por Igor Natusch
Entre os dias 25 e 28 de setembro, a reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, sediou o V Seminário Internacional Mundos do Trabalho. Promovido pelo GT Mundos do Trabalho da Associação Nacional de História (ANPUH), o encontro trouxe debatedores de várias partes do Brasil e do exterior para debater diferentes temas ligados ao universo do trabalho. Nas quatro mesas e duas conferências, foram feitas referências às mudanças de legislação trabalhista, à relação do universo laboral com os espaços de história pública e a questões de raça, gênero e classe na realidade do trabalho, entre outros temas. As atividades ocorreram em conjunto com a IX Jornada Nacional de História do Trabalho e a IX Jornadas Regionais do GT Mundos do Trabalho.
A conferência de abertura coube a Beatriz Mamigonian, professora associada do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na noite de terça-feira (25/09), ela propôs uma discussão a respeito de formas extremas de exploração de trabalhadores e trabalhadoras, bem como das posições adotadas pelo sistema jurídico brasileiro diante do problema. Para tal, Mamigonian traçou um paralelo entre a judicialização da escravidão no Século XIX e as posições adotadas na atualidade, em especial o embate em torno da definição de condições análogas à escravidão.
Segundo ela, há conexões evidentes entre o modo como se constrói situações de impunidade, tanto no passado escravocrata quanto no tocante às manifestações modernas de servidão em nosso país. No trajeto histórico entre um e outro, estaria evidenciada a disputa pela definição da zona entre aceitável e intolerável, com conceitos de séculos atrás (como a presença ou ausência de castigos físicos e encarceramento) ainda prevalecendo, em muitas situações, sobre entendimentos mais recentes, e já incorporados à Constituição, como o da dignidade da pessoa humana.
“O atual embate em torno da definição de trabalho análogo à escravidão simboliza o debate em torno da própria democracia”, acentua Mamigonian. “A defesa da dignidade humana, que é o centro dessa discussão, talvez seja o elemento que nos permita a superação definitiva de nosso passado escravista.”
A outra conferência, que encerrou o ciclo de debates na noite do dia 28, coube à pesquisadora boliviana Rossana Barragán, que hoje atua no International Institute for Social History, da Holanda.
“É preciso oferecer perspectiva histórica a camadas amplas da população”, diz Pamela Cox
Entre as várias esferas de discussão, houve espaço amplo para pensar e repensar formas de ampliar a consciência histórica, tão necessária para a articulação dos trabalhadores e trabalhadoras em todo o mundo. Professora na Universidade de Essex, na Inglaterra, Pamela Cox ganhou notoriedade internacional a partir da sua participação nas séries “Servants” e “Shopgirls“, exibidas pelo canal BBC Two e que ajudaram a modernizar o formato dos documentários de conteúdo histórico para a televisão. Em ambas, o caráter do trabalho está evidenciado – na primeira, ao falar dos criados e serviçais ingleses no começo do Século XX e, na segunda, sobre mulheres empregadas em lojas de departamentos, um dos maiores grupos de trabalhadoras em solo inglês da atualidade.
Em sua explanação, ela fez um resgate das diferentes iniciativas para inserir conteúdo histórico na grade de programação – o que não apenas pode trazer conhecimento do passado, mas também uma compreensão melhor dos desdobramentos e conflitos do presente. É preciso abrir mão de certo rigor, diz Cox, para atingir um público que precisa ser conquistado em questão de poucos segundos. “Coisas se perdem na tradução, quando passam da academia para a televisão. Mas há muita coisa a ser ganha, também”, defende.
Além disso, argumenta ela, segue existindo a necessidade de oferecer perspectiva histórica a camadas amplas da população – algo dificultado, no mundo atual, pelas mudanças advindas das tecnologias em rede. A emoção, defende Cox, é a chave para criar simpatia e, a partir disso, propor reflexões mais profundas. “Não se trata de impor emoção, mas de trazê-la para a linha de frente”, diferencia. “(Nesses programas) nosso esforço era ir um pouco além, propor questões sobre os dias de hoje – com delicadeza, mas tentando forçar um pouco essa consciência. Não me desculpo por usar a emoção como recurso narrativo.”
O historiador Paulo Fontes, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, expôs sua experiência como coordenador de conteúdo do Museu do Trabalho e dos Trabalhadores em São Bernardo do Campo (SP). Envolvido com o projeto a partir de 2011, Fontes relatou todo o processo de concepção do espaço – que não apenas lembraria a longa conexão do município com a história do trabalho no Brasil, mas também buscaria incentivar discussões sobre a própria natureza do trabalho e a relação dele com conceitos como cidadania, participação política e construção de comunidades.
O espaço não chegou a ser concretizado. Estigmatizado na imprensa como “museu do Lula”, a obra do edifício ficou pela metade, e não há qualquer previsão para que seja retomada. Mas Fontes procurou dar um tom otimista à sua explanação, dizendo que a experiência pode servir de ponto de partida para repensar os espaços públicos de acesso à história – tanto no combate à chamada ‘fake history‘ quanto em seu potencial para inovação (até mesmo no aspecto profissional) nas mãos de novos historiadores.
Petronilha Gonçalves e Silva alerta: racismo também é ensinado nas aulas de História
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, da UFSCar, tem amplo currículo na discussão de como a historiografia e a educação lidam com questões raciais no Brasil, e todo esse conhecimento ficou claro em sua fala, no segundo dia do Seminário (26/09). Em sua visão, o modo como é feito o ensino de história no Brasil, calcado acima de tudo em datas, acaba criando barreiras para o estudo da cultura afro-brasileira e africana nas escolas do país. “Não se celebra o 20 de novembro (Dia Nacional da Consciência Negra) nas escolas. Existem muitos cursos e material didático, mas não se avançou tanto quanto se poderia. O racismo é ensinado de várias maneiras, inclusive no ensino de História”, denuncia.
Nesse sentido, a busca de um novo projeto de sociedade em nosso país passaria pelo ensino da história do trabalho, retratando os negros e negras além da marca deixada pela escravidão, mas sem ignorar essa parte de nosso passado e presente. “No Brasil, a visão de trabalho, em especial o braçal, está muito ligada ao escravo e ao negro, em uma abordagem que ainda o vê como instrumento, e não como pessoa. São memórias duras, sim, mas não vamos contar isso, então? Não vamos nos permitir ver essas questões de frente?”, questiona.
Outros pesquisadores e professores também trouxeram questões de raça, gênero e classe às discussões do Seminário Mundos do Trabalho. Entre eles, merecem menção Benito Bisso Schmidt, da UFRGS; a professora Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA; e Glaucia Fraccaro, da Unicamp.
Efeitos de reformas trabalhistas na América Latina preocupam historiadores
Situação presente em vários países, a crescente alteração nas legislações trabalhistas é tema recorrente na academia, e vários especialistas foram ao Seminário trazer suas compreensões sobre essa série de transformações. Victoria Basualdo, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), trouxe uma reflexão sobre a atual escalada de perda de direitos trabalhistas nos países latinos, a partir das experiências da Argentina nesse sentido. Em sua visão, o que se passa atualmente em solo argentino vai além da perda de direitos, apontando mudanças profundas nas relações de trabalho, em um contexto inseparável das mudanças tecnológicas em curso. “É uma forte tendência em muitos lugares (da América Latina), inclusive aqui no Brasil”, adverte. Segundo Basualdo, é preciso que entidades ligadas aos trabalhadores e trabalhadoras promovam articulações regionais o mais brevemente possível, para uma busca conjunta por vias de ação e organização.
Clifford Welch, pesquisador e professor da Unifesp, falou sobre os desafios enfrentados pelos trabalhadores rurais em tempos de globalização – em especial, os esforços para consolidar representações coletivas diante de problemas como o trabalho análogo à escravidão e o esmagamento dos pequenos produtores. “Com o tempo, muitos viraram migrantes, na medida em que perderam suas propriedades para grandes produtores. A consequência é a redução da produção familiar, que é a principal fonte de renda no ambiente rural”, explica. Em sua leitura, a luta dos trabalhadores rurais nas últimas décadas do Século XX assumiu um enfoque acentuado na reforma agrária, deixando questões de trabalho, vida rural e salário em segundo plano – o que, a médio prazo, gerou consequências como a consolidação de um alto grau de informalidade no campo.
As mudanças nos conceitos de trabalho e emprego vão além das condições laborais, afetando o próprio conceito de tempo dos trabalhadores – o que, em consequência, obriga os historiadores do trabalho a considerar o futuro como um dos seus campos de análise. Essa foi, em termos gerais, a argumentação do professor e doutor Fernando Teixeira, da Unicamp. Ele defende que a precarização das relações de trabalho, ligada a novas modalidades como a intermitência e os contratos temporários, estão confinando o trabalhador a horizontes de curto prazo, criando uma onipresença do presente e desestruturando a coesão social desses grupos. “A reforma (trabalhista brasileira) afirma o trabalhador como alguém que se liberta do tempo rígido do emprego formal. Mas o que se cria, na verdade, é um futuro de curto prazo, uma experiência sempre em suspenso. O temporário impõe o efêmero como regra”, afirma.
Outro aspecto significativo, diz ele, é a negação que o capital financeiro propõe com relação ao passado, que perde sua autoridade enquanto experiência e acaba retratado como um erro que precisa ser corrigido. “Nosso principal combate, neste momento, é desestabilizar as narrativas de modernização. A reforma trabalhista está em disputa”, acentua Teixeira.
Contribuições aos debates também foram trazidas pelos historiadores Antonio Luigi Negro, da UFBA; Henrique Espada, ligado à UFSC; e Raquel Varela, do International Institute for Social History e da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. As mediações das mesas ficaram a cargo de Isabel Bilhão, da Unisinos; Aldrín Castellucci, professor da UNEB; Diorge Konrad, do corpo docente da UFSM; e Alisson Droppa, da Unicamp.
O caderno de resumos das apresentações em sessões de comunicações pode ser acessado aqui.