Gênero, mercado de trabalho e juventude: como o coronavírus encontra as(os) jovens no País?

Cristina Pereira Vieceli

Na coluna anterior, tratei sobre os impactos do coronavírus sobre as mulheres, indicando diversos aspectos que nos tornam mais vulneráveis aos efeitos da pandemia. Dentre as causas, estão a sobrecarga dos trabalhos domésticos não remunerados, que são ainda mais demandados com o fechamento das escolas, e a maior incidência feminina ao desemprego e ao subemprego. Além disso, as mulheres estão na linha de frente no combate ao coronavírus, sendo a maioria nas ocupações ligadas à área da saúde que presta atendimento direto, como as enfermeiras e auxiliares de enfermagem. Entre os efeitos sociais desse período de pandemia, ocasionados pela maior presença das pessoas em casa, aumento da ansiedade, insegurança, falta de dinheiro, problemas de alcoolismo, estão a maior incidência de violência doméstica e a dependência econômica e de seus companheiros, reforçando a permanência em relações abusivas.

Ainda que os impactos da pandemia afetem todas as mulheres, há desigualdades importantes entre os diferentes grupos populacionais. Uma destas é a geracional: pessoas jovens, tanto homens quanto mulheres, são impactadas fortemente pelas crises econômicas e pelas mudanças tecnológicas. Um dos motivos atribuídos é a maior vulnerabilidade ao desemprego e incidência à informalidade, dado a falta de experiência. As mulheres, novamente pelo sobrepeso dos trabalhos domésticos, são ainda mais afetadas pelos ciclos econômicos, o que leva muitas jovens a deixarem o mercado de trabalho e até mesmo a abandonarem a escola.

Em março de 2020, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou um estudo tratando sobre o futuro do trabalho para a população jovem no mundo sob os impactos da quarta revolução tecnológica1. A pesquisa estima que, em 2019, havia cerca de 429 milhões de pessoas entre 17 a 24 anos no mercado de trabalho mundial e, destas, 68 milhões estavam desempregadas. Dentre as pessoas ocupadas, 23% estava alocada em empregos formais e 77% em informais. Mesmo empregados, 30% da população jovem era pobre ou extremamente pobre. Outra parcela desta população estava fora da força de trabalho, cerca de 735 milhões de jovens, dentre os quais 509 milhões estava estudando e 267 não estava nem estudando nem trabalhando. A elevada incidência da juventude fora da força de trabalho e da escola, os chamados “nem nem”, impacta nas perspectivas de inclusão desta população às atividades monetárias e, por consequência, à autonomia financeira.

Ainda segundo o relatório, em relação à América Latina, há 9,4 milhões de jovens desempregados e 23 milhões que não trabalham, nem estudam, o que representa 21,7% do total da população jovem da região. Os dados relacionados ao gênero explicitam a maior vulnerabilidade das mulheres, haja vista que a taxa das “nem nem” é de 28,9%, o que representa o dobro da masculina, 14,6%.

Outro estudo recente que trata sobre a questão da juventude em países Latino Americanos selecionados, “Millennials en America Latina y Caribe: ¿trabajar o estudiar?”, publicado em 2018, corrobora a pesquisa da OIT2. A análise entrevistou 15 mil jovens na faixa etária de 15 a 24 anos residentes no Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Haiti, México, Paraguai, Peru e Uruguai. Dentre as pessoas entrevistadas, 41% estavam só estudando, 21% só trabalhando, 17% faziam as duas atividades e 21% não realizavam nenhuma das duas. Dentre os países analisados, o Brasil3 foi o terceiro com o maior percentual de jovens “nem nem”, somando 23%, seguido do México (25%) e El Salvador (24%).

Apesar do termo remeter a que esses jovens não estejam fazendo nenhum tipo de trabalho ou estudo, a maior parte realiza atividades não remuneradas: 95% dos entrevistados relatam que realizam atividades domésticas e 64% de cuidados, tarefas que recaem principalmente entre as mulheres. No caso do Brasil, dentre os “nem nem”, 27,3% são mulheres e 17,5% homens. As principais atividades realizadas pelas mulheres estavam ligadas à produção doméstica (79,4%), cuidados com parentes ou filhos (53,2%) e procura de trabalho (31%). Já entre os homens, 60% exerciam atividades ligadas à produção doméstica, 45,2% procuravam trabalho e 17,7% cuidavam de parentes ou crianças.

A falta de oportunidade desses jovens de estarem inseridos no mercado de trabalho ou em atividades educacionais reflete em sua saúde mental. A exemplo disso, os “nem nem”, quando comparados aos jovens que estudam e trabalham, só trabalham ou só estudam, apresentaram maior propensão a desenvolver problemas de depressão, menores habilidades cognitivas e menor autoestima. Quanto mais tempo fora das atividades mercantis e educacionais, maior a dificuldade de serem inseridos no mercado de trabalho e maior a propensão de se engajaram em atividades de risco.

A falta de perspectivas da juventude impacta fortemente na construção da sociedade brasileira, já que esta população está se inserindo no mercado de trabalho e deverá formar boa parte da nossa capacidade produtiva, de inovação, planejamento, etc., além da responsabilidade sobre a população fora da idade ativa. O País ainda passa pelo período de bônus demográfico, em que a População em Idade Ativa (PIA), entre 15 e 65 anos, é superior à Razão de Dependência (RD), representada pela relação entre os grupos etários de 0-14 anos + 65 anos e mais/(15-64) * 100. De acordo com estudo realizado pelo IHU4, baseado nos dados do World Population Prospects 2019, o bônus demográfico brasileiro teve seu ponto de inflexão em 2019, quando a taxa de crescimento chegou ao ponto máximo. Este bônus deverá terminar em 2034, quando a razão de dependência irá ultrapassar a PIA.

Apesar de estarmos em um período importante para investimento em educação e incentivos a empregos de qualidade, haja vista o bônus demográfico, a situação do mercado de trabalho brasileiro é bastante preocupante, com a permanência do desemprego acima de 10% desde 2016. Os dados relativos à população jovem são ainda mais alarmantes. No quarto trimestre de 2019, a taxa de desemprego entre a população de 14–17 anos permaneceu em 39,2% e a taxa entre a de 18-24 anos fechou em 23,8% (Gráfico 1). As diferenças entre a taxa de desemprego do total da população e do grupo de 14-17 anos permaneceu em 28,2 pontos percentuais, e entre o total e o grupo de 18–24 anos, em 12,8 pontos percentuais.

Gráfico 1 – Variação da taxa de desemprego total e por grupos de idade, Brasil, primeiro trimestre de 2012 ao quarto trimestre de 2019

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Fonte: Elaboração da autora com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD – C) elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Além disso, a variação da taxa de desemprego da juventude é bem mais acentuada do que a total em períodos de crises no mercado de trabalho. A exemplo disso, no primeiro trimestre de 2017, quando a taxa de desemprego total atingiu seu maior nível, 13,7%, a taxa entre os jovens de 14 a 17 anos saltou para 45,2%, uma diferença de 31,5 p.p. em relação à taxa total. Já entre aqueles com 18 a 24, a taxa se elevou para 28,7%, o que representa uma diferença de 15 p.p..
Podemos prever, por consequência, maiores impactos da pandemia sobre a população jovem. O cenário se agrava quando analisamos os dados por gênero. A taxa de desemprego das mulheres entre 14 e 24 anos, no quarto trimestre de 2019 permaneceu em 30,73%, o que representou 8,79 pontos percentuais (p.p) a mais do que para os homens, cuja taxa permaneceu em 21,94% (Gráfico 2).

Gráfico 2 – Taxa de desemprego dos jovens entre 14 e 24 anos por sexo, Brasil, quarto trimestre 2019

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Fonte: Elaboração da autora com base nos Microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD – C) elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Além da questão de gênero, é importante notar as diferenças raciais na inserção das jovens no mercado de trabalho. Enquanto a taxa de desemprego entre as brancas permaneceu em 25,67%, ou seja, 5,06 p.p a menos do que a taxa total das mulheres, dentre as pretas, o desemprego permaneceu em 37,93%, o que representa 7,2 p.p. acima da taxa total e 12,2 p.p acima das mulheres brancas. Entre as pardas, o desemprego permaneceu em 33,65%, o que representa 2,92 p.p. acima da média total das mulheres e 7,98 p.p. acima das brancas (Gráfico 3). 

Gráfico 3 – Taxa de desemprego entre as jovens (14–24 anos), Brasil, quarto trimestre de 2019

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Fonte: Elaboração da autora com base nos Microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD – C) elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

O investimento em educação e o acesso a empregos de qualidade para a juventude deve ser uma das prioridades de uma agenda de Estado, assegurando maior tranquilidade para as próximas gerações. Essa agenda perpassa também a garantia de acesso aos serviços voltados para os cuidados de pessoas, à saúde reprodutiva e planejamento familiar, haja vista que a questão do desemprego das jovens mulheres, somada a não presença na escola, está ligada principalmente aos trabalhos domésticos e de cuidados. Essa situação tende a se agravar em períodos de crise e, nesta em particular, que soma a pressão do desemprego com a maior incidência de trabalhos domésticos. 

Notas

1 Agradeço a revisão, sugestões e considerações de Júlia Giles Wünsch
2 Disponível em: https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_737648/lang–en/index.htm
3 Disponível em: https://publications.iadb.org/es/millennials-en-america-latina-y-el-caribe-trabajar-o-estudiar
4 A pesquisa brasileira foi realizada no município de Recife (PE).
5 http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590359-o-bonus-demografico-no-brasil-e-no-mundo-segundo-as-novas-projecoes-da-onu

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutoranda em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica licenciada do Dieese, bolsista do CNPQ, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.

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