A compreensão difundida de que no Brasil há expressiva arrecadação fiscal e baixo retorno em serviços públicos é duplamente falsa e não encontra elementos factuais que a justifiquem, a não ser a partir de análises simplórias, discursos vulgares e preconceituosos.
Róber Iturriet Avila
Fonte: IJF
Data original da publicação: 15/04/2021
É recorrente a argumentação de que os serviços públicos não são condizentes com a arrecadação tributária no Brasil. Essa percepção parte de uma noção de que a receita é elevada e os serviços públicos são precários. Mesmo entre estudiosos e professores, esse ideário é reproduzido diuturnamente. Entretanto, essa impressão não resiste a uma análise acurada.
Em 2020, a renda per capita mensal no Brasil foi de R$ 2.931,00. Uma carga tributária de 33%, representa R$ 967,23 mensais per capita de arrecadação nos três níveis de governo. Deste valor, aproximadamente, R$ 304,83 mensais são destinados para dois dos principais serviços públicos: saúde e educação. A exata verificação destes valores é relevante para observarmos que esses não são tão expressivos o quanto se imagina. Basta pensarmos quanto custam esses serviços no setor privado. Adicionalmente, é sempre bom ter uma referência de que a renda per capita no Brasil não é elevada, além de mal distribuída, o que já descarta de início a comparação indevida com países mais desenvolvidos.
Na comparação internacional, o Brasil está mal colocado, sobretudo quando se observam os indicadores de educação, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), prova efetuada principalmente em países desenvolvidos. Uma análise vulgar poderia sugerir que a Suíça, que gasta 5% do seu PIB em educação, tem um retorno melhor do que o Brasil, que gasta 6,3% do PIB neste serviço. A renda per capita mensal da Suíça, é, entretanto, US$ 6.832,81 mensais. Isso não diz apenas que a arrecadação é muito superior, mas que o país dispõe de maior nível de desenvolvimento, e, portanto, de melhor qualificação dos profissionais e melhores condições para que os estudantes se dediquem integralmente à aprendizagem, sem trabalho infantil, e, provavelmente, maior acesso a sistemas de aprendizagem mais tecnológicos.
Uma comparação mais adequada seria com um país com nível de desenvolvimento semelhante. Mas mesmo nessa situação, não são levadas em conta as heterogeneidades históricas na formação socioeconômica de cada país. Até a década de 1950, não houve grande alteração social dos ex-escravos e seus descendentes brasileiros. As primeiras medidas de inclusão começaram na década de 1940. A taxa de analfabetismo em 1950 era de impressionantes 50,6%. Na década de 1960, o Brasil investia pouco mais de 2% do PIB em educação. Então, é claro que o resultado presente é cumulativo, tem relação com a história, com a desigualdade, com a formação, com o nível técnico, nível de desenvolvimento, com a escolarização dos pais, etc. O atraso é secular.
Recentemente, houve uma ampliação significativa dos gastos em educação em percentual do PIB. Em 2004, era 4,5% e atualmente está em 6,3%. Causa espanto ver especialistas e pessoas influentes no debate público imaginarem que a ampliação do gasto não teve efeito. Não apenas por não se basearem na quantificação efetiva, mas por não considerarem que o retorno em educação é lento, pois é uma política de longo prazo. De toda sorte, a escolaridade média no Brasil vem aumentando significativamente, as taxas de analfabetismo continuam caindo, embora haja um atraso pregresso, que ainda vai demorar algumas décadas para obtermos compensação suficiente.
O caso da saúde pública é análogo. O Sistema Único de Saúde ampliou de maneira bastante significativa o acesso. Terapia de câncer, hemodiálise, vacinação, consultas gerais, partos, internação e transplantes são efetuados majoritariamente pelo SUS. Durante a implantação e consolidação do SUS (1988-2010), houve um aumento de 224% da despesa em saúde em termos reais, além da inflação. Como podemos observar os resultados? A partir de indicadores como causas de mortes, expectativa de vida, mortes evitáveis, mortalidade infantil, etc. A mortalidade infantil era de 135,0 ‰ em 1950. Em 1991, passou a 45,2‰. Em 2019, caiu para 11,9 ‰. Ou seja, o SUS e outras melhorias técnicas proporcionaram uma redução de 73,67% da mortalidade infantil no Brasil. A expectativa de vida do brasileiro subiu 10 anos, em média, desde a implantação do SUS. Dessa maneira, os resultados objetivos dos indicadores são expressivos.
Então, de um lado, o recurso que entra nos cofres públicos para as principais despesas é escasso, ao contrário do que se imagina no debate vulgar, já que tem por base uma renda per capita relativamente baixa, de um país relativamente pobre e secularmente atrasado. Os custos de serviços de educação e de saúde são elevados, porque, ou envolvem um longo período de formação, ou equipamentos, procedimentos e profissionais custosos. De outro lado, os resultados nos indicadores objetivos ao longo do tempo são expressivos. Não apenas das principais variáveis acima elencadas, mas também dos indicadores sintéticos que expressam melhor esses indicadores, como o Índice de Desenvolvimento Humano, que variou consideravelmente entre 1991 e 2010, ano do último censo.
É claro que a busca pela eficiência do gasto público deve ser uma agenda permanente em qualquer sociedade e sempre é possível obter resultados melhores com gastos menores, seja no serviço público, seja no setor privado. Não resta dúvida de que o serviço público pode melhorar e solucionar problemas crônicos, muitos deles, aliás, em transformação há algum tempo, vale dizer, a qualificação do servidor público brasileiro melhorou consideravelmente e algumas reformas corrigiram distorções. Contudo, a compreensão difundida de que no Brasil há expressiva arrecadação fiscal e baixo retorno em serviços públicos é duplamente falsa e não encontra elementos factuais que a justifiquem, a não ser a partir de análises simplórias, discursos vulgares e preconceituosos. Há muito o que avançar em termos de indicadores sociais no Brasil, e melhoria geral, isso é válido para tudo. Mas o caminho que temos em termos de qualificação do debate público e difusão de conhecimento da própria realidade brasileira consegue ser um desafio ainda maior.
Róber Iturriet Avila é professor de Economia da UFRGS e diretor do Instituto Justiça Fiscal.