Fábrica da emancipação

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Do terremoto indígena do início dos anos 1990 aos assentamentos e acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), observamos um enriquecimento do repertório dos movimentos anti-sistémicos do Sul Global.

Luis Martínez Andrade

Fonte: Jacobin Brasil
Data original da publicação: 13/06/2023

Há pelo menos uma década, o tema da emancipação vem ganhando espaço no mundo de língua francesa nas ciências sociais. Colóquios (Penser l’émancipation em Lausanne em 2012, Bruxelas em 2016 e Paris em 2017), livros coletivos e trabalhos consideráveis, como de Pierre Dardot, Christian Laval e Hector Mendez contribuíram muito para o debate sobre o assunto.

O trabalho escrito em conjunto pelos sociólogos Jean-Louis Laville e Bruno Frère não apenas segue essa linha de pesquisa e ação, mas também visa renovar a teoria crítica.

Nas linhas a seguir, mencionaremos alguns pontos que consideramos importantes para o desenvolvimento do pensamento contra-hegemônico.

Fetichismo e messianismo artístico

No primeiro capítulo, os autores assumem como base as análises de Max Horkheimer e Theodor Adorno acerca da dominação, do processo de reificação impulsionado pela razão instrumental e do controle sobre a natureza exercido pela modernidade capitalista.

Seguindo as reflexões de Karl Marx, Georg Lukács e Herbert Marcuse, principalmente, os autores reconhecem o peso do fetichismo na consolidação da sociedade de consumo por meio da publicidade e da espetacularização. Sem fugir do eurocentrismo recalcitrante de Adorno, Laville e Frère examinam sua proposta de messianismo artístico.

Em seguida, os autores abordam a sociologia da dominação desenvolvida por Pierre Bourdieu por meio das noções de processo de desapropriação, habitus, senso comum e ordem social. Enquanto os filósofos alemães encontram na figura do artista o tema da emancipação, o autor de La Distinction o faz na figura do sociólogo crítico. É verdade que a contribuição desses pensadores foi importante para ir além do economicismo vulgar, mas eles ignoraram as revoluções democráticas, os movimentos sociais e as ações coletivas e, nesse sentido, dizem Laville e Frère, eles perderam o controle da mudança social.

Laville e Frère, portanto, nos convidam a superar o paradigma do desenraizamento por meio do estudo sério das práticas cotidianas de luta. A propósito, esse convite já havia sido delineado por um deles em um trabalho anterior.

Experiência de exterioridade

No segundo capítulo, Laville e Frère retomam o trabalho de Jürgen Habermas e Axel Honneth para defender o papel da filosofia social na análise das patologias da modernidade. Do sociólogo alemão, Frère e Laville destacam a pertinência da tensão insuperável entre democracia e capitalismo. Com base nas noções de mundo da vida, espaço público, intersubjetividade comunicacional, racionalidade comunicativa, Habermas funda uma segunda Escola de Frankfurt. Além disso, Laville e Frère discutem a virada habermarsiana da década de 1990, expressa no foco do filósofo alemão nos novos movimentos sociais.

No que diz respeito ao autor de Luta por reconhecimento, Laville e Frère mencionam que a noção de empatia é fundamental para a elaboração de sua filosofia hegeliana da eticidade. Aqui, a ideia de impureza é fundamental, pois evita o risco de cair na armadilha do empirismo sócio-biológico promovido pela colapsologia atualmente em voga em alguns círculos militantes.

Embora Habermas e Honneth reconheçam a reflexividade dos atores, eles infelizmente não apontam para os espaços concretos de emancipação e, portanto, permanecem presos ao paradigma da negação. De nossa parte, estamos convencidos de que a ideia de Dussel de experiência de exterioridade é ainda mais radical do que a empatia honnethiana, pois, por um lado, ela insiste nas condições materiais da corporeidade sofredora da vítima e, por outro lado, enfatiza o papel da práxis dos sujeitos.

Sociologia da dominação

O terceiro capítulo, enfoca-se a capacidade transformadora dos seres humanos. Para isso, os autores examinam a relevância do trabalho de Bruno Latour, falecido recentemente. De fato, o criador da teoria ator-rede (ANT) sugere que o ator (tanto humano quanto não humano) é fundamental para a produção ativa da sociedade e, nesse sentido, considera importante superar a dicotomia dimensão social-dimensão cognitiva.

É verdade que, em seu Face à Gaïa (2015), observamos uma mudança na perspectiva do filósofo e antropólogo francês em relação à possibilidade de politização da natureza, mas esse movimento é feito por meio da despolitização dos seres humanos. Nesse sentido, Laville e Frère não estão errados quando escrevem que: para Latour, os seres não humanos são a prioridade, enquanto para Habermas e Honneth são os seres humanos que são a prioridade.

Para sair desse falso debate, seria benéfico reintegrar a perspectiva da sociologia da dominação. Assim, a análise de antagonismos, na qual Horkheimer e Adorno tanto insistiram em seu projeto da teoria crítica, continua sendo crucial para revelar as relações de força inscritas na dinâmica social.

Imaginário indígena e camponês nas lutas sociais

Embora no quarto capítulo proponha, ao examinar a sociologia de Luc Boltanski, uma espécie de complementaridade com a perspectiva latouriana, parece-nos que aqui os autores dão um passo adiante na inflexão da teoria crítica contemporânea. Para os autores, o projeto crítico de Boltanski pode ser completado pelas epistemologias do Sul.

Diante da monocultura do conhecimento e da ilusão da ideologia do progresso, a força das epistemologias do Sul, em particular as contribuições da inflexão modernidade e colonialidade, não apenas abre novas brechas na crítica da dinâmica necrófila da modernidade, mas também aponta para novos horizontes civilizacionais. A esse respeito, os autores nos dizem que os estudos decoloniais sugerem estender a análise marxista das dimensões econômicas e políticas do colonialismo para o da análise da colonialidade em suas dimensões cognitivas e simbólicas.

Ao reabilitar as contribuições de Enrique Dussel, Walter Mignolo e Aníbal Quijano, os autores não apenas reconhecem a injustiça epistêmica do eurocentrismo, mas também enfatizam a heterogeneidade histórico-cultural de diversas sociedades e povos. Não é por acaso que a figura de José Carlos Mariátegui é evocada para refletir sobre o peso do imaginário indígena e camponês nas lutas sociais.

Laville e Frère listam seis pontos fundamentais para a reformulação da teoria crítica: 1) o reconhecimento da ambivalência de qualquer tentativa de emancipação; 2) o afastamento da tendência agonística da teoria ocidental que ignora as práticas comuns; 3) a reabilitação do associativismo; 4) a distinção entre instituição e instituído expressa no processo de institucionalização; 5) a aceitação da diversidade do mundo e, portanto, a preferência pela impureza; e 6) a complementaridade dos conhecimentos em que as traduções culturais são cruciais.

Ambivalências e os riscos da autogestão

No quinto capítulo, os autores insistem na necessidade de observar empiricamente a invenção institucional e, portanto, avaliar a capacidade de transformação dos atores dentro das estruturas institucionais. Para isso, os autores evocam as experiências de lutas sociais (a da empresa Lip na França, o caso de Los Indignados na Espanha, as creches populares ou crèches sauvages, as zonas a defender- ZAD), enquanto revelam as ambivalências e os riscos da prática autogestionária.

Com base na perspectiva de Nancy Fraser (as demandas dos contrapúblicos subalternos) e de Jürgen Habermas (espaços públicos plurais), os autores propõem a noção de espaços públicos de proximidade para enfatizar o caráter praxeológico do associativismo, este último entendido como um conjunto de projetos colocados em prática por cidadãos livres e iguais que apelam para um bem comum.

Não é preciso dizer que as referências ao movimento neozapatista no sudeste do México, ao movimento sem-terra brasileiro e à Via Campesina são caracterizadas como experiências associativistas que representam um universal concreto diametralmente oposto ao universalismo abstrato da modernidade capitalista. A esse respeito, eles escrevem que o que se percebe no confronto entre o neoliberalismo e o zapatismo não é o choque entre universalismo e particularismo, mas precisamente a oposição entre um universalismo abstrato e um universalismo concreto acessível por meio da existência de um pluridiverso.

Além disso, vale a pena mencionar que os autores endossam a relevância da pesquisa participativa (recherches participatives) para vincular a produção de conhecimento e os processos democráticos e, ao contrário de muitos intelectuais eurocêntricos, Laville e Frère reabilitam as contribuições de Paulo Freire e Orlando Fals Borda.

De fato, pioneiros na virada decolonial, Paulo Freire e Orlando Fals Borda deixaram como legado uma obra de grande importância.

Feminismos contra-hegemônicos

No seguinte capítulo, os autores discutem o que está em jogo na postura do pesquisador. Aqui, Laville et Frère não apenas reiteram a importância de valorizar as experiências, mas também insistem em evitar o espectro da pureza. Aderindo a algumas ideias delineadas na Dialética do Esclarecimento, por exemplo, em que se referem à cegueira e burrice dos dados aos quais o positivismo reduz o mundo, Laville e Frère identificam na sociologia de Gérald Bronner, Étienne Géhin e Nathalie Heinich o atavismo de corte axiológico entre fatos e valores.

Ao refletir sobre a interação entre o observado e o observador, os autores notam três maneiras pelas quais esse corte é expresso: 1) no tempo, ou seja, no peso que o eurocentrismo tem tanto no campo da gnoseologia quanto no terreno ideológico; 2) no espaço, ou seja, na “divisão internacional do trabalho epistêmico”; e 3) na relação entre sujeito e objeto. Sobre esse último ponto, é difícil não pensar nas contribuições de Santiago Castro-Gómez sobre a “hybris de ponto zero” do eurocentrismo.

Nesse sentido, Laville e Frère defendem os saberes situados dos feminismos contra-hegemônicos e, evidentemente, as epistemologias do Sul. Depois de analisar as posições de Frédéric Lordon (vanguardismo), Geoffroy de Lagasnerie (desconfiança das instituições) e John Holloway (negatividade) sobre a emancipação, os autores sugerem o uso da noção de interstício para refletir sobre as ambivalências associativas e, consequentemente, identificar o hibridismo de qualquer situação social.

Para eles, uma sociologia do associativismo, iniciada pelo Centre de recherche et d’information sur la démocratie et l’autonomie-CRIDA, implica em evitar cair na armadilha de reduzir a instituição ao instituído e praticar uma hermenêutica intercultural crítica.

Alternativas desde o Sul Global

Por fim, no ultimo capítulo, os autores usam o caso da economia solidária para mostrar a diferença entre a teoria crítica tradicional e a nova teoria crítica. Esta última está interessada na originalidade das práticas pré-figurativas dos atores. Em oposição às análises pós-bourdieusianas que enfocam apenas a reprodução da dominação, Laville e Frère abordam os processos emergentes de contestação por meio de iniciativas cidadãs. Entre os casos mencionados está o da ONG feminista brasileira Sempreviva Organização Feminista-SOF, que fortalece a auto-organização das mulheres e aponta para as implicações sociopolíticas da agroecologia.

Entretanto, sem negar as contradições da institucionalização da economia solidária no Brasil, os autores também registram o papel de alguns acadêmicos na promoção dessas iniciativas populares. Talvez, diante das análises pós-bourdieusianas, o legado de Paulo Freire tenha funcionado como um antídoto no trabalho dos universitários brasileiros que combinam o trabalho intelectual com o processo de conscientização.

Sem dúvida, A Fábrica da emancipação é uma obra essencial para repensar a crítica da modernidade capitalista, mas também para ponderar, em sua dimensão própria, as práticas coletivas e associativas que prefiguram a possibilidade de uma sociedade menos opressiva. Longe de assumir uma posição paternalista (muito comum entre os acadêmicos europeus, aliás), Jean-Louis Laville e Bruno Frère levam a sério o diálogo com os pensadores latino-americanos e nos oferecem algumas vias de reflexão que não podemos nos dar ao luxo de ignorar. O convite para entrar em uma nova era de investigação não pode nos deixar indiferentes, pois a luta sociopolítica também envolve uma batalha epistêmica.

Luis Martínez Andrade é sociólogo e pesquisador na Université Catholique de Louvain.

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