Os produtores de São Joaquim, em Santa Catarina, ficaram animados quando, logo na segunda lei que sancionou, o presidente Jair Bolsonaro agraciou a cidade com o título de “capital nacional da maçã”. Tão animados com a designação simbólica que agora discutem em detalhes como elevar ainda mais o status da maçã plantada na região – para tentar aumentar o preço da fruta.
Mas uma visita à região deixou claro que essa mesma atenção destinada às maçãs nem de longe chega aos trabalhadores que atuam na colheita e nas demais etapas da produção. Auditores fiscais do trabalho flagraram uma série de violações de direitos em fazendas em São Joaquim e outras cidades da região serrana de Santa Catarina.
São problemas como trabalho infantil, ausência de registro de trabalhadores, alojamentos e fornecimento de água inadequados, falta de controle de jornadas de trabalho e fraudes no recolhimento do FGTS. Os casos foram identificados em ao menos 18 fazendas no primeiro semestre, quando são colhidas as duas variedades mais comuns de maçãs, a gala e a fuji.
Mais afetados que os próprios trabalhadores da região são os que chegam especificamente para o período de colheita, os chamados “safristas”. O trabalho na safra é uma promessa de renda extra para pessoas de origens diferentes, como agricultores que vivem em assentamentos no extremo sul do país ou nordestinos que não encontram mais “bicos” na construção civil. Segundo estimativas do programa Safra Cidadã, do governo de Santa Catarina, cerca de 5 mil trabalhadores chegaram à região para trabalhar nos meses de colheita.
Mas a promessa de bons pagamentos muitas vezes não se concretiza. No período de colheita em São Joaquim, em fevereiro deste ano, diversos trabalhadores aguardavam por novos empregos em hotéis baratos ou na rodoviária da cidade. Três deles, vindos do município de Pio XII, no Maranhão, haviam chegado à região fazia pouco mais de um mês com a promessa de ganhar ao menos R$ 2 mil mensais em uma fazenda nas proximidades. Mas, quando chegou o pagamento, receberam somente R$ 800. “A gente estava trabalhando muito, mas na hora do dinheiro, vinha pouco”, contou à reportagem Edilson da Conceição, de 35 anos. Após o pagamento, ele e os amigos saíram da fazenda e voltaram ao centro de São Joaquim, onde passaram a abordar pessoas na rua em busca de outro emprego qualquer.
Presidente da associação de produtores mantinha trabalhadores sem registro
Um termômetro das violações trabalhistas que ocorrem na região é ver o que acontece justamente nas fazendas dirigidas pelo próprio presidente da maior associação de produtores de maçã do país. No comando há 15 anos da Associação Brasileira dos Produtores de Maçã (ABPM), Pierre Nicolás Peres tem defendido, publicamente, a necessidade de rastrear a maçã desde sua origem, afirmando que “é muito importante saber de onde vem o alimento que chega até nossas casas”. “Entre outros aspectos, isso nos dá garantia de que ele foi produzido dentro de padrões éticos e legais relacionados à segurança, saudabilidade e normas ambientais”, diz.
Porém, dentro das suas próprias fazendas, esse respeito a padrões trabalhistas não tem sido a norma, como mostram as fiscalizações feitas pelo Ministério da Economia. Auditores fiscais do trabalho constataram uma série de irregularidades em duas fazendas da Pomagri, empresa dirigida por Peres em Bom Jardim da Serra, cidade vizinha a São Joaquim. Segundo a fiscalização, 33 empregados estavam trabalhando sem registro e os que atuavam como mão de obra temporária dormiam em alojamentos sem receber cobertores ou travesseiros.
O fornecimento de água também foi questionado pelos auditores. Segundo descrição dos autos, “a água potável fornecida aos empregados na frente de trabalho era consumida por todos com a utilização do mesmo copo”. A fiscalização ainda identificou que não havia “controle de jornada de nenhuma espécie”, citando os trabalhadores que operavam os tratores dentro da propriedade.
Nos últimos dois anos, a Pomagri exportou maçãs para países como Bangladesh, França e Índia. Em seu site, afirma que segue o padrão de diferentes empresas certificadoras, como Global G.A.P, BRC (British Retail Consortium) e Sedex (Supplier Ethical Data Exchange).
Procurada pela reportagem, a Global G.A.P. afirmou que a “o certificado [da Pomagri] expirou há muito anos. A informação no site da Pomagri, portanto, é equivocada”. Já o British Retail Consortium não reconheceu nenhuma ligação com a empresa, e a Sedex não respondeu aos contatos da Repórter Brasil.
Peres negou todos os problemas encontrados pelos auditores. Em e-mail enviado à reportagem, ele afirma que “a empresa realmente sofreu uma fiscalização do Ministério do Trabalho, entretanto teve apenas quatro pontos que ‘no entendimento do auditor’ estavam em desacordo com a legislação”. Além disso, diz que “a empresa não concorda com esse posicionamento [dos auditores] e, para tanto, apresentou as competentes e legais defesas, instruídas com robusta documentação. Salienta-se que essas defesas nem sequer ainda foram analisadas”.
A Repórter Brasil pediu acesso à defesa apresentada pela Pomagri, mas seu diretor se recusou a enviá-las por não desejar que “elementos externos sejam levados em conta no curso dos julgamentos que ainda estão por vir”.
A respeito das certificações, Pierre afirmou que a da Global G.A.P era necessária para fins de exportação para Europa e somente para alguns clientes. “Como atualmente não estamos realizando esse tipo de comércio, estamos economizando os recursos das auditorias, entretanto, continuamos seguindo os seus protocolos”.
Grandes produtores: sem transparência sobre fornecedores
A produção de maçã na região de São Joaquim é espalhada por pequenas propriedades na região montanhosa, com aproximadamente quatro hectares. Somente em São Joaquim, existem 1.310 produtores, segundo os dados do último Censo Agropecuário. E esses pequenos agricultores estão integrados, direta ou indiretamente, às grandes companhias.
Mas, hoje, é virtualmente impossível saber qual parte dessa produção vai parar nas grandes empresas da região. As maiores companhias do setor, como Schio, Fischer e Rasip, não fornecem publicamente o nome ou a localização de seus fornecedores.
Já o governo estadual tem cadastrado os trabalhadores dentro do programa “Safra Cidadã”, mas ele não abrange os problemas dos trabalhadores – e, sim, outras questões não relacionadas com os direitos deles. O cadastro subsidiou, por exemplo, uma grande operação da Polícia Militar neste ano, batizada de Altos da Serra, cujo objetivo era visitar “os pomares e trabalhadores no sentido de tentar buscar pessoas procuradas pela Justiça, abordagens e operações de trânsito em todos os municípios e reforço de prevenção nos pontos turísticos”, afirmou à época o comandante tenente-coronel Alfredo Nogueira dos Santos, responsável pela operação.
A ligação entre os pequenos produtores e as grandes companhias está principalmente nos chamados packings houses, locais com grandes câmaras frigoríficas que permitem que a maçã seja vendida durante todo o ano. Junto às empresas que controlam os packing houses, os agricultores trabalham em um sistema de consignação em que, antecipadamente, a empresa fornece “adiantamentos” como agrotóxicos ou o pagamento do seguro da produção contra o granizo. Após a colheita, ela determina o preço da maçã e desconta os valores do que foram antecipado do produtor, com juros próximos a 2% ao mês.
A informalidade é bastante comum nessas propriedades integradas às grandes empresas da região. “A maioria aqui trabalha meio na surdina, com duas ou três pessoas [vindas de fora]”, admite Maurício Montibeller, presidente da Associação dos Produtores de Maçã e Pêra de Santa Catarina (AMAP), entidade com cerca de 2 mil associados. “As empresas, lógico, vão fazer tudo que é de praxe e direito. Mas o produtor normal não assina uma carteira por dois ou três meses.”
As empresas da região exercem um forte controle sobre os agrotóxicos utilizados nas fazendas. Segundo produtores de maçã visitados pela Repórter Brasil, seus técnicos fazem visitas ao menos uma vez por mês para acompanhar como está sendo esse processo. Mas verificar a situação dos trabalhadores não parece ser algo levado em conta durante essas visitas: nenhuma das fazendas em que a reportagem esteve havia recebido qualquer tipo de fiscalização ou questionamento das empresas sobre assinatura de carteira, jornada de trabalho ou equipamento de proteção utilizado pelos produtores.
À espera de trabalho na rodoviária da cidade, os trabalhadores reclamavam da remuneração, feita pela quantidade de bins colhidos, como são chamadas as caixa de maçãs. Um deles, vindo de Roraima, reclamava que os dias de chuva impediam o seu trabalho e impactavam nos seus ganhos. Outro, vindo de Salinas, em Minas Gerais, dizia que era muito difícil conseguir um valor superior a R$ 1.200,00 por mês desta forma. “Se você trabalhar com uma equipe boa, você faz dinheiro. Se não, você não leva nada”, disse.
De acordo com Montibeller, a maior parte dos produtores não paga um salário fixo aos “safristas”. O valor pago pelos seus associados varia entre 20 e 28 reais por bin. Caso o trabalhador forneça “alojamento, café e janta”, o trabalhador ganha 20 reais por caixa. Se tiver só alojamento e almoço, recebe em torno de 25 reais.
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Piero Locatelli
Data original da publicação: 20/09/2019