O ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira atendeu a um antigo pedido da bancada ruralista no Congresso Nacional e reduziu o conceito de trabalho escravo através de portaria publicada, na segunda (16/10), no Diário Oficial da União.
Sob a justificativa de regulamentar a concessão de seguro-desemprego aos resgatados do trabalho escravo, benefício que lhes é garantido desde 2003, uma nova interpretação para os elementos que caracterizam a escravidão e que, portanto, norteiam a ação das operações de fiscalização foi publicada. Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida do trabalhador) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
A nova portaria estabelece a existência de cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de ”condições degradantes” e de ”jornada exaustiva”, ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo a lei, qualquer um dos quatro elementos é suficiente para caracterizar esse tipo de exploração. Dessa forma, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passam a ser acessórias para os flagrantes de trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais e a concessão de seguro-desemprego aos resgatados.
O texto da portaria obriga a todas as fiscalizações a obedecerem a nova interpretação do conceito.
”A portaria 1.129/2017 consiste em mais uma grande iniciativa do governo federal para enfraquecer o combate ao trabalho escravo em nosso país. O Ministério Público do Trabalho não ficará inerte.
Diante de mais uma ilegalidade, está reunido junto com outras entidades públicas e privadas, para a adoção das medidas judiciais e extrajudiciais em sua esfera de atuação”, afirma Maurício Britto, procurador do trabalho e vice-coordenador nacional da área responsável pelo repressão à escravidão do Ministério Público do Trabalho. ”Por meio de instrumentos normativo inadequado, o Ministério do Trabalho deseja modificar o conceito de trabalho análogo à escravidão do Ministério Público do Trabalho.
”Por meio de instrumentos normativo inadequado, o Ministério do Trabalho deseja modificar o conceito de trabalho análogo ao de escravo do artigo 149 do Código Penal, fazendo-se substituir pelo legislador ordinário”, completa.
A nova portaria também reforça a questão do não consentimento do trabalhador para a caracterização de trabalho forçado. Hoje, em consonância com as Nações Unidas, as operações de resgates de pessoas têm considerado o consentimento irrelevante para a caracterização. Dessa forma, mesmo que uma pessoa aceite uma proposta de trabalhar só por comida, o Estado tem a obrigação de considerar tal ato como escravidão contemporânea.
A bancada ruralista e alguns membros de outros setores econômicos com incidência de trabalho escravo, como o da construção civil e vestuário têxtil, têm defendido que é difícil caracterizar ”condições degradantes” e ”jornada exaustiva”, o que geraria ”insegurança jurídica”. Técnicos do Ministério do Trabalho e procuradores do Ministério Público do Trabalho afirmam que há instruções e enunciados detalhados e conhecidos a respeito disso, além de jurisprudência e decisões do próprio STF.
A portaria também condiciona a inclusão de nomes à ”lista suja” do trabalho escravo, cadastro de empregadores flagrados por esse crime que garante transparência ao combate à escravidão, a uma determinação do próprio ministro.Ou seja, a divulgação pode deixar de ter uma caráter técnico e passar a contar com uma decisão política. As novas regras afirmam que, para serem válidos para levarem um empregador à lista, os autos de infração relacionados a um flagrante de trabalho escravo dependem da presença de um boletim de ocorrência lavrado por uma autoridade policial que tenha participado da fiscalização. Dessa forma, a palavra final sobre a existência de trabalho escravo pode sair das mãos de auditores fiscais, especialistas no tema, e passar para a dos policiais.
Condições degradantes e jornada exaustiva, mesmo quando não venham acompanhadas de cerceamento de liberdade, contribuem para ampliar as serias distorções e a segmentação do mercado de trabalho nacional, gerando mais pobreza e déficit social, o que comprovadamente estimula a violência, fatores esses que deveriam ser levados em consideração pela pasta antes de editar norma do gênero’, afirma Renato Bignami, doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade Complutense de Madrid e auditor fiscal do trabalho.<
‘A nova interpretação da portaria vai de encontro com a tendência mundial, criando enorme insegurança jurídica, o que pode contribuir para o aumento do receio do investidor, principalmente o estrangeiro”, conclui.
O Ministério do Trabalho, em nota oficial, afirmou que a portaria ”aprimora e dá segurança jurídica” à atuação do Estado brasileiro.
Segundo a instituição, ”o combate ao trabalho escravo é uma política pública permanente de Estado e que vem recebendo todo o apoio administrativo desta pasta, com resultados positivos concretos relativamente ao número de resgatados, e na inibição de práticas delituosas dessa natureza, que ofendem os mais básicos princípios da dignidade da pessoa humana”. Também diz que a ”lista suja” é um ”valioso instrumento de coerção estatal”, afirmando que ela ”’deve coexistir com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório”.
A portaria ocorre menos de uma semana após a exoneração do coordenador nacional de fiscalização do trabalho escravo do próprio ministério, André Roston. Sua dispensa causou polêmica porque a mudança teria partido da base de apoio do governo no Congresso Nacional em meio às negociações para que não seja admitida a segunda denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer. Em depoimento ao Senado Federal, Roston havia informado que as operações de fiscalização de trabalho escravo estavam sem recursos financeiros.
Alerta das Nações Unidas
Há projetos no Congresso Nacional que tentam mudar a definição do que seja trabalho escravo contemporâneo. Pelo menos três tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal a fim de reduzir os elementos que caracterizam escravidão e, portanto, a sua punição. Contam com o apoio da bancada ruralista, entre outros setores econômicos, e de nomes próximos a Michel Temer, como o senador Romero Jucá (PMDB-RR), responsável por um deles.
Em abril do ano passado, a Organização das Nações Unidas defendeu oficialmente a manutenção do atual conceito de trabalho escravo no vigente no Brasil. O documento assinado por várias agências da ONU destaca avanços significativos do país, lembrando que ele é referência internacional no combate a esse crime. Mas faz alertas contundentes sobre ameaças ao sistema de combate à escravidão e traz recomendações. ”Nesse cenário de possíveis retrocessos, cabe à ONU lembrar à comunidade brasileira seu lugar de referência no combate ao trabalho escravo para a comunidade internacional.”
”Em 2003, o país atualizou sua legislação criminal, introduzindo um conceito moderno de trabalho escravo alinhado com as manifestações contemporâneas do problema, que envolve não só a restrição de liberdade e a servidão por dívidas, mas também outras violações da dignidade da pessoa humana”, afirma o documento das Nações Unidas. ”Esse conceito, tido pela Organização Internacional do Trabalho como uma referência legislativa para o tema, está em consonância com suas Convenções”, conclui.
O texto alerta sobre os projetos que visam a mudar o conceito: ”Situações em que trabalhadores são submetidos a condições degradantes ou jornadas exaustivas, maculando frontalmente sua dignidade, ficariam impunes caso essa alteração legislativa seja aprovada”.
Cita diretamente o projeto de lei 432/2013 que regulamenta a emenda à Constituição número 81/2014, antiga PEC do Trabalho Escravo – que prevê o confisco de propriedades em que escravos forem encontrados e sua destinação a reforma agrária e ao uso habitacional urbano. Parlamentares ruralistas transformaram o projeto de regulamentação em um ”Cavalo de Tróia” para a mudança no conceito.
O senador Paulo Paim (PT-RS), relator do projeto, propôs incluir uma explicação do que seja ”condições degradantes” e de ”jornada exaustiva” utilizadas, hoje, nas operações de fiscalização a fim de dirimir dúvidas, mas seu relatório foi rejeitado pelos ruralistas.
Fonte: Blog do Sakamoto
Texto: Leonardo Sakamoto
Data original da publicação: 16/10/2017