Quem chega à fazenda Córrego das Almas, em Piumhi, no interior de Minas Gerais, imagina que está diante de uma propriedade modelo. “Não é permitido trabalho escravo ou forçado”, diz uma placa, das várias que ostentam certificações internacionais – entre elas, uma ligada à norte-americana Starbucks. Nas plantações de café, porém, trabalhadores rurais eram expostos a condições degradantes de trabalho, viviam em alojamentos precários, sem rede de esgoto e água potável. Na semana passada, em operação no local, auditores-fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 18 trabalhadores rurais em situação análoga à escravidão.
A fazenda, conhecida na região como Fartura, tinha o selo UTZ, o maior do café, que foi suspenso após a certificadora ser questionada pela Repórter Brasil sobre o flagrante. A propriedade rural possui também a certificação C.A.F.E. Practices, selo da Starbucks em parceria com SCS Global Services. As duas empresas informaram à reportagem que vão rever o certificado de qualidade da fazenda. As certificadoras verificam cadeias produtivas e têm entre seus objetivos garantir compras éticas, com boas práticas trabalhistas.
Mas a realidade na fazenda era bem diferente do anunciado pelos selos de qualidade. “A gente não recebia por feriado, domingo, nada. E trabalhava de segunda a sábado, sem marcação de horas. Durante a semana, entrava às 6h e só parava às 17h”, afirma um dos trabalhadores resgatados. “Tinha muito morcego e rato. A gente comprava comida e os ratos comiam. Aí, tinha que comprar de novo”, diz outra ex-trabalhadora da fazenda.
O grupo vivia em moradias coletivas, sem água potável. Os auditores entenderam que a rede de saneamento era tão precária que colocava em risco a saúde dos trabalhadores. Segundo o relato do grupo resgatado, era comum encontrar morcegos mortos nas caixas d´água, que não tinham tampa. Eles chegaram acozinhar e beber água contaminada pelos animais.
Além disso, trabalhadores denunciam que a contagem da colheita para a remuneração era fraudada. “A gente colhia e eles deixavam para pesar no outro dia. Quando chegava lá, cadê o café? E aí tinha a humilhação: a gente ia reclamar e eles riam da nossa cara”, afirma um dos resgatados. “Eu sempre colhi café e nunca passei por isso na vida. Não deu nem para mandar dinheiro para casa”, complementa o outro.
Também foi relatado que, para descontar o cheque que recebiam com o pagamento ou para comprar alimentos, os trabalhadores tinham que pagar R$ 20 de um “ônibus clandestino”, nas palavras de um deles, para ir até a cidade mais próxima da fazenda. “Para receber o pagamento, a gente já tinha que pagar. Perdia dinheiro”.
A UTZ confirmou que a auditoria da fazenda foi realizada em fevereiro deste ano e o certificado emitido em abril. Após o questionamento da Repórter Brasil, o órgão decidiu suspender a certificação até que consiga investigar a situação da unidade. “Os direitos e bem-estar dos trabalhadores são da maior importância e são parte integrante do nosso padrão. Levamos muito a sério as questões levantadas, pois violariam o padrão UTZ. Sempre que recebemos evidências confiáveis sobre violações em fazendas certificadas pela UTZ, tomamos medidas imediatas, o que inclui a realização de uma investigação profunda”, informou a entidade em nota.
A Starbucks afirmou que a fazenda Fartura é certificada desde 2016, mas negou a compra de cafés da unidade. A empresa ressaltou que está iniciando um processo de investigação para a possível revisão do selo. “Nós já estamos investigando esse assunto e continuaremos a prestar muita atenção às notificações do Ministério do Trabalho e Emprego. Nenhuma fazenda da lista do trabalho escravo pode fornecer café para a Starbucks”, informou a nota.
A SCS, parceira da Starbucks no selo C.A.F.E, informou que são realizadas inspeções e auditorias antes da certificação e que, na época em que o processo foi realizado na Fartura, não havia indícios de trabalho escravo: “O trabalho forçado é considerado um indicador de tolerância zero, portanto as fazendas com trabalho forçado não seriam elegíveis para o status no programa”.
Além desses dois selos, um painel na Fartura sugere ainda que ela possui verificação pela Associação 4C, da Coffee Assurance Services, órgão mundial. Mas a entidade informou que a fazenda está em processo de análise, “a decisão final de licenciamento ainda não foi emitida”.
O flagrante de trabalho escravo na fazenda evidencia falhas nos processos de certificação do café. “Não é a primeira, a segunda e não vai ser a última vez que uma fazenda certificada é denunciada na prática de trabalho escravo e violação de direitos trabalhistas”, afirma Jorge Ferreira dos Santos, coordenador da Articulação dos Empregadores Rurais de Minas Gerais (Adere-MG), que acompanhou as fiscalizações. Para ele, o sistema de certificações é frágil, pouco transparente e atende a fins econômicos, sem “levar em consideração a visão e a realidade dos trabalhadores”.
A fazenda Fartura, que tem cerca de 3 milhões de pés de café, também produz soja, feijão e gado, e possui 151 funcionários, segundo informações dos autos de infração. A propriedade é arrendada e administrada por Fabiana Soares Ferreira que informou, por meio de nota enviada por sua advogada, Amanda Costa, que recebeu a fiscalização “com espanto”, já que o trabalho escravo não é a “filosofia de trabalho” da empresa. “Nossa fazenda atua no mercado de café há muitos anos e sempre procurou cumprir todas as exigências legais, inclusive para obter todas as certificações, licenças e premiações que são extremamente exigentes”, informou a nota.
Jornadas de 14 horas
Também em Minas Gerais, na cidade de Muzambinho, outros 15 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados na semana passada de uma fazenda de propriedade de Maria Júlia Pereira, cunhada do deputado estadual de Minas Gerais Emidinho Madeira (PSB). O pai do deputado, Emídio Madeira, tem duas fazendas que estão na lista suja do trabalho escravo divulgada em abril deste ano. Apesar de ser de propriedade de Maria Júlia, a fazenda Córrego da Prata era arrendada por Elias Rodrigo de Almeida, autuado na operação.
Entre os trabalhadores resgatados, havia um adolescente de 17 anos. Eles relataram que eram obrigados a comprar o próprio maquinário utilizado, contraindo dívidas de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil antes mesmo de começarem a colheita. O grupo ainda relatou à Repórter Brasil que durante os 90 dias de trabalho não tiveram uma única folga. Só deixavam de colher café nos dias de chuva, trabalhando “das 6h às 20h”, conforme contou um deles. “E se parasse, o patrão ainda ficava bravo”, complementou outro resgatado. “Era desgastante”.
Apesar de não ter sido autuada, os trabalhadores afirmam que era Maria Júlia quem fazia os pagamentos. Por meio de nota enviada pelo advogado Thiago de Lima Dini, ela informou que adquiriu a fazenda no final de 2016 e que em dezembro do mesmo ano a arrendou a Almeida, “desconhecendo quaisquer procedimentos e ocorrências naquela propriedade”. O advogado, que também representa Almeida, afirmou ainda que ele “terceirizou a contratação dos trabalhadores” e que é “uma vítima, assim como os demais trabalhadores”.
A Fazenda Córrego da Prata recebeu 34 autos de infração e pagou R$ 87 mil de acerto aos trabalhadores. Para a Fazenda Fartura foram entregues 27 autos de infração com pagamento de R$ 71 mil pelos acertos rescisórios.
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Daniela Penha
Data original da publicação: 03/08/2018