Há uma revolução em curso nas relações de trabalho dos EUA, e isso pode chegar por aqui.
Rodrigo Trindade
Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 28/11/2021
Há profundas alterações em curso nas relações de trabalho no centro do capitalismo mundial. “Revolução dos trabalhadores” e “levante contra chefes ruins e empresas surdas aos seus funcionários, que se recusam a pagar bem e tiram vantagens deles” são expressões utilizadas não por sindicatos, organizações de esquerda ou blogueiros alarmistas, mas pela Revista Forbes, a mais importante publicação financeira do planeta.
Insatisfações generalizadas com o trabalho já fizeram com que cerca de 4,3 milhões de americanos deixassem voluntariamente seus trabalhos, desde agosto, segundo o U.S. Bureau of Labour Statistics. “Great Resignation” é nome que o evento já recebeu, e quando fenômenos sociológicos recebem denominações em maiúsculas, parece que, realmente, a coisa é séria.
O processo coincide com iniciativa de origem em redes sociais, que já conta com cerca de um milhão de membros e tem por chamada “desemprego para todos, não apenas para os ricos”. Embora possa inicialmente parecer, não se trata de reclamos ao ócio ou de valorização da preguiça, mas de uma nova função para o salário assalariado. Essencialmente, pretende chamar à discussão para a necessidade de ambientes de trabalho mais saudáveis, combater esgotamentos (burnout) e reivindicar remunerações mais justas.
Ryan Roslansky, executivo-chefe do Linkedin, avalia haver alterações massivas em curso na força de trabalho, chamando de “Grande Remodelação” (Great Reshuffle). “Estamos passando por momento de mudanças, diferente de tudo que já tivemos antes, na história do trabalho. Chamamos isso de ‘Grande Remodelação’, um tempo em que todos estão repensando tudo. Líderes empresariais estão repensando todos os seus modelos de trabalho, culturas e valores, diz Roslansky. “Ao mesmo tempo, empregados estão repensando não apenas seus trabalhos, mas o porquê, procurando por oportunidades mais compatíveis com suas necessidades”
Epifanias da pandemia: sindicalização, greve e felicidade individual
Embora o movimento já exista desde 2013, a pandemia promoveu notável aceleração, e já vem sendo identificado como a “epifania da pandemia”. Segundo a Forbes, com aumento das demandas de trabalho, as pessoas estão agora procurando por alteração do estilo de vida, com trabalhos mais saudáveis e felizes.
Em análise efetuado por El País a partir de especialistas no tema, há reconhecimento de espécie de abalo sísmico, uma reescrita do contrato social a partir das relações de trabalho, com renivelamento das forças do capital e trabalho, a favor do segundo.
Em grande parte, esse reequilíbrio estaria sendo alcançado a partir da mobilização sindical, vista em diversos estados americanos, e que tem levado à alta histórica no número de greves. A aprovação popular dos sindicatos alcançou 68%, a mais alta desde 1965, de acordo com levantamento do Instituto Gallup, efetuado em setembro de 2021.
Empresas tradicionais, como Kellogg e John Deere, começam a experimentar paralisações inéditas de seus empregados – a primeira com 1,4 mil funcionários, e a segunda com 10 mil pessoas cruzando os braços por melhores condições de trabalho. Além das atividades industriais, as paralisações se espalham por Hollywood – com centenas de trabalhadores cinematográficos – e setor de serviços: cerca de 21 mil trabalhadores da Kaiser, empresa de cuidados médicos, decidiram autorizar movimento paredista.
Alexander Colvin, especialista em leis e conflitos do trabalho, ouvido por BBC, percebe que os Estados Unidos passam por momento chave, e que pode alterar as características do capitalismo local, conhecido por seu mercado de trabalho carente de regulação nacional. Para o professor da Universidade Cornell, o momento é parecido com a economia pós-Segunda Guerra Mundial, com alteração das expectativas das pessoas e percepção de que elas merecem mais.
Para Colvin, o panorama potencialmente negativo para a economia, pode se mostrar um ganho social importante. “Há potencial para uma mudança real na direção de reconhecer mais direitos para os funcionários no trabalho. Os EUA se destacam como o país rico que não oferece proteções realmente básicas, como direito à licença médica remunerada, direito a férias básicas, a não ser despedido de forma injusta e arbitrária sem aviso prévio. O país tem mercado de trabalho totalmente desregulamentado. Isso está começando a mudar. E acho que essa mudança pode se acelerar”, diz o especialista.
Os direitos trabalhistas citados por Colvin são tradicionalmente objeto de regulação estatal nacional, na Europa Ocidental e na América Latina. Ainda segundo ele, não existe uma contradição entre leis trabalhistas e crescimento econômico acelerado, argumento frequentemente levantado pelos que defendem regulação mínima. O exemplo disso estaria dentro do próprio EUA: a Califórnia é um dos Estados que oferecem mais garantias aos empregados e é ao mesmo tempo o maior PIB do país e celeiro de inovação tecnológica. Na Europa, a Alemanha, que segue como locomotiva da UE, é conhecida pela elevada carga de direitos trabalhistas.
Heidi Shierholz, presidente do Economic Policy Institute, e ex economista-chefe do U.S. Department of Labor (o equivalente ao Ministério do Trabalho brasileiro), durante a administração Obama, alerta que essa alteração radical vem atrasada. “Temos visto por décadas o aumento da desigualdade e estagnação da renda, com trabalhadores não obtendo compartilhamento justo do crescimento econômico”, diz Shierholz em entrevista para o Los Angeles Times.
Nossa Revisão
Nos meses que se seguiram ao final da II Guerra Mundial, os EUA testemunharam mais de cinco milhões de trabalhadores entrando em greve, reivindicando melhores salários e reduções de jornadas. O movimento foi essencial para a remodelação das condições de trabalho no país – e que, em grande parte, espraiou-se para boa parte do mundo capitalista, auxiliando a fomentar a busca do pleno emprego e construção do estado de bem estar social.
Embora seja ainda difícil esperar esse volume de movimento paredista no encerramento da pandemia, parece certa a vontade geral de repensar os modos de trabalhar e, principalmente, de dividir as riquezas nacionais.
A desigualdade de renda, em comparação com a alta lucratividade das empresas, é questão que há muito já ultrapassou a pauta de organizações operárias. Diversos economistas – com destaque para François Pikety – há anos destacam a incompatibilidade da permanência do capitalismo com o ambiente atual de crescimento da desigualdade.
Aqui, apresentamos os resultados do Nobel de Economia para a compreensão da inconveniência de precarização do trabalho para o crescimento econômico; e aqui, mostramos os equívocos das recentes políticas públicas brasileiras para o trabalho e consumo.
Se os estudos acadêmicos foram até então pouco ouvidos, é possível que a renovação dos movimentos operários – agora muito mais individualizados, complexos e integrados a redes internacionais de comunicação – passe a se fazer ouvir.
Rodrigo Trindade é professor universitário, ex-Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região – AMATRA IV, juiz do Trabalho na 4ª Região.