Quais alterações na regulação das relações de trabalho e no modelo de representação coletiva dos trabalhadores serão necessárias para promover a equidade, a inclusão social e o desenvolvimento humano?
Carlos Henrique Horn
Fonte: Sul21
Data original da publicação: 04/05/2021
A celebração do dia 1° de maio ocorreu sob um contexto bastante desfavorável aos trabalhadores brasileiros. Desde o início da pandemia da Covid-19, o número de postos de trabalho despencou em quase oito milhões. O país totaliza mais de 14 milhões de pessoas desocupadas e a taxa de desemprego atingiu 14,4% da força de trabalho em fevereiro. Fora da população economicamente ativa, mas desejando uma ocupação, o número de pessoas desalentadas já alcança a marca de quase seis milhões. As estatísticas compiladas pelo IBGE, segundo metodologia internacional, desenham um cenário de pobreza e desesperança.
Os efeitos da crise sanitária agravaram as dificuldades dos anos recentes. Na conjuntura iniciada com a crise política e econômica de 2015-16, o desemprego mais do que duplicou de tamanho – após anos de redução gradativa – e o governo que nasceu do golpe promoveu “a mais ampla reforma na legislação trabalhista”. Ironicamente, a promessa de uma ampla reforma trabalhista, inscrita no programa da coligação que elegeu Lula em 2002, acabou por se materializar mais de uma década depois, porém com o sinal totalmente contrário. Um de seus mais deletérios resultados foi o radical enfraquecimento da representação coletiva dos trabalhadores. Donde a pergunta: quando os ventos da política soprarem em favor da construção nacional, haverá interesse em fortalecer essa representação coletiva?
O sistema brasileiro de relações do trabalho tem suas origens no processo de institucionalização do capitalismo no Brasil levado a cabo durante o primeiro governo Vargas. Em pouco mais de uma década, ergueram-se as bases da regulamentação do trabalho assalariado no país cujos elementos fundantes perduram até hoje, não obstante as várias e relevantes modificações a que se submeteu desde então. No que tange à representação coletiva dos trabalhadores, todavia, sua essência manteve-se intocada: o forte controle do Estado sobre a atividade sindical. E mesmo naquela que parecia ser a norma que abalaria o pedestal do sindicalismo controlado, que foi a Constituição de 1988, permaneceu intocado o monopólio da representação a instituições financiadas por mecanismo tributário e o poder para fins do reconhecimento de seus direitos – de receber recursos do imposto sindical, de negociar coletivamente etc. – não saiu das mãos do Estado.
A mais abrangente tentativa de mudar o modelo sindical brasileiro aconteceu nos três primeiros anos do governo Lula, quando se realizou o Fórum Nacional do Trabalho (FNT). A partir de 2003, conforme palavras do então ministro do Trabalho, senador Jacques Wagner, buscou-se promover a “discussão de um novo contrato social entre capital e trabalho que abrigasse o consenso entre os participantes do Fórum”. O secretário de Relações de Trabalho, Osvaldo Martines Bargas, era claro quanto ao propósito: “A conclusão a que chegamos é que o modelo atual está falido e não pode continuar assim”.
O FNT foi um processo memorável pelos debates que testemunhou e pelo documento final na forma de um anteprojeto de lei de relações sindicais. O consenso reformista obtido no ápice do FNT, donde tiveram assento as centrais sindicais e as representações confederadas dos empregadores, não refletia, entretanto, a divergência visível nas conferências estaduais entre os grupos que defendiam o modelo herdado do corporativismo estatal – ainda que alterado pela Constituição de 1988 – e os que advogavam uma reforma de grande alcance no sistema de representação e de negociação coletiva do trabalho. Logo, o intento da “mais ampla reforma” foi abandonado pelo governo e o único legado importante do Fórum foi a extensão do financiamento tributário às centrais sindicais.
A reforma trabalhista do governo Temer foi de natureza completamente diferente daquela que animava tanto o consenso reformista, quanto o consenso continuista, que haviam dominado os processos do FNT. A rigor, seu princípio fundamental esteve mesmo ausente dos debates do Fórum. Sua essência não pode ser capturada nos chavões de que fez uso – flexibilização, por exemplo –, nem no falso propósito de fortalecer a negociação coletiva, nem tampouco na promessa transgredida de gerar empregos. Seu princípio motivador foi o de aumentar – tanto quanto permita a Constituição – o poder decisório dos empregadores em matéria de regulação das relações de trabalho. Nisto, a reforma foi tremendamente bem-sucedida. A fim de alargar o espaço normativo dos empregadores, foi necessário restringir os mecanismos não mercantis de regulação das relações de trabalho e sufocar um dos seus principais atores, os sindicatos.
A defesa de modelos regulatórios do trabalho que limitem o poder decisório unilateral do empregador, aquele sujeito apenas às constrições do mercado de trabalho, está bem fixada em argumentos rigorosos. Um grande cientista social do século XX, Karl Polanyi, na sua obra magistral, A Grande Transformação, denominou o trabalho de mercadoria fictícia e destacou que sua livre exploração pelos mecanismos de mercado poderia levar à perda mesma da substância humana dessa mercadoria. Abundantes fatos relacionados ao processo de industrialização da Inglaterra no século XIX – jornadas de 16 horas, adoecimento frequente etc. – e em outros países encontram-se suficientemente documentados e demonstram os riscos para a vida societária de deixar a regulação do trabalho sob exclusiva responsabilidade da seara mercantil. Não é por menos que, lembra Polanyi, a sociedade teria se protegido contra os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável.
No século XX, os sindicatos e a negociação coletiva de trabalho emergiram como uma das principais alternativas para mitigar os problemas do mercado auto-regulável, originando uma variedade de arranjos institucionais entre os países. Entretanto, a partir do último quartel do século, houve um recuo gradativo do mecanismo da negociação e da representação coletiva dos trabalhadores sob o impacto da globalização e de políticas governamentais francamente desfavoráveis aos sindicatos. Nos Estados Unidos, o enfraquecimento sindical está dentre os principais fatores explicativos da estagnação dos salários nas últimas quatro décadas, de por que o progresso econômico foi apropriado tão somente pelas rendas de propriedade, e do aumento vertiginoso da desigualdade. Atualmente, novos ventos sopram naquele país, despertando curiosidade sobre o alcance das palavras do novo presidente, Joe Biden, que afirmou que “os sindicatos dão uma voz mais forte aos trabalhadores em questões de saúde, segurança e melhores salários”. O que poderá mudar nos procedimentos de certificação sindical do National Labor Relations Board? Haverá constrangimentos às ações antisindicais? Mudará a legislação? Assim como ocorreu no início dos 1980, mudanças de envergadura naquele país poderão exercer alguma força gravitacional que desperte processos semelhantes quanto à agenda da representação coletiva dos trabalhadores no resto do mundo.
No Brasil, embora o ambiente totalmente desfavorável aos trabalhadores resulte provavelmente em mais mudanças regressivas antes que uma nova política se apresente, vale conjecturar sobre o que fazer quando a mudança chegar. Quais alterações na regulação das relações de trabalho e no modelo de representação coletiva dos trabalhadores serão necessárias para promover a equidade, a inclusão social e o desenvolvimento humano? Para dar voz aos trabalhadores naquelas decisões que lhes atingem diretamente em sua vida laboral? Um cenário possível é o da tentação de retomar os marcos básicos do corporativismo estatal, apostando no sindicato monopolista por categoria e de base municipal, sem presença necessária nos locais de trabalho, financiado por tributos e com direitos exclusivos de representação. A inércia é sempre forte.
De outro lado, pode-se conceber este momento como uma oportunidade para assentar as bases normativas de um modelo de representação coletiva por instituições efetivamente independentes do controle da burocracia estatal. Em lugar de construir a priori e detalhadamente a estrutura de representação, replicando o quadro sindical da CLT com outra forma, valeria formular uma agenda com poucos e decisivos elementos que incentivem a representação coletiva dos trabalhadores num ambiente de coordenação econômica. Uma lista não exaustiva incluiria o processo de legitimação mediante certificação de sindicatos pelos representados; a possibilidade de representação em múltiplos setores e empresas por ente sindical singular; critérios para definição do(s) sindicato(s) com poderes de negociação coletiva e outros; o financiamento compulsório dos sindicatos vinculado à celebração de contratos coletivos; a regulamentação do dispositivo constitucional da representação nos locais de trabalho; as especificidades da representação no setor estatal; e a regulação coletiva dos novos tipos de relações de trabalho associados à revolução industrial em curso. Haverá o tempo político de uma nova reforma sindical para o qual cabe, desde logo, fomentar ideias e argumentos.
Carlos Henrique Horn é economista e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutor em Industrial Relations pela London School of Economics and Political Science.
Parabéns pelo artigo.