Get Back to the creative work

Fotografia: Disney

Glaucia Campregher e Isadora Campregher Paiva 

Desde o início dos tempos, o trabalho humano é mais que um processo exclusivamente material que envolve a transformação do que encontramos disponível na natureza em  algo mais adequado ao nosso usufruir. Mesmo quando simplesmente habitávamos cavernas e coletávamos frutos, esse nosso estar no mundo, com os demais seres com quem dividíamos os espaços, já envolvia algum processo imaterial.  Desde então, observar, selecionar, planejar minimamente qualquer atividade, e também criar as representações do que observamos, selecionamos e planejamos, é também um tipo de trabalho, digamos imaterial. Se há esforço, no fazer, também há no que lhe antecede, na intenção de fazer. Se foi possível desenvolvermos ferramentas materiais para nos auxiliar no fazer, também foi produzirmos as ferramentas imateriais fundamentais para nos ajudar no antever. As ferramentas imateriais que criamos são as linguagens, e é importante dizer sobre elas que, além de servirem aos propósitos mais práticos, acabaram por servir também para nos expressar  em dimensões que vão muito além das necessidades da vida prática. Entre as linguagens que criamos estão as línguas mesmo – com todas as suas palavras, sintaxes e gramáticas -, os números e todas as suas derivações matemáticas, os registros contábeis e todas as suas consequências econômicas, e as notações musicais – que serviram para representar talvez o mais inefável de tudo, nossos sentimentos, desejos, felicidades e frustrações.

Mas nem sempre cantar a vida foi respeitado enquanto trabalho… Quem não se lembra da boa e velha fábula da cigarra e da formiga? Mas a verdade é que cigarras e formigas realizam esforço dirigido e planejado, despendem energia, constroem instrumentos e ainda precisam representar em signos todas as fases e detalhes do que fazem, seja para que outros o entendam e o sigam, seja para que o aperfeiçoem. Por que então em determinados momentos determinadas sociedades fazem valer a ideia contrária, de que não há trabalho em criar arte, ou ciência, ou tudo o mais que se pareça com linguagem? Quer nos parecer que isso ocorre se e quando a sobrevivência está ameaçada. Nesses casos, parece haver uma pressão para que façamos qualquer coisa de qualquer jeito. Mas tão logo a luta pela sobrevivência dê uma folga, voltamos a fazer as coisas da melhor forma possível, tanto quanto voltamos a poder meramente nos expressar. Isso significa então valorizar tais atividades. 

O capitalismo é um tipo de sociedade em particular, cuja organização social da produção inclui uma altíssima divisão do trabalho, a mercantilização de todos os produtos e meios de produção – o trabalho entre eles, seja ele material ou imaterial -, e ainda em benefício maior daqueles agentes privados que organizam a produção que, dada a divisão do trabalho, é inexoravelmente, coletiva. Assim é que, no capitalismo, os produtores de linguagem são também vendedores de mercadorias, e vale para eles as mesmas regras que valem para os demais. Assim é que Marx dizia que uma cantora de ópera pode ser submetida ao mesmo tipo de situação que um operário de fábrica. Se ambos não são donos das condições de produção   do que irão oferecer à sociedade (via mercado), devem se submeter àqueles que detêm estes meios e organizam a produção. Mas no capitalismo dos tempos de Marx, por mais que o gramofone já estivesse sendo inventado, algo como uma indústria da música ainda inexistia. A materialização em larga escala de produtos imateriais como o canto e a imagem é coisa do capitalismo dos nossos tempos. E dentro desse tempo um produto em especial funciona como uma super metáfora para entendermos o que há de criativo no trabalho e de trabalho na criação – o rock!

O rock, além de ser, num sentido mais restrito, uma língua dentro de uma língua, e, num sentido mais largo, um fenômeno social envolvendo política, costumes, etc., foi, e ainda é, um produto sofisticado de uma indústria complexa. Significa dizer,  uma indústria que mobiliza uma grande variedade de trabalho imaterial e que precisa materializar (e vender) muitos subprodutos do produto central, a música. Dentro da história do rock, o momento Beatles foi um dos momentos mais fascinantes, onde se pode ver um pouco de tudo isso e ainda algo mais, algo mágico se manifestando quando do encontro único de algumas determinadas pessoas

A minissérie documental Get Back, que chegou até nós no fim de 2021, retrata os bastidores de um período fascinante na história dos Beatles onde podemos ver um pouco do que dizíamos acima. A série se organiza em torno do calendário que mostra os 20 dias do mês de Janeiro de 1969 nos quais a banda se trancou junto com todo um staff num galpão fechado na intenção de realizar um trabalho: escrever e gravar 14 novas canções que deveriam ser apresentadas em um grande show. Além desses dois produtos, o processo inteiro seria gravado e transformado num outro, um documentário que seria transmitido pela TV junto ao show. A banda havia parado de tocar ao vivo três anos antes, e seu processo de criação havia se tornado bastante individual, com cada membro gravando suas porções sozinho, para depois serem combinadas em uma faixa. A ambição do projeto desta vez era então que a banda reaprendesse a tocar – e criar – como um grupo. Na criação de linguagens, o trabalho coletivo parece se impor, como ocorre nas demais produções. Mesmo quando um criador trabalha sozinho, ele precisa de um grupo de referência, ou, como se diz, um meio de efervescência, onde ideias são inspiradas e aparadas. Mas aqui, diferente do que ocorre numa fábrica, as individualidades não podem ser apagadas. Isso significa que se você não precisa gostar do seu colega de linha de montagem, você precisa gostar bastante do seu colega de criação.  No caso em questão, a tensão entre os integrantes da banda vinha crescendo já há algum tempo  e isso fica bem evidente em diversos momentos do documentário. Não à toa, o período de produção de Get Back é considerado pelos biografos o aquele que marca o início do fim da banda, que afinal se separou um ano mais tarde. 

No que diz respeito aos objetivos traçados, os três produtos elencados acima, o projeto retratado no documentário falhou. A banda não conseguiu gravar 14 novas músicas, e após uma temporária saída de George Harrison, a ideia de um grande show a ser transmitido ao vivo pela TV, junto com o documentário, foi cancelada. Ainda assim, as sessões de criação e gravação geraram músicas que acabariam nos álbuns Abbey Road (abril de 1969) e Let It Be (maio de 1970). O projeto produziu mais de 60 horas de filmagem e mais de 150 horas de áudio, que foram inicialmente transformadas em um documentário também intitulado Let It Be (Lindsay-Hogg, 1970). Do ponto de vista do que gostaríamos de dizer aqui, esse projeto foi um sucesso. Ele nos mostra como se dá a produção efetiva de um produto artístico. 

Em primeiro lugar, um objetivo é posto, passa-se a planejar. Há a fase de pré-produção, da produção em si e de pós-produção. Em segundo lugar, organiza-se os grupos de trabalho de cada fase. Na fase da produção mesma, cada trabalhador terá também suas tarefas ou papéis definidos visando o constructo final. A necessidade do envolvimento de um coletivo de pessoas, que por sua vez deve ser organizado, marca todo e qualquer processo produtivo. Em terceiro lugar, o produto em si passará por várias fases – por mais que pareça aqui e ali que ele surja já pronto no momento mesmo que aparece da primeira vez, ele deverá ser burilado. Em suma, como não pensar que se trata de trabalho um processo que, como todo processo de transformação de alguma coisa em outra, envolve: dispêndio de tempo, organização desse tempo, divisão do trabalho/tarefas, antevisão do produto final, ajustes de qualidade, e, por fim, envolvimento de um grande número de pessoas para além dos diretamente envolvidos? E mesmo chegando mais perto daquilo que há de inefável na criação – como no momento em que os minutos de atraso de John vai sendo preenchido magicamente por versos concatenados na voz de Paul -, o que nos parece evidente é que se algo resulta é que uma harmonia se impôs. 

Como dizia Simone Weil, uma fábrica pode parecer uma orquestra, se se olha de cima, a harmonia em ação. Vendo Get Back, fica mais fácil ver na harmonia de cada canção o que houve por trás da fabricação. 

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