americana ilustra como questões econômicas e políticas amplas frequentemente também são questões culturais.
O documentário vai além das manchetes diárias sobre comércio e globalização, mostrando uma empresa chinesa que se estabelece nos Estados Unidos e põe operários chineses e americanos para trabalhar lado a lado. Mostrando também como as dificuldades que surgem se devem, em última análise, a ideias fundamentalmente diferentes sobre o trabalho.
Reichert e Bognar já tinham coberto o fechamento da fábrica durante a Grande Recessão no documentário de 2009 da HBO The Last Truck. Eles disseram que não tinham pensado em voltar a tratar desse tema, mas perceberam que narrar o renascimento da fábrica americana sob a direção de uma companhia chinesa daria uma história fascinante.
Com seu olhar arguto e edição tensa, o filme transmite muito bem uma sensação de lealdades em fluxo e tensões que fervilham sob a superfície. Em um primeiro momento, a comunidade acolhe de braços abertos a presença da Fuyao e a promessa de oportunidades econômicas para a região (se bem que, como destacam alguns operários no filme, os novos empregos pagam muito menos do que pagavam os da GM). Em público, os executivos da empresa projetam uma imagem de unidade, procurando integrar os empregados chineses e americanos e suas práticas.
Mas longe do olhar público, o processo desanda rapidamente. Como mostra o filme, em nome da eficiência a Fuyao, como muitas empresas chinesas, tenta descumprir muitos procedimentos de segurança e proteções dos trabalhadores. A expectativa é que a fábrica de Dayton atinja os mesmos níveis de produção de vidro que as fábricas da Fuyao na China. Os operários chineses são motivados por um senso coletivo de missão, algo que é intensificado pelos executivos chineses, vistos no filme usando apelos nacionalistas para mobilizar os operários chineses e semear o antagonismo entre eles e os americanos.
Queríamos que o espectador pudesse se colocar no lugar tanto dos executivos quanto dos trabalhadores, dos chineses e dos americanos. Você se lembra daquela série “Downton Abbey”? – Steven Bognar, co-diretor de “Indústria Americana”
Uma parte do filme acompanha um grupo de supervisores americanos da fábrica em Dayton que visitam a sede da Fuyao em Fuzhou, China. A visita expõe diferenças fundamentais: os operários chineses enfatizam a uniformidade e eficiência e trabalham muitas horas por dia, com apenas um ou dois dias de folga por mês. Eles encaram os americanos – que trabalham oito horas por dia e têm os fins de semana livres – como “preguiçosos” e dizem que eles conversam demais no trabalho.
Reichert e Bognar disseram que a visita à China os ajudou a ter uma compreensão melhor do contexto mais amplo que está à base das diferenças entre trabalhadores chineses e americanos. Diferentemente do processo de “empobrecimento” sofrido pela classe média americana nas últimas décadas, os trabalhadores na China “estão saindo da pobreza rural”, disse Reichert, e isso contribui para seu otimismo e engajamento maior.
“Isso foi algo que realmente chamou nossa atenção quando estávamos lá e nos ajudou a entender melhor por que os operários americanos não se dispõem tanto a trabalhar 12 horas por dia”, disse Reichert. “Os chineses podem não gostar de trabalhar 12 horas, mas estão dispostos a isso. É a expectativa deles.”
Depois de uma série de ferimentos sofridos no trabalho devido a falhas nos procedimentos de segurança, os operários americanos começaram a ser organizar para participar do sindicato United Auto Workers. Os executivos da empresa reagiram com um esforço para impedir a sindicalização, uma manobra que, como destacam os cineastas, segue os moldes do que foi feito por seus colegas americanos.
A Fuyao contrata um “consultor para evitar a sindicalização”, encarregado de intimidar os trabalhadores e dissuadi-los de votar pela sindicalização. Além de dividir os trabalhadores, o esforço contra a sindicalização ganha um elemento cultural adicional. No filme, o bilionário presidente da Fuyao diz que encara o esforço para sindicalizar os trabalhadores como uma tentativa dos operários americanos de serem “hostis em relação aos chineses”.
Boa parte do filme é uma saga tensa e às vezes frustrante. Mas o documentário também procura humanizar todos os envolvidos. Há momentos em que os trabalhadores americanos e chineses tentam se conhecer. E, com a ajuda de produtores e tradutores chineses, Reichert e Bognar também contam as histórias de operários chineses individuais, muitos dos quais deixaram suas famílias na China para se mudarem para Dayton.
Embora o filme dê certo como um exame geral da mão-de-obra, da manufatura e das relações entre EUA e China, Reichert e Bognar destacaram que não tiveram a intenção de apresentar uma visão panorâmica.
“Passamos meses e meses simplesmente captando a realidade e o ambiente”, disse Bognar, falando do processo da filmagem. “Filmamos, mas também aprendemos, ficamos conhecendo os ritmos do lugar, quem é quem, as dinâmicas interpessoais, tudo isso.”
Para Bognar, é essa abordagem, focada sobre os diversos participantes, que permite a visão nuançada do filme.
“Quisemos que o espectador pudesse se colocar no lugar tanto dos executivos quanto dos trabalhadores, dos chineses e dos americanos. Você se lembra daquela série Downton Abbey? É quase como algo assim. Um momento você está com a aristocracia, no outro momento está com os mordomos e as empregadas. Quisemos mostrar a realidade de patrões e empregados – sem julgamentos, para que você possa sentir empatia por todos. Mesmo o presidente ganha aquela reflexão interna no final, porque queremos que você sinta empatia pela jornada dele, também.”
Indústria Americana já está disponível no catálogo da Netflix.
Fonte: Huffpost Brasil
Texto: Marina Fang
Data original da publicação: 12/09/2019