Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 24/05/2018
A paralisação dos caminhoneiros é, a princípio, legítima. Nasceu do descontentamento real de autônomos, que possuem seus veículos e prestam serviços, com os aumentos do diesel e com a política de preços da Petrobras – que flutua de acordo com o preço internacional dos derivados do petróleo. Isso leva a aumentos, de uma hora para outra, no custo do frete e reduz a margem que fica para o caminhoneiro.
Ela conta com o forte apoio de empresas de transporte de cargas, contudo, que dominam o cenário e tentam sequestrar a pauta. Ou seja, uma greve legítima de trabalhadores junto a um locaute de empresas interessadas no corte de custos e aumento de lucros. O governo – se como governo agisse – garantiria que patrão que usa grevista fosse devidamente punido. Não são os únicos que fazem isso, contudo: as pautas políticas (bizarras) de algumas entidades de classe também demonstram que seus dirigentes tentam usar a categoria em nome de interesses particulares.
Conversei com dois caminhoneiros, que vivem na região Sudeste do Pará e pediram para não serem identificados. Contaram que insatisfações estavam sendo lentamente cozidas, há tempos, nos grupos de WhatsApp com outros colegas. A concorrência é grande, o valor pago pelo frete, pequeno, o que sobra para bancar a família, quase nada.
Um detalhe não tão pequeno: da mesma forma que a bateção de panelas pró-impeachment surpreendeu quem não estava inserido em grupos de mensagens com antipetistas, a maioria de nós não tinha ideia de que havia tal movimentação de caminhoneiros dado o caráter fechado da rede. Isso torna mais difícil detectar as outras insatisfações que estão prestes a estourar.
O governo Michel Temer, porém, não pode ser acusado de ter sido surpreendido. Recebeu avisos de entidades representativas da categoria de que sua batata estava assando. Mas preferiu, como sempre, fazer a egípcia e ignorar.
A Petrobras está sendo pressionada a abrir mão de parte de seu lucro e contabilizar mudanças no preço dos derivados de petróleo ao longo de, por exemplo, um semestre, entregando datas previsíveis para reajuste. Por mais soviético que isso possa parecer, já funciona de certa forma com o gás de cozinha. A possibilidade para o diesel já aterroriza os acionistas da empresa, que temem voltar a uma situação de controle artificial dos preços presente no governo passado. As ações preferenciais da companhia operavam com queda de 14%, às 10h20, desta quinta (24/05).
A gigante brasileira de energia é uma empresa de capital misto cujo comando é indicado pelo governo federal. Não deve, portanto, apenas produzir ganhos a seus acionistas, mas conta com um papel relevante para influenciar outros setores da economia e executar políticas de desenvolvimento social. Faz-se necessário, portanto, um equilíbrio entre o que desejam seus acionistas minoritários e a qualidade de vida do país. O mercado, através de guerrilha midiática e chantagem descarada, sabe fazer pressão de uma forma bem mais profissional do que os trabalhadores e o grosso da população.
Neste caso, o presidente da companhia indicado por Temer, Pedro Parente, tentou manter as aparências de que a decisão de reduzir o diesel em 10% por 15 dias foi inteiramente da empresa. Poucos acreditam nisso. Se fosse resultado de intervenção do governo, a União teria que bancar parte das perdas.
O povão sempre rechaçou a ideia de privatização da Petrobras por conta do discurso de soberania nacional, de patrimônio público e dos ecos das campanhas passadas de que o petróleo é nosso. Contudo, já está caindo a ficha para muita gente de que as políticas da empresa afetam mais o nosso dia a dia do que imaginavam. Com o controle da Petrobras sob mãos do setor privado, provavelmente hoje discutiria-se uma saída apenas via redução de impostos, causando um rombo irreparável nas contas públicas. Ou a empresa seria sitiada chamaria a polícia para abrir os piquetes e o pau resultante seria um Deus-nos-acuda.
Por que os caminhoneiros não fazem pressão sobre quem contrata os seus serviços, transmitindo o aumento do custo? Porque é mais fácil arrancar algo desse governo do que de grandes empresas que dependem de transporte rodoviário – tanto que associações e produtores rurais que dependem do frete estão, por exemplo, apoiando a greve. Dessa forma, socializam para nós o problema que seriam deles. Além disso, temos uma frota maior de caminhões após os anos de bonança e menos carga por conta da crise. Para cada um que nega um frete, há dois que topam.
A redução de impostos pura e simplesmente não resolve. Mensagens com argumentos superficiais nas redes sociais podem exigir que todos os impostos de combustíveis sejam imediatamente zerados sob a justificativa de que esses valores arrecadados são usados apenas para bancar corruptos. Esquecem que educação e saúde pública, por exemplo, custam caro. Quem produz e compartilha essas mensagens, não raro, são as mesmas pessoas que rangem os dentes quando seus investimentos perdem rentabilidade, como se o principal ralo do orçamento da União não fosse exatamente o pagamento de juros.
Isso sem contar que impostos na gasolina também deveriam ter função de dissuadir o uso do transporte individual em detrimento ao coletivo, reduzindo a emissão de gases tóxicos que matam cidadãos de grandes cidades. Novamente, se tivéssemos um governo, o momento após a solução deste embrólio seria perfeito para discutir o apoio à expansão ferroviária – que, no Brasil de dimensões continentais, é lento e vergonhosamente caro.
E, falando em gasolina, na rabeira da pressão contra o diesel dos caminhoneiros, segue a insatisfação contra o preço da gasolina por taxistas, motoboys, motoristas de Uber e outros aplicativos de transporte. Prometem fazer um escândalo se caminhoneiros forem atendidos e eles não.
Coincidentemente, nos últimos dias tivemos paralisação ou ameaças de greve por parte de professores da rede particular de ensino, de motoristas e cobradores de ônibus, entre outros. Não apenas por salário, mas por condições mínimas de trabalho ou segurança diante da violência.
O descontentamento que estava sendo levado em banho-maria pelo grosso desalentado da população, extremamente descrente quanto à competência e vontade do governo em dar respostas aos problemas de sua vida, pode estar chegando a um limite ainda neste ano.
Caso o governo ceda em breve, reduzindo o valor dos impostos do diesel e a Petrobras se comprometa a rever sua política de reajuste de preços, o país fica livre dessa crise. Até a próxima.
Porque a partir do momento em que uma categoria de trabalhadores e empresários mostra como é fácil sitiar um governo, isso empodera outros grupos da sociedade – tanto os que têm pautas legítimas quanto aqueles que só desejam ver o circo pegar fogo em nome de seus objetivos eleitorais.
Considerando que o primeiro grupo é gigante dada a situação econômica e o segundo, barulhento, por saber criar pânico via redes sociais, o período de real turbulência do país pode estar apenas começando.
O atual governo não tem legitimidade para negociar, dialogar ou fazer valer as leis. Os caminhoneiros sabem disso, as empresas de transporte sabem disso, os grandes produtores rurais e as indústrias sabem disso, a sociedade brasileira sabe disso. A solução passa, incondicionalmente, por eleições democráticas e que respeitem a vontade da população. Sem isso, iremos transferir para os próximos quatro anos o que temos vividos nos últimos quatro dias.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.