A tensão entre mobilidade social e polarização política pode colocar em xeque o próprio regime democrático. Esse é o principal impasse desta década.
Marcio Pochmann
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 08/05/2015
A primeira década do século 21 foi marcada pela retomada da mobilidade social, um dos principais traços do capitalismo de natureza selvagem que se consagrou no Brasil. De forma inédita, a combinação do regime democrático com crescimento econômico e políticas de distribuição de renda permitiu elevar o padrão de consumo, sobretudo, na base da pirâmide social, após a rápida expansão da riqueza com brutal concentração da renda durante a ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970 e a regressão econômica e social na transição democrática dos anos de 1980 e 1990.
A partir do estabelecimento da estabilidade monetária, alcançada com o Plano Real no governo de Itamar Franco, em 1994, o Brasil registrou dois períodos distintos, em termos de polarização e acomodação na distribuição da renda no interior da sociedade. No primeiro período ocorrido entre os anos de 1995 e 2003, registrou-se importante sinal de polarização na distribuição da renda, uma vez que poucos segmentos sociais ampliaram os seus ganhos, enquanto a maior parte reduziu sua participação relativa.
De acordo com o Gráfico 1, por exemplo, percebe-se que a estabilidade no poder aquisitivo dos rendimentos ocorreu somente entre 1995 e 1997, para depois seguir decrescente até 2003. O desemprego nacional, contudo, aumentou continuamente entre 1995 e 1999, para depois estabilizar até 2003.
Gráfico 01: Brasil: evolução do índice do rendimento médio real dos ocupados com renda e da taxa nacional de desemprego (1995 = 100)
O segundo período verificado a partir de 2004 apontou para a acomodação dos ganhos distributivos, tendo melhora simultânea em praticamente todos os segmentos sociais. Exemplo disso pode ser observado no sentido geral do decréscimo no desemprego nacional e da elevação do poder aquisitivo no rendimento médio dos ocupados, o que confirma a elevação generalizada das condições de vida do conjunto da população.
Por conta disso, pode-se reconhecer que a polarização socioeconômica mais acentuada seria produto do final do século 20, enquanto a acomodação no interior da sociedade teria sido possibilitada no início do século 21. Pelo Gráfico 2, confirma-se o movimento de polarização e acomodação social por meio do exercício da separação do conjunto da sociedade em três segmentos distintos (ricos, intermediários e pobres), segundo o nível de renda.
Nos anos da estabilidade monetária recente (1995 – 2003), somente os 50% mais pobres da população conseguiram ter o rendimento mantido acima da inflação, com elevação média anual de 0,2%. Para o mesmo período de tempo, o segmento de rendimento intermediário dos brasileiros (do sexto a oitavo decil da escala da distribuição pessoal da renda) registrou perdas médias anuais de 0,4%, enquanto os 20% mais ricos acusaram queda mais acentuada (1,2%) na renda.
Gráfico 02: Brasil: variação média anual do rendimento real dos ocupados com renda de todos os trabalhos (em %)
Na fase atual da estabilização monetária, que compreende o período entre 2003 e 2013, segundo informações oficiais do IBGE, todos os segmentos sociais elevaram significativamente o nível de rendimento. A parcela que compreende os 50% mais pobres da população aumentou a cada ano, em média, 5,8% o poder aquisitivo do rendimento, ao passo que o segmento social intermediário cresceu a renda média em 5,2% ao ano e os ricos subiram 4,1% como media anual entre 2003-2013.
Neste sentido que o período recente evidencia a acomodação socioeconômica, não a polarização, uma vez que ninguém ficou para trás. Apesar disso, o quadro político nacional aponta para outra perspectiva de significativa polarização, especialmente no período recente.
As manifestações coletivas ocorridas no início do ano de 2015 talvez possam contribuir para lançar luzes sobre o atual momento político brasileiro de importante politização frente à acomodação socioeconômica anteriormente assinalada. Em conformidade com pesquisa de opinião pública conduzida pela Fundação Perseu Abramo a partir de amostras de participantes nas manifestações dos dias 13 e 15 de março de 2015, podem ser percebidos os evidentes impactos – para o mal ou para o bem – das transformações verificadas na base material no sentimento das pessoas.
Para os que saíram às ruas para se manifestar no dia 13 de março, uma sexta feira, percebe-se que o perfil médio dos participantes em São Paulo se aproximou mais do conjunto da população nacional, com a importante presença de não brancos e com rendimentos menores. Estes setores foram impactados substancialmente por alterações na economia desde a década de 2000 relativas à elevação do nível geral de emprego, formalização dos postos de trabalho, ampliação do poder de compra dos salários, generalização do acesso ao crédito e ao maior consumo e sua diversificação.
Por outro lado, o perfil dos participantes na manifestação do dia 15 de março em São Paulo distanciou-se das características típicas dos brasileiros em função da maior escolaridade, rendimento e raça/cor. Para estes segmentos sociais, as alterações econômicas terminaram por impactar positivamente pouco ou mesmo trazer consequências percebidas como negativas das transformações distributivas.
Talvez, a simbologia do trânsito em que todos estariam em movimento na via, parece indicar certo desconforto político para alguns, uma vez que o pessoal de menor rendimento e utilitário do transporte coletivo estaria, por exemplo, andando mais rapidamente, enquanto aqueles de maior rendimento, usuários do transporte particular e individual e até de luxo, mover-se-iam com velocidade menos intensa.
Mesmo que a ascensão dos debaixo não tenha repercutido negativamente no padrão de vida dos estratos de maior rendimento no Brasil, gerou certo desconforto frente à redução do distanciamento que até pouco tempo demarcava o espaço de atuação das diferentes classes e frações de classe sociais. De certa forma, percebe-se até o registro do sentimento de ameaça de parte dos melhores incluídos frente ao processo de combate à exclusão dos mais pobres, uma vez que repercute no acirramento da competição pelas oportunidades geradas no País.
Sinais de polarização política crescem de dimensão no quotidiano da sociedade brasileira. Estranho notar, contudo, elementos consistentes de justificativa da polarização se o foco for o comportamento de variáveis sínteses sobre a evolução da situação socioeconômica do conjunto da população.
De certa forma, as relações existentes entre a infra e a superestrutura de uma sociedade podem lançar luzes para o impasse atual entre mobilidade social e polarização política no Brasil. Tem importância, por exemplo, a compreensão a respeito das conexões que se manifestam na base material dimensionada pelo comportamento da economia com sentimentos e ações que se expressam por movimentos culturais e políticos.
Em geral, as modificações na base econômica da sociedade terminam por impulsionar, em maior ou menor medida, efeitos simultâneos sobre a superestrutura da sociedade. Ainda que possa haver alterações e suas consequências ao longo do tempo, elas ocorrem não devendo ser desconsideradas suas determinações.
Nesse sentido que cabe alertar como os filtros que sustentavam a falsa meritocracia expressa pelos monopólios sociais associados à educação, às redes de indicações e aos círculos de relacionamento vêm sendo questionados diante do avanço das políticas de inclusão em vários níveis, revelando a baixa capacidade de certos segmentos de maior renda conviver numa sociedade mais competitiva no Brasil. De fato, o movimento de democratização no acesso ao ensino médio e superior, ao consumo de maior valor unitário, ao entretenimento, entre outros, tornou mais difícil aos filhos dos já incluídos continuar ingressando tranquilamente nas universidades de mais alta qualidade, nos empregos de elevada remuneração, pois há cada vez mais competidores.
Com isso, as mobilizações recentes no Brasil parecem indicar dois sentidos de natureza diferente. De um lado, o sentido daqueles que não desejam a interrupção dos canais de ascensão socioeconômica estabelecidos desde os anos 2000 em função do baixo dinamismo econômico que se apresenta desde o início da década de 2010, com escassez na geração dos empregos de maior qualidade e na elevação do nível de preços redutor do poder de compra dos salários.
De outro lado, o sentido de outros segmentos sociais pela obstaculização dos mecanismos impulsionadores da ascensão dos debaixo. Por isso que a constante defesa de políticas de austeridade voltadas para a contenção do gasto público e ostentação da moralidade como indícios proibitivos do maior impulsionamento do potencial dos que vem debaixo.
Sem crescimento econômico, não há fluxo de renda a distribuir, permitindo que os segmentos mais privilegiados possam voltar a ter na desigualdade social a acomodação política desejada. Para a parcela de menor poder aquisitivo, beneficiada pela combinação do tripé da democracia, do crescimento econômico e das políticas distributivas, a austeridade soa cada vez mais como abandono da trajetória da mobilidade social.
A tensão entre mobilidade social e polarização política pode colocar em xeque o próprio regime democrático, sem que seja possível formar maioria governamental capaz de combinar crescimento econômico com políticas distributivas. Esse é o principal impasse no capitalismo brasileiro em plena segunda década do século 21.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.