A tentativa de enfrentar os desafios da política fiscal de uma perspectiva internacional abre a porta para um novo campo político global.
Rodrigo Echecopar e Pedro Cisterna Gaete
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 04/11/2021
Algumas semanas depois que a congressista de Nova York Alexandria Ocasio-Cortez ocupou as manchetes por usar um vestido que dizia “Tax the Rich”, o caso do Pandora Papers revelou mais uma vez a impunidade com que os super-ricos do mundo evadem impostos. Com o recente anúncio pela OCDE do histórico acordo tributário assinado por 136 países, nos perguntamos se podemos finalmente pôr um fim a tais abusos.
Infelizmente, as negociações foram ganhas pelo lobby das multinacionais e dos paraísos fiscais, ignorando a urgência da emergência climática e os urgentes desafios enfrentados pelo Sul Global.
A proposta de uma estrutura tributária internacional e de um imposto mínimo global é uma resposta ao fenômeno da concorrência fiscal entre países, que é quando um país reduz suas taxas de impostos para atrair empresas ou pessoas físicas (quando chega ao extremo, o país se torna um paraíso fiscal), desencadeando uma espiral de redução de impostos internacionais. De 1985 até hoje, a taxa média do imposto corporativo global caiu de 49% para 23%. Estima-se que atualmente se perdem cerca de US$ 427 bilhões anuais por abuso de paraíso fiscal (aproximadamente OITO vezes o PIB do Uruguai), o que não inclui sequer o efeito da redução das taxas corporativas em países sem paraíso fiscal.
A declaração conjunta promovida pela OCDE e assinada por 136 países cria uma estrutura baseada em dois pilares que procuram reduzir a concorrência fiscal e aumentar a receita tributária.
O primeiro pilar procura alocar a receita fiscal de forma mais justa, estabelecendo que certas empresas multinacionais serão obrigadas a pagar impostos nos países onde vendem seus produtos ou serviços (e não apenas onde suas operações estão localizadas).
Infelizmente, o primeiro pilar inclui empresas acima de um limite muito alto (pouco mais de 20 bilhões de euros em vendas) e exclui setores como o financeiro e o extrativo, de modo que só se aplicaria a cerca de cem empresas multinacionais. Essa nova taxa de imposto (25%) só se aplicaria a lucros acima de uma margem de 10%, reduzindo o efeito de aumento de receita e permitindo que certos ramos de empresas como a Amazon fossem isentos. Finalmente, o acordo proíbe os países signatários de impor seus próprios impostos sobre serviços digitais (razão pela qual países como o Quênia e a Nigéria decidiram não assinar o acordo).
O segundo pilar estabelece uma taxa mínima de imposto corporativo global, deixando-a em 15% (6 pontos abaixo da proposta inicial dos Estados Unidos, de 21%). Neste caso, a crítica é mais simples: a taxa mínima é simplesmente muito baixa. O ICRICT e outras organizações exigiram uma taxa de 25%. A Rede de Justiça Tributária indica que tal taxa poderia levantar um adicional de US$ 780 bilhões por ano, dos quais US$ 355 bilhões iriam para países fora do G7. Em contraste, sob o esquema proposto, o aumento da receita só seria da ordem de US$ 150 bilhões adicionais por ano, com menos da metade indo para países não G7. Além disso, o economista ganhador do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz advertiu que uma taxa tão baixa poderia ter o efeito oposto e acelerar a corrida para o fundo do poço.
Finalmente, falta uma perspectiva climática ao projeto. Isso poderia ser corrigido pela inclusão de taxas sobre atividades poluidoras que contribuem para a mudança climática. Além disso, os valores levantados devem ser investidos na implementação de medidas de adaptação e mitigação para combater a mudança climática em países do Sul Global com altos níveis de vulnerabilidade aos seus efeitos. Visar o imposto mínimo global desta forma é coerente com o princípio de equidade e o princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas, estabelecido na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Esses princípios reconhecem a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos em gerar a atual crise climática e exigem uma resposta cooperativa eficaz com os países menos desenvolvidos e mais vulneráveis.
Em conclusão, o acordo fica aquém do escopo, da ambição de arrecadação de fundos e da justiça para o Sul Global. No entanto, a tentativa de enfrentar os desafios da política fiscal de uma perspectiva internacional abre a porta para um novo campo político global para enfrentar a emergência climática e responder às exigências históricas do Sul Global em relação aos países desenvolvidos.
O desafio da América Latina: uma nova ordem ecológica e econômica do Sul Global
Em 1974, a Assembleia Geral da ONU adotou uma resolução para o estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), enfatizando a importância da cooperação internacional e a soberania absoluta de cada Estado sobre seus recursos naturais.
Embora a visão marcadamente desenvolvimentista desse tempo seja incompatível com a emergência climática que estamos vivendo atualmente, sua ambição global e seu foco em reduzir a distância entre países desenvolvidos e em desenvolvimento são elementos a serem resgatados para o debate atual.
Hoje, os países do Sul Global e, em particular, da América Latina devem reconhecer que muitos dos desafios climáticos e sociais de nossos povos estão indissociavelmente ligados à estrutura econômica global. Os países emergentes devem ser protagonistas na fundação de uma nova ordem econômica que priorize o bem-estar, a sustentabilidade e a justiça climática global. Os conceitos estabelecidos no Acordo de Paris, tais como capacitação, transferência de tecnologia e cooperação financeira são essenciais para construir uma Nova Ordem Ecológica e Econômica do Sul Global.
Na mesma linha, é hora de repensar os TRIPs (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) e TRIMs (Trade-Related Investment Measures Agreements) para os desafios climáticos e sociais do nosso tempo. Precisamos expandir a cooperação tributária e avançar uma estrutura para impostos mínimos sobre a riqueza e abrir o debate necessário sobre mecanismos de transferência de tecnologia e apoio financeiro para acelerar uma transição justa no Sul Global. O apelo da Índia e da África do Sul para a liberação temporária de patentes de vacinas contra a Covid-19 é um passo na direção certa. É fundamental aprofundar esse debate e acrescentar a ele a variável climática urgente. Em vez de defender a atual estrutura econômica insustentável, o foco deveria ser a promoção da transição para um sistema econômico sustentável e inclusivo.
Coordenação e cooperação na América Latina
O último relatório do IPCC, Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, confirma que a cooperação internacional será essencial para a adaptação e mitigação na América Latina, especialmente considerando que a maioria são países em desenvolvimento com altos níveis de pobreza e desigualdade. Serão necessários investimentos ambiciosos e acesso a tecnologias sustentáveis, bem como políticas que garantam uma transição justa para comunidades e trabalhadores de setores poluidores, que poderiam ser parcialmente financiados por medidas de cooperação fiscal. Além disso, expandindo o horizonte de destinos, a atual pandemia tem destacado as limitações das respostas sanitárias na maioria dos países da América Latina. Há uma necessidade de gerar capacidades sanitárias e soluções farmacêuticas a nível regional, reduzindo a dependência do continente nestes campos.
Em Nossa América Verde e na Iniciativa Global para os Direitos Econômicos, Culturais e Sociais, acreditamos que a coordenação regional é o caminho que combina a luta contra a mudança climática com a justiça social. Os países latino-americanos devem adotar uma posição comum sobre as deficiências do imposto mínimo global e estabelecer vínculos diretos com o resto do Sul Global para dar origem a uma grande coalizão internacional. Muitos dos efeitos da emergência climática já são irreversíveis e a cada dia que passa a situação só piora, mas só podemos enfrentá-la se repensarmos as regras fiscais e econômicas globais de forma ambiciosa, e com uma abordagem eminentemente ecológica. O relógio está correndo e não há tempo a perder.
Rodrigo Echecopar é MPA em Inovação, Políticas Públicas e Valor Público pela UCL e diretor de estratégia e advocacy da GI-ESCR.
Pedro Cisterna Gaete é LLM em Direito Ambiental e Climático, PhD candidato na Universidade de Direito de Edimburgo e colaborador do Nossa América Verde.