Abolida apenas no papel, a escravidão tem novas faces no Brasil e se dá por meio de jornadas exaustivas, condições degradantes e restrições à locomoção de trabalhadores em razão de dívidas.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência, só no ano de 2021, cerca de 1.940 pessoas foram resgatadas em situação de escravidão contemporânea, em que 90% eram homens e 80% se declararam negros ou pardos.
Ao programa Entrevista Central, a Procuradora do Trabalho e Coordenadora Nacional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), Lys Sobral Cardoso, explica que a pandemia intensificou o quadro escravocrata contemporâneo e fala sobre os avanços e falhas do Estado na fiscalização e combate a essa realidade.
“A pandemia piorou as condições da população de modo geral e aumentou o grau de vulnerabilidade socioeconômica das pessoas, fator que foi determinante para a permanência das formas de escravidão contemporânea do nosso país. O Estado precisa investir mais no atendimento a essas pessoas resgatadas”, avalia Sobral
Com uma estrutura de fiscalização e combate reduzida em cerca de 50%, Sobral cobra a ampliação da rede de atendimento, a fim de qualificar o trabalho e garantir a assistência necessária às vítimas de trabalho escravo e o fim do ciclo de exploração.
“O que a gente já tem identificado hoje é a necessidade de ampliação da rede de atendimento a essas pessoas, para prestar um atendimento social, socioeconômico via assistência social, mas não só. Também é preciso garantir formas de trabalho e garantia de renda, para que essa pessoa possa quebrar o ciclo de exploração”, cobra Sobral.
Confira a entrevista completa.
Na semana passada, foi realizada uma operação de trabalhadores em condições análogas à escravidão. Só em Minas Gerais, mais de 270 pessoas foram resgatadas. Como as estatísticas de resgate vêm se desenhando nos últimos anos?
Em 2021, nós tivemos o maior número de pessoas resgatadas desde 2013. Embora ainda não tenhamos realizado uma análise qualitativa sobre esse fenômeno, a nossa suspeita é que a pandemia, a crise sanitária da Covid-19 piorou as condições da população de modo geral, aumentou o grau de vulnerabilidade social das pessoas, e isso é determinante, é uma das causas centrais de escravidão contemporânea no nosso país.
Em quais condições esses trabalhadores são resgatados?
O código penal define o que é trabalho análogo à escravidão. Antes, já gostaria de fazer uma consideração sobre o porquê de falar em “trabalho análogo à escravidão”. A lei chama assim para diferenciar de quando a escravidão era legalmente permitida no país, mas o fenômeno em si é trabalho escravo. O código penal define o trabalho análogo à escravidão em quatro modalidades, que são: trabalho forçado, servidão por dívidas, jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho.
Na prática, o que temos visto é a ausência de alojamentos ou alojamentos em condições que não atendem o mínimo que a lei prevê; ausência de fornecimento de água e alimentação minimamente saudáveis, falta de equipamentos para trabalhar; ausência de concessão e remuneração dos descansos que a lei prevê. A fiscalização sempre considera um conjunto de irregularidades que são analisadas caso a caso.
Outras variantes também são avaliadas, como o tempo de prestação de serviços, que é um dos fatores que pode influenciar. A própria Covid-19, quando um grupo de trabalhadores está sujeito à exposição ao vírus, quando uma pessoa não é devidamente isolada ou não há controle das medidas sanitárias, no conjunto isso pode levar à caracterização de trabalho escravo.
Qual tipo de atividade econômica tem sido responsável por colocar os trabalhadores em condições análogas à escravidão?
Em 2021, a atividade econômica onde mais se encontrou pessoas sujeitas à escravidão foi a colheita de café, mas fazendo um resgate histórico, são muitas atividades e setores econômicos, como o beneficiamento de soja, de milho, castanha, casas de farinha, carvoarias, madeireiras, fazendas de gado, são algumas das atividades onde encontramos trabalho escravo.
Além disso, destaca-se o trabalho doméstico, que está no radar de fiscalização, porque o número de denúncias tem aumentado.
Qual o perfil social e econômico dos trabalhadores resgatados?
Existem alguns estudos já feitos sobre o perfil das pessoas que acabam sendo exploradas em formas contemporâneas de escravidão. São pessoas que já passaram por alguma situação de trabalho infantil, em grande maioria composta por homens e ligados a alguma atividade rural. Em 2021, 89% das pessoas resgatadas foram oriundas do meio rural e esse é o perfil predominante do que aconteceu de 1995 para cá. Destaco 1995 porque foi o ano em que foi criado o Grupo Nacional de Fiscalização Móvel.
E após o resgate, por meio das operações, de que maneira esses trabalhadores são reparados judicialmente?
Esse é, inclusive, um dos grandes desafios que o estado brasileiro tem para 2022 e para os próximos anos, porque a política pública de atendimento às vítimas de trabalho escravo no Brasil consiste, basicamente, na concessão de seguro-desemprego. Então, independente do tempo de trabalho daquela pessoa, ela tem direito a três parcelas do seguro-desemprego, além da garantia das indenizações, como danos materiais e morais que aquela pessoa sofreu pela exploração.
Mas a indenização muitas vezes depende da construção probatória, é um processo judicial ou extrajudicial via termos de ajustamento de conduta, então existem algumas nuances que, de repente, podem prejudicar a garantia desse direito. O que a gente já tem identificado hoje é a necessidade de ampliação da rede de atendimento a essas pessoas, para prestar um atendimento social, socioeconômico via assistência social, mas não só.
Também é preciso garantir formas de trabalho e garantia de renda para que essa pessoa possa quebrar o ciclo de exploração, além de atendimento médico, psicológico, enfim, toda a rede precisa se articular cada vez mais para garantir um atendimento às vítimas mais satisfatório pelo estado brasileiro.
O que define a lei sobre a pena para os exploradores e o que na prática ocorre?
Existem duas formas de responsabilização dos empregadores que exploram trabalho escravo no Brasil. Existe a responsabilização criminal, onde o Ministério Público do Trabalho não atua, mas nós temos conhecimento porque acompanhamos a rede de combate. O código prevê uma pena, mas infelizmente no Brasil existem poucos casos de condenação criminal pelo crime de trabalho escravo.
Existe também a responsabilização civil trabalhista, onde entra o Ministério Público do Trabalho. Ela consiste basicamente em obter uma reparação coletiva por aquela violação de direitos humanos, que chamamos de dano coletivo, além da reparação de cada um dos trabalhadores e trabalhadoras submetidos, e também da condenação para que aquele trabalhador não venha a adotar novamente essa prática.
A chamada lista suja, que inclui o nome dos empregadores envolvidos por esse crime e já ficou suspensa por três anos, tem sido devidamente usada?
A lista suja, ou cadastro de empregadores que já exploraram trabalho escravo, é um instrumento de transparência. A lista em si não prevê punições, mas é um instrumento de transparência que está disponível para toda a sociedade.
Algumas outras leis preveem restrições para quem explora trabalho escravo no Brasil, como a concessão de créditos bancários. No meio empresarial, referente às relações empresariais que se constituem, sabemos que a lista suja é usada para controle de transações comerciais, de forma que quem explora trabalho escravo não é bem visto no mercado como um todo.
Identificar os casos de trabalho escravo contemporâneo exige fiscalização. Como tem sido o apoio e a estrutura para essas fiscalizações no Brasil hoje?
Com relação à fiscalização, é necessário, no mínimo, manter a estrutura que temos hoje, que consiste nos grupos móveis. O Grupo Nacional Móvel é interinstitucional, coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, vinculado ao Ministério do Trabalho. Essa é a principal estrutura de combate que temos hoje.
Alguns estados também têm grupos regionais de combate, onde todos eles possuem basicamente a mesma estrutura: coordenados pela auditoria fiscal do trabalho, com a participação do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, as forças policiais como a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e outras estruturas de polícia como a Polícia Militar, que também participa de algumas ações.
Mas é muito importante destacar que temos um problema central na política brasileira de combate, porque a auditoria fiscal está com um quadro extremamente reduzido, a redução já chega a aproximadamente 50%. O Ministério Público do Trabalho, na qualidade de fiscal da lei, tem insistido na solução desse problema e na realização de concurso público para auditores fiscais do trabalho junto à Conatrae, que é a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. No plano, consta que a estrutura de combate não pode ser reduzida.
Como a população pode denunciar casos de trabalho escravo contemporâneo?
A população precisa denunciar. Os órgãos de fiscalização precisam das denúncias, embora haja também fiscalizações baseadas em rotinas e na inteligência estratégica. Hoje temos alguns canais de fácil acesso para denúncias. Os principais são o Disque 100 e o Disque 180, em casos de violência contra a mulher, que podem acontecer no trabalho.
Não precisa haver uma confirmação, basta que a pessoa suspeite que está acontecendo algo errado. O Ministério Público do Trabalho também tem alguns canais de denúncias. Temos o aplicativo Pardal, os sites das Procuradorias, onde é possível inclusive anexar documentos, fotografias, áudios e vídeos. A auditoria fiscal do trabalho também tem um instrumento importante de recebimento de denúncias que é o Sistema IPÊ.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Afonso Bezerra e Mariana Castro
Data original da publicação: 07/02/2022