Ignorar e-mails de trabalho fora do expediente é direito trabalhista na França. E no Brasil?

No dia 1º de janeiro de 2017, entrou em vigor na França uma medida que pretende garantir a todo trabalhador assalariado do país o direito de permanecer off-line. Segundo o Ministério do Trabalho francês, “os assalariados estão cada vez mais ‘conectados’ fora de seu tempo de escritório, a fronteira entre vida profissional e pessoal é tênue, a jornada de trabalho não é mais contínua… É, portanto, para se adaptar a esta realidade e criar as proteções necessárias à saúde dos assalariados que um direito à desconexão é inscrito na lei”.

37%

da população economicamente ativa do país utiliza ‘dispositivos digitais profissionais’ fora do tempo oficial de trabalho, segundo informa o Ministério do Trabalho da França a partir de um estudo de setembro de 2016

62%

da população economicamente ativa do país reivindicava uma regulação do uso profissional desses dispositivos , segundo  o Ministério do Trabalho da França

A medida obriga que empresas com mais de 50 funcionários elaborem um documento em que fiquem estabelecidos os horários fora da jornada em que funcionários estão autorizados, com o amparo da lei, a ignorar e-mails e mensagens profissionais.

Segundo a revista “Le Point”, não há sanção prevista caso o empregador transgrida o direito. Mas a legislação dá um argumento forte para quem quiser recorrer na Justiça pelo excesso de horas de conexão com o trabalho.

Como a revolução digital impactou os regimes de trabalho

A extensão do ambiente de trabalho para casa, propiciada pela tecnologia de smartphones, tablets e outros aparelhos, tem impacto na vida pessoal dos trabalhadores e pode conduzir ao esgotamento.

Um relatório apresentado em 2015 à ministra do trabalho francesa, Myriam El Khomri, com o objetivo de defender o direito a permanecer desconectado fora do ambiente de trabalho, argumenta que “a intensificação do trabalho e a conexão profissional em excesso podem minar o equilíbrio e a saúde dos colaboradores da empresa” e por isso é preciso uma abordagem preventiva, no caso a lei, para regular este novo cenário.

O relatório fala, ainda, sobre a necessidade de cobertura de acidentes de trabalho em regimes de trabalho a domicílio. “É da responsabilidade do empregador assegurar o respeito à saúde e à segurança dos assalariados, notadamente garantindo o tempo de descanso”.

O problema é que, com fronteiras menos claras entre trabalho e casa, esse tempo de descanso dificilmente é respeitado. Isso acaba “aumentando a quantidade de trabalho que se extrai da pessoa gratuitamente”, disse o professor doutor de direito do trabalho e seguridade social da Faculdade de Direito da USP, Flávio Roberto Batista, em entrevista ao Nexo.

“Se você está recebendo e respondendo e-mails, está trabalhando. Se alguém te passa um trabalho para fazer fora da jornada, você tem que ser remunerado por isso e [o empregador] tem que responder pelos danos que isso causar”, afirmou Batista.

Como funciona no Brasil

“Legislativamente, a gente não tem nada nem parecido. Mas já se discute isso [o direito a ficar off-line fora do trabalho] há algum tempo no Brasil com base na limitação de jornada”, disse Batista. Segundo ele, a Justiça tem decidido a favor de trabalhadores que alegam que a carga horária de trabalho, ampliada pela conectividade, prejudicou sua saúde ou vida pessoal.

A impossibilidade de se desconectar infringe direitos estabelecidos pela lei trabalhista brasileira, como os direitos às férias e ao descanso. Nesse caso, a violação se enquadra na categoria jurídica de dano existencial, “o dano na frustração do trabalhador em não realizar um projeto de vida e no prejuízo das relações sociais e familiares, em razão da privação do seu direito ao descanso”, segundo define o Tribunal Superior do Trabalho.

“A necessidade de se afastar do trabalho por períodos longos para realizar a efetiva desconexão tem sido reconhecida aqui no Brasil”, disse professor da Faculdade de Direito da USP. “Daí a importância de evitar repartir as férias em vários períodos, uma possibilidade que foi ampliada naquela última proposta de reforma do governo Temer, e a importância das próprias férias em si para o direito à desconexão”.

Batista se refere à proposta de reforma trabalhista feita pelo presidente Michel Temer em dezembro de 2016, cujo texto prevê a divisão das férias em três períodos de descanso.

Fonte: Nexo Jornal
Texto: Juliana Domingos de Lima
Data original da publicação: 03/01/2017

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