Na ampla cobertura que a greve teve na imprensa, as montanhas de lixo que tomaram conta na cidade eram apontadas como focos de problemas de saúde. De fato, as doenças relacionadas ao lixo formam uma extensa lista, que inclui cisticercose, cólera, disenteria, febre tifoide, filariose, giardíase, leishmaniose, leptospirose, entre muitas outras. Mas o reconhecimento de quem cuida do lixo como um trabalhador importante para a saúde não é tão óbvia para a maioria das pessoas.
O professor-pesquisador daEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Alexandre Pessoa defende que a discussão dos garis deve ser mais ampla, e que este é o momento de reconhecê-los como trabalhadores da saúde ambiental. “O gari é um trabalhador de limpeza urbana. O manejo dos resíduos sólidos, que é a sua função, é um dos componentes do saneamento básico, junto ao sistema de esgotamento sanitário, abastecimento de água, controle de vetores e pragas, e o manejo das águas pluviais. O fato de o resíduo sólido ser considerado parte do saneamento básico já mostra a importância desses trabalhadores na infraestrutura sanitária das cidades”, explica o professor, que completa: “Cuidar dos esgotos e resíduos é cuidar das veias das cidades, e se elas são interrompidas, assim como no corpo humano, entram em colapso”.
Entre as atribuições destes trabalhadores estão a coleta de lixo, varrição de rua, limpeza de bueiros, podas de árvore, além de, em alguns casos, limpeza e higienização de hospitais municipais. “Ao colocarmos o saneamento como um binômio indissociável da saúde, fica evidente a necessidade da promoção dos espaços saudáveis e promotores de saúde, que levam diretamente à ação do trabalhador de limpeza urbana. O que eles fazem é uma ação preventiva, eminentemente de saúde ambiental”, diz Alexandre, ressaltando a importância ‘invisível’ desse trabalho: “Quando falamos de recolhimentos sólidos, estamos falando de proteção ambiental, ou seja, um trabalho voltado para que não haja contaminação das coleções hídricas, do solo e das moradias. Além disso, esse trabalho resulta no controle de vetores e pragas, no controle das inundações, de um processo de salubridade na habitação e no território como um todo”.
Educadores ambientais
Assim como os agentes comunitários de saúde e os agentes de controle de endemias, ogari também é um trabalhador que tem o território – local onde trabalha – como referência fundamental para o seu trabalho cotidiano. E, como lembra Alexandre, a questão do território é fundamental para as práticas de promoção da saúde. Por isso, ele defende que o gari tem grande potencial para se transformar em um educador ambiental. “Infelizmente essa articulação se dá somente em momentos de crise, em momentos de epidemia, de enchentes, enfim, de colapso. A integração dessas ações, considerando os garis como educadores de saúde ambiental, deveria se dar em momentos de normalidade, o que poderia se traduzir até em redução de recursos nessas políticas”, explica.
Alexandre descreve qual seria esse papel de educador: “Primeiro, o próprio objeto de trabalho dos garis já requer, na prática, informações fundamentais sobre o manejo dos resíduos sólidos que a maioria da população não tem. O segundo componente é a territorialização, já que eles são reconhecidos e identificados nos lugares de trabalho, o que permitiria uma maior integração com a comunidade para apontar o melhor manejo dos resíduos, o que se traduziria em uma redução do seu próprio esforço de trabalho”, explica, e ressalta: “Mas, para isso, é necessário uma qualificação mais efetiva e continuada destes trabalhadores”.
O professor ressalta a importância dessa integração também como forma de mudar a abordagem do debate sobre o lixo que, segundo ele, hoje ainda é culpabilizadora e comportamentalista, com pouca efetividade. “Estudos vêm apontando que a abordagem não está dando conta nem da conscientização nem de ações concretas. Mas isso pode se dar por meio de uma educação ambiental territorializada. E ai é que entram os garis“, explica.
Invisibilidade
“O que brota da percepção de não aparecer para os outros é a sensação de existirmos como coisa, um esvaziamento. Passamos a contar como se fôssemos um item paisagístico. Um poste, uma árvore, uma placa de sinalização de trânsito, um orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na atmosfera social: todos parecem valer a mesma coisa”.
A passagem é do livro”Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social“, de Fernando Braga, que, para escrever sua tese de mestrado, que deu origem à publicação, ficou nove anos trabalhando como gari na cidade universitária da Universidade de São Paulo (USP).
Em entrevista ao Portal da EPSJV/Fiocruz, Fernando explica que essa profissão faz parte dos resquícios deixados pela escravidão, assim como as empregadas domésticas. “A invisibilidade pública não é de agora, antes havia os escravos, as mulheres. Mas muitas coisas daquele tempo foram imutáveis. A invisibilidade pública é um desaparecimento psicossocial, não se trata de um fenômeno ótico, mas poderia ser considerado muito mais um problema de cegueira daqueles que não veem do que do desaparecimento daqueles que não são vistos. Os garis são invisíveis? Claro que não. Nós, a classe burguesa, é que somos cegos”, explica.
Para Alexandre Pessoa, a questão da invisibilidade desses trabalhadores e a falta de valorização precisam ser postos em pauta. “Há uma discriminação que vai além do preconceito de classe, uma carga negativa e depreciativa de serem trabalhadores que mexem com o que queremos esconder ou afastar”, informa Alexandre.
Fernando detalha: “Estamos inseridos na sociedade de acordo com os grupos de que participamos, uma inserção microssocial como esportiva, bairro, preferência sexual. E sempre nos referimos à inserção profissional. A quantidade de tempo que passamos no trabalho e na manutenção da vida material faz com que a nossa identidade seja confundida com a profissional. É como se houvesse o desaparecimento do homo sapies para o homo faber. Somos o que fabricamos, o que produzimos como profissional, esse é o sujeito social da sociedade capitalista. E gari trabalha com o lixo, com o que não serve para a gente”.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos, com ajustes
Texto: Viviane Tavares
Data original da publicação: 17/03/2014