É claro que Henry Ford não era comunista. Ao contrário, foi um notável empreendedor individual, construiu e acumulou riqueza pessoal e, para arrematar, chegou a ter relações bastante amistosas com nazistas. Mas é bem possível que o fordismo seria classificado como espécie de doutrina comunista caso tivesse surgido por esses dias do obscuro século XXI.
Rodrigo Trindade
Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 19/01/2021
Após mais de um século de operação em solo brasileiro, a Ford reconhece a inviabilidade de produção no país, decide fechar todas as suas quatro fábricas e manter produção apenas com importação de vizinhos. Mais que opção administrativa de uma empresa aleatória, há um significado gigantesco em medida tão radical.
É claro que Henry Ford não era comunista. Ao contrário, foi um notável empreendedor individual, construiu e acumulou riqueza pessoal e, para arrematar, chegou a ter relações bastante amistosas com nazistas. Mas é bem possível que o fordismo seria classificado como espécie de doutrina comunista caso tivesse surgido por esses dias do obscuro século XXI. O termo foi criado pelo próprio industrial, em 1914, para designar sistema produtivo de massa, firmado a partir de inovações técnicas e organizacionais. Em forte simplificação, uma linha de montagem constituída por trabalhadores com tarefas extremamente especializadas, repetitivas e extrema produtividade.
Mas os anos seguintes mostraram que o fordismo guarda componente econômico indissociável. A industrialização favorecida pelo sistema deu origem à chamada condição assalariada moderna. Com a ampliação produtiva, começou a se desenvolver novo perfil de operários, até então destituídos de garantias trabalhistas e apenas detentores de renda suficiente para a própria reprodução humana. Como bem resumiu o sociólogo Robert Castel, o fordismo fez com que o salário, então, passasse a comandar o consumo. É através dessa forma complexa de contraprestação que os próprios trabalhadores tornaram-se usuários da produção de massa e promoveu-se notável ciclo de crescimento econômico planetário.
A revolução operada por Ford – em grande parte com os aportes de Frederick Taylor (1856-1915) – ultrapassa as inovações da disciplina industrial e abertamente advogada a importância do “five dollars day”. Não foi pensada como simples aumento altruístico do salário, mas integração nas engrenagens da possibilidade do operário moderno ter acesso ao estatuto de consumidor dos produtos da sociedade industrial. O próprio Ford declarou “A fixação do salário da jornada de oito horas em cinco dólares foi uma das mais belas economias que já fiz na vida, mas elevando-se a seis dólares, fiz uma economia melhor ainda”.
O próprio papel do Estado precisou ser repensado no fordismo, passando a ter obrigações positivas para com os operários. Também Castel explica que as derrogações patronais à “lei de bronze dos salários” não consistiram simples ampliações de pagamentos efetuados pelos empregadores, mas especialmente em subvenções sociais não monetárias para casos de doença, acidente, velhice e desemprego. Tratou-se, aqui, de outra das importantes condições de alcance da condição salarial moderna: o acesso à propriedade social e aos serviços públicos.
Seguindo-se a obscura nova tradição nacional de negacionismo, já se lê e escuta afirmações para a desistência da Ford: especialização do mercado, impacto de novas tecnologias e – a maior das bobagens – culpa da legislação brasileira.
Mas não é apenas a histórica montadora americana que segue o caminho do aeroporto. Outras fabricantes, principalmente, de veículos de luxo, já declararam encerramento ou redução substancial de operações fabris no Brasil, como Audi, Mercedes e Land Rover. Segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), já são 36 mil fechamentos no Brasil, entre 2015 e 2020, uma média, 17 fábricas por dia nesse período. Em 2020, a fatia da transformação no PIB nacional deve chegar a 11,2%, o mais baixo desde 1946. Mesmo com os problemas cambiais e falta de renovação na produção, note-se que, segundo a série histórica iniciada em 2002, até 2014 o número de fábricas crescia, mesmo com a indústria perdendo relevância na economia. Há uma indisfarçável aceleração que precisa ficar melhor compreendida em suas causas.
Nos últimos anos, o Brasil não observou os postulados do fordismo. Em grande parte resultado de numerosas convulsões sociais experimentadas desde meados de 2016, a reforma laboral implementada no ano seguinte surgiu com a promessa de modernizar as relações trabalhistas, reduzir desemprego e aumentar a renda. E vem passando muito longe.
No tempo de vigência, a Lei 13.467/2017 não apenas deixou de cumprir a jura da criação de novos postos, como manteve o desemprego excepcionalmente alto. Desde antes da pandemia, o número de desempregados estava estabilizado em aproximadamente 12%, mas com crescimento de diversas categorias de subutilizados. Desde então, os empregos informais (fora da carteira de trabalho) seguiram crescendo, sem qualquer sinal de arrefecimento. Em todas as atividades, o grupo de informais é o que está em expansão, fazendo com que não registrados, somados autônomos sem cadastro de pessoa jurídica, já somem mais de 40% dos ocupados no Brasil. Com sua natural redução de renda e fora da rede de proteção social da relação de emprego, esmaga-se a capacidade de consumo.
Nos anos seguintes à Reforma Trabalhista, também vimos a transformação de empregos formais. Passaram não apenas para o mercado negro, mas para os agora legalizados contratos de emprego precarizados (terceirizados, tempo parcial e intermitentes), contribuindo ao cenário da redução de rendas. O fim da ultratividade das normas coletivas barrou negociações entre empresas e sindicatos, impedindo reajustes e aumentos reais. Para ficarmos apenas no cenário pré pandemia, no primeiro semestre de 2018, a quantidade de convenções coletivas fechadas recuou 45,2%, na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo levantamento feito pela Fipe.
Mesmo aos restantes trabalhadores com empregos formais padronizados o achatamento de renda é evidente. Em 2021, o salário mínimo nacional alcançou a pior proporção em relação ao custo da cesta básica em dez anos, conforme dados do Dieese. Isso gera uma cadeia de empobrecimento. Da mesma forma que empregados domésticos não costumam ter recursos para viagens de férias internacionais, recebedores de salário mínimo não compram automóveis novos. Mas é o esmagamento do consumo na base que contém o do topo.
Esquecendo justificativas e mascarando consequências, pouco tempo depois, a Reforma Trabalhista cedeu protagonismo à irmã previdenciária. No lugar de rever as destrutivas regras laborais que vêm contribuindo para o empobrecimento, freando a economia e nutrindo o déficit do INSS, foi a Reforma da Previdência que se apresentou como salvadora da prolongada crise econômica. E ao reduzir o âmbito de atuação da Seguridade, com atravancamento de prestações, seguiu-se ignorando os postulados do fordismo econômico. A redução das prestações previdenciárias e da saída do Estado nos investimos de infraestrutura desidratam o segundo postulado do fordismo, o papel reservado ao Estado para ações prestacionais e serviços públicos.
A maior parte da renda nacional – e do consumo preconizado pelo fordismo – tem origem em salários e benefícios previdenciários, e não parece ser segredo que fortalecer ganhos de quem consome é o mais eficaz meio de construir a economia. A iniciativa de alteração de regras da Seguridade Social tende a fazer avançar um dos mais trágicos efeitos da irmã laboral: a retração de relações de emprego formal e resultante perda de arrecadações previdenciárias.
Segundo dados do CAGED, o Brasil perdeu mais de 43 mil empregos com carteira de trabalho apenas em março de 2019. Com exceção do setor de serviços, que gerou meros 4,5 mil postos, os demais grandes setores perderam postos de trabalho com destaque negativo para o comércio, com – 28 mil empregos. Todas as regiões geográficas perderam vagas e apenas oito Estados tiveram geração positiva de empregos.
Entre 2016 e 2018, o mercado de trabalho brasileiro experimentou aumento de 23% do número de autônomos e essa passagem não significou qualquer melhora da renda. Ao contrário. Também em dados do IBGE, somente para os novos autônomos, a migração forçada resultou redução de 33% da renda. Sejam movidos a combustão, motores elétricos ou células de hidrogênio, não há volume de compradores de carros em território nacional com tanto achatamento de renda. Cadê o consumo? O reformismo inconsequente levou.
O binômio destruição de empregos/ queda de arrecadação parece mais que efeito indesejado de uma robusta interferência ideológica nas legislações trabalhista e previdenciária. Com a aprovação da PEC 55 e barragem de investimentos públicos por 20 anos em país tão carente de infraestrutura, torna-se muito difícil manter investimentos de multinacionais. Planejadores de grandes empresas vivem de resultados e análises sérias, não de esperanças falsificadas e alimentadas por vieses ideológicos destrutivos.
É o capitalismo que se defende e busca preservação. Estudiosos importantes como Thomas Piketty há anos alertam que a distribuição de riqueza é uma das questões mais vivas da atualidade e que a trajetória de concentração exacerbada não conseguirá se sustentar por muito tempo. Para o ganhador do Nobel de Economia, a ampliação de desigualdades hoje vivenciada em muitos países é situação insustentável, arbitrária, que ameaça de maneira radical a própria sobrevivência do capitalismo. Simplesmente não há qualquer motivo para acreditar que o crescimento tende a se equilibrar de forma automática, e o Brasil vem produzindo exemplo cruel.
A aposta na precarização do trabalho é exatamente o oposto do que Henry Ford pensou como forma de viabilizar sua produção. Seria muito incoerente permanecer por aqui. De bobo, Ford não tinha nada – e muito menos o fordismo.
Rodrigo Trindade é professor universitário, ex-Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região – AMATRA IV, juiz do Trabalho na 4ª Região.