Silvia Federici (Parma, Itália, 1942), autora do livro Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva, aponta os crescentes ataques contra a reprodução da vida, o aumento brutal da exploração e a expropriação da terra, da água e do tempo. Ela fala sobre o fascismo econômico que se esconde no confronto entre blocos políticos e sobre a importância da alegria na luta feminista
A entrevista é de Verónica Gago, publicada originalmente pela revista mexicana Ojalá e reproduzida por Ctxt, 03-04-2023. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Nos últimos anos assistimos a um período de mobilização, protesto e expansão exponencial dos feminismos. Como podemos ler esse “crescimento político”? É essa a expressão que melhor descreve o que está acontecendo? Em relação a quais eixos e problemas podemos pensar essa efervescência?
Bom, penso que quando falamos de crescimento político não falamos do movimento feminista em geral. Esse crescimento não é algo visível em todos os lugares. O que aconteceu e está acontecendo na América Latina é especialmente importante. Penso que o impacto das políticas do feminismo popular – o que chamamos de feminismo popular – é tão forte que teve impacto também em outros movimentos em outros lugares, como na Europa, por exemplo.
Houve um crescimento de consciência que se reflete nos discursos e estratégias que os movimentos tentam alcançar. São desafios que não podem ser alcançados a menos que vivamos um processo verdadeiramente amplo de mudança social. Um dos primeiros elementos é o anticapitalismo, que esteve em segundo plano durante boa parte da história do movimento feminista. Mas, hoje, o anticapitalismo está cada vez mais em primeiro plano. Muitas das lutas que vimos nos últimos anos foram dirigidas diretamente ao mundo empresarial, particularmente as lutas contra a privatização da terra e contra a expulsão de milhões de pessoas de seus territórios.
A imposição de programas de ajuste estrutural criou austeridade e empobrecimento em massa, bem como devastação ecológica. O movimento feminista assumiu algumas das questões fundamentais que qualquer movimento deve enfrentar para criar outro tipo de sociedade, incluindo o grande problema dos cercamentos capitalistas da vida.
Hoje o feminismo não se limita apenas a mudanças nas condições das mulheres. As feministas têm algo a dizer sobre absolutamente tudo, sobre todos os aspectos da vida. Vimos perspectivas feministas sobre a dívida, sobre a ecologia, sobre o sistema de justiça – o sistema de injustiça – nos Estados Unidos.
Vimos a formação de um movimento feminista abolicionista que lutou contra o encarceramento e pela retirada do financiamento da polícia (defund the police). Além disso, o feminismo dá cada vez mais importância à luta contra a colonialidade, contra o sistema, e ao papel das feministas negras e das feministas anticoloniais.
Tenho pensado na combinação entre massificação e radicalidade como uma característica deste ciclo de feminismo. Como podemos pensar em ciclos e ritmos diferentes, em momentos em que a massividade não é tão forte? Não sei se não deveríamos falar de momentos de retaguarda ativa ou se não deveríamos pensar numa outra geometria de movimentos e forças. Também gosto de pensar nas diferentes formas do massivo que nem sempre são públicas.
Acredito que há pelo menos três tarefas interligadas que um movimento feminista deve enfrentar hoje, e quero falar sobre cada uma delas.
A primeira consiste em estabelecer uma visão de para onde estamos indo, que tipo de sociedade queremos construir. Obviamente, nosso imaginário coletivo ainda é muito limitado por todo o capitalismo que internalizamos e pelo tipo de sociedade em que vivemos. É preciso experimentar.
Em segundo lugar, há a importância de construir estratégias. Uma vez que temos uma ideia, em seguida se coloca a questão da estratégia. Uma estratégia implica entender e construir debates, pesquisas e outras formas de entender para onde o capitalismo está indo. O que o capital está planejamento? Qual é o ponto mais fraco do capitalismo? Qual é o terreno mais crucial para unificar o movimento, onde possamos superar a forma como fomos divididas?
E terceiro: de quais ferramentas precisamos? De projetos de mídia, filmes ou documentários… Como construímos essa rede? Como construímos um terreno comum? Os momentos em que o movimento não está nas ruas ou não enfrenta diretamente o Estado e o capital são momentos de construção. Esta é uma questão estratégica fundamental. A luta não pode ser apenas de oposição; tem que ser propositiva e construtiva. Essa positividade, essa construção, é o campo da experimentação.
Pode falar um pouco mais sobre essa experimentação?
Nossas atividades reprodutivas nos permitem reproduzir a luta naqueles momentos em que não estamos presentes nas ruas de forma massiva. O fazer comum é uma condição para a reprodução de uma luta. Na verdade, é uma forma de medir nosso sucesso, de medir nosso poder feminista. Até que ponto podemos deslocar nossa atividade reprodutiva da reprodução da força de trabalho para a reprodução do nosso poder de luta? De certa forma, essa é a medida do quanto estamos conseguindo em nosso crescimento. Penso que, nesses momentos em que não há tanta mobilização nas ruas, há muito trabalho invisível. O trabalho de construir conexões e fortalecer as relações afetivas entre as pessoas.
Como você caracteriza a rejeição ao feminismo neste momento de neoliberalismo extremo? E quais são as diferenças entre hoje e as represálias às lutas feministas dos anos 1970?
Existem diferenças importantes. Evidentemente, há também semelhanças, mas talvez a principal diferença seja que, na década de 1970, tínhamos que lutar não apenas contra a direita, mas também contra a esquerda. Demorou muito até que os homens da esquerda começassem a mostrar um pingo de respeito ou a admitir que poderiam ter algo a aprender com o movimento feminista. Algumas das primeiras respostas [de nossos companheiros de luta] foram escandalosas. Na década de 1960, as mulheres eram passíveis de receberem assobios, e a resposta foi muitas vezes muito hostil. Isso mudou.
Hoje, a resposta da direita é quase mais violenta porque houve um longuíssimo processo da direita neste país, os Estados Unidos. Houve um processo de fascistização muito complicado. Penso que o movimento feminista precisa olhar para esse processo com muito mais cuidado do que temos feito até agora.
Em que sentido você usa fascistização?
Há uma espécie de concepção congelada do que é a direita. Produzimos esquemas tomados do período fascista, do período nazista, etc., onde há uma ala de direita e depois há uma ala de centro. Hoje isso é muito mais complicado e as duas alas estão muito mais entrelaçadas do que pode parecer. Houve uma fascistização da economia. A fascistização é uma estratégia e uma política que dá cada vez mais poder ao capital. Reduz o investimento na reprodução e nos espaços de poder da classe trabalhadora e cria novas divisões e mais profundas entre as pessoas em torno das linhas de classe e raça.
A ideia de dois blocos, o centro (ou esquerda) e a direita, dos democratas e republicanos, por assim dizer, pode ser muito enganosa. Em todos os países está ocorrendo uma fascistização geral e devemos vê-la como algo que é contínua e inseparavelmente produzido pelas políticas econômicas.
Essa ideia de fascistização das economias lança luz sobre as violências cotidianas. Ao mesmo tempo, você fala em militância alegre, mas isso não significa que as condições para se organizar sejam fáceis.
A militância alegre é outra forma de dizer que a revolução é agora. Chega dessa ideia da revolução que acontecerá no futuro, para que um dia os filhos dos meus filhos vivam melhor. Não. A revolução é agora. Nós temos uma vida. Cada dia é precioso. Não podemos pensar na revolução no futuro. Se lutamos é porque a vida que temos é insuportável e dolorosa. A luta não pode aumentar nossa dor. Tem que melhorar a nossa vida.
Temos que descobrir o que significa fazer algo positivo. A primeira coisa que quer dizer é sair do isolamento. Lutar significa conectar-se com outras pessoas, não ter que enfrentar sozinha o sistema, a dor e o sofrimento em sua vida. Significa sentir que você tem alguma proteção. Existe a ideia de gerar uma nova afetividade emocional que vai além da asfixia e da solidão do núcleo familiar. Adquirir novos conhecimentos, adquirir novos amantes, não apenas no sentido sexual, mas em pessoas de quem você gosta e que lhe dão força. Isso se torna um tecido que permite se conectar com outras pessoas. Essa é a revolução, e se você não tem isso, não faz sentido lutar.
Acredito que podemos dizer que uma das principais questões do movimento é a questão do trabalho, e principalmente do trabalho reprodutivo, que foi possível pela prática coletiva da greve feminista. Você mencionou a recente greve das enfermeiras em Nova York e sua vitória! Um debate também está surgindo em torno da palavra ‘cuidado’. Pode nos explicar um pouco mais o que isso significa? O que pensa sobre a questão do trabalho no movimento feminista?
A luta das enfermeiras tem sido emblemática. É uma luta especialmente importante porque é uma luta que se dá sobre o terreno da reprodução, que tradicionalmente tem sido visto pelo movimento revolucionário como um terreno no qual não é possível construir o poder anticapitalista. Esta luta tem encontrado grandes obstáculos devido à chantagem que se tem feito contra as enfermeiras, que é também a chantagem contra todas as mulheres que trabalham no lar. A chantagem consiste na ideia de que, se você parar de fazer o seu trabalho, vai prejudicar as pessoas mais próximas ou vai prejudicar os seus dependentes. Esta tem sido uma ferramenta muito poderosa para acabar com a luta das mulheres em casa e das enfermeiras nos hospitais.
E as enfermeiras conseguiram romper com isso, recusaram-se a ser chantageadas. Elas pararam de trabalhar e exigiram melhores condições de trabalho. Ao aumentar as horas de trabalho e reduzir a remuneração, os empregadores criaram uma situação em que toda a força de trabalho está esgotada e com maior probabilidade de não poder prestar os serviços necessários. Desmistificar isso faz parte do trabalho que estamos tentando fazer na campanha ‘Salários para o Trabalho Doméstico’. O trabalho que as mulheres fazem beneficia sobretudo os empregadores. Recusar-se a fazer esse trabalho e rejeitar as condições que nos são impostas é uma forma de limitar a reprodução das pessoas como trabalhadores exploráveis.
Quero acrescentar que a luta das enfermeiras não é a única luta. A nível internacional assistimos há anos, especialmente na Espanha, à construção do movimento das trabalhadoras domésticas, das trabalhadoras do lar. É um movimento internacional altamente organizado. Muitas delas são imigrantes e lutam em condições especialmente precárias. Aquelas que vivem com uma família (trabalhando como internas), cuja liberdade é muito limitada, experimentam uma exploração sem fim.
Mesmo assim, seus movimentos estão se expandindo e conseguiram mudanças nas leis internacionais, como a famosa Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, que basicamente diz que as trabalhadoras domésticas têm direito aos mesmos benefícios de qualquer outro trabalhador, como jornada regular de trabalho com direito a aposentadoria, férias e assim por diante. Esta é a mão de obra de mulheres que estão sendo exploradas e que, ao mesmo tempo, conseguiram construir um movimento e transformar sua exploração em poder.
Precisamos ainda de uma melhor análise da genealogia do conceito de trabalho de cuidados. É um conceito que nunca usamos na década de 1970. Muitas organizações de trabalhadoras domésticas o usaram para mostrar que o trabalho que realizam – especialmente com crianças – não é apenas trabalho físico, mas que tem implicações mais amplas. Há um debate aqui.
Uma das contribuições mais importantes nos Estados Unidos é a da feminista negra Premilla Nadasen, que escreveu uma crítica ao conceito de trabalho de cuidados. Ela argumenta que o uso do termo trabalho de cuidados em relação ao trabalho das empregadas domésticas minimiza os direitos trabalhistas das mulheres. Existe uma visão de que deveriam ter direitos e não ser tão exploradas porque fazem um trabalho de cuidados e não porque são trabalhadoras e têm direitos trabalhistas. E isso coloca um novo fardo sobre as mulheres trabalhadoras. Não basta que essas mulheres façam o trabalho, mas também se espera que trabalhem com uma disposição emocional particular.
Nadasen argumenta que esse é um uso indevido do conceito de cuidado e que precisamos ter cuidado ao usar esse termo. Ela fez muitos trabalhos sobre a história das trabalhadoras domésticas nos Estados Unidos, especialmente trabalhadoras domésticas negras. Falar delas como cuidadoras significa que são mulheres que só serão reconhecidas porque estão apegadas emocionalmente às pessoas para quem trabalham.
Penso que no mundo pós-Covid-19, a crise das mulheres que fazem trabalho reprodutivo, tanto doméstico como em instituições – como as enfermeiras que arriscam suas vidas no trabalho –, tornou-se mais visível. Agora, muitas delas entram em greve porque estão indignadas com o que viram e como foram tratadas, e como as pessoas foram tratadas nos hospitais.
Outro tema central é a questão da justiça e da justiça reprodutiva. É importante abordar a questão da reação negativa ao feminismo e como se relaciona com a ideia do punitivismo. Como as reivindicações do movimento feminista por justiça podem evitar contribuir para a disseminação de “soluções” baseadas na punição?
A questão da justiça reprodutiva é muito, muito importante. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte derrubou o precedente legal Roe v. Wade, mas este é o último ato de um processo muito longo que tem muitos elementos, muitos episódios e muitas etapas: o assassinato de médicos que fazem abortos, a introdução de Estado após Estado de leis que restringem o direito ao aborto… Mesmo antes da intervenção da Suprema Corte, em muitos lugares o aborto já era inexistente. Foi criado um movimento que tem perseguido as mulheres que buscam abortar, com pessoas que vão às portas das clínicas gritando: “assassinato! assassinato! assassinato!”.
A questão do aborto na história do capitalismo está ligada à questão da reprodução da força de trabalho. O Estado atribui a si o direito de controlar o processo de procriação, a fim de obrigar as mulheres a se reproduzirem e garantirem um número adequado de trabalhadores. Nos últimos anos, também vimos outro aspecto disso. Hoje temos uma classe capitalista internacional que tem à sua disposição muito mais trabalhadores do que, por exemplo, no século XVI, porque muitíssimos foram expulsos de suas terras, desencadeando movimentos migratórios em massa.
Hoje há uma força de trabalho muito maior. E assim vemos também outra função do aborto e do controle estatal da procriação dos corpos das mulheres, do comportamento das mulheres, que tem a ver com a questão da dissidência sexual. Negar o aborto implica disciplinar os corpos e a sexualidade das mulheres. É um poder que é dado aos homens. Os homens se tornam policiais dos corpos das mulheres.
Por outro lado, não podemos lutar efetivamente pelo aborto se não lutarmos também pelo direito das mulheres de ter filhos. Nos Estados Unidos, vimos que a negação da maternidade tem sido tão poderosa quanto a negação do aborto, especialmente para as mulheres negras, a quem, desde a escravidão até hoje, se negou a maternidade. Hoje, para uma mulher negra, principalmente uma mulher negra pobre, engravidar é um risco. Ela corre o risco de ser presa, encarcerada e perseguida. Criou-se um sistema de vigilância que liga hospitais, médicos e enfermeiras à polícia, de modo que se algo parecer fora do normal durante o procedimento médico a que uma mulher grávida passa, ela corre o risco de ser criminalizada.
Muitos Estados legislaram algo conhecido como leis de proteção fetal. Alguns chegaram ao extremo de dizer que a partir do momento em que você está grávida, pode deduzir a gravidez de seus impostos. É muito importante evitar cair na posição de algumas mulheres na década de 1970, quando as feministas declararam precipitadamente que o direito ao aborto era fundamental para o direito de decidir. Precisamos decidir no âmbito da reprodução. Decidir significa poder ter filhos e poder não tê-los. O verdadeiro controle de nossos corpos é a possibilidade de fazer as duas coisas.
Sobre a questão do punitivismo, penso que este é outro problema fundamental do movimento das mulheres. Durante a primeira fase do feminismo nos Estados Unidos, a resposta à violência contra as mulheres foi exigir penas mais severas [para os agressores]. Está ficando cada vez mais claro que penalidades severas sempre são aplicadas contra pessoas que já são vulneráveis: negros, imigrantes e pessoas já superexpostas ao encarceramento e à brutalidade policial.
Afastar-se do punitivismo é um grande avanço impulsionado pelas mulheres negras, que vivenciaram em primeira mão o efeito das políticas punitivas em suas comunidades. As mulheres negras sempre entenderam o que a polícia faz e o que faz o suposto sistema de justiça. Agora essa consciência está se expandindo, graças a esse trabalho das feministas negras. Agora temos um movimento feminista abolicionista, que luta para abolir cadeias e prisões e acabar com a polícia. Parece-me que a próxima tarefa é construir alternativas, construir formas de justiça baseadas na comunidade.
Fonte: IHU
Texto: Verónica Gago
Tradução: Cepat
Data original da publicação: 05/04/2023