Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade
Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 17/12/2018
Hoje, caro leitor, vamos cuidar de um tema que ocupou insistentemente os noticiários nas últimas semanas: a extinção do Ministério do Trabalho. Será isto bom? Será útil? Será indiferente? Será pérfido? Vamos descobrir. Ou, ao menos, vamos refletir.
Antes, porém, de lançar um olhar sobre o presente, vamos compreender o passado, ainda que em breves pinceladas. Como, aliás, sempre fazemos por aqui.
O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi criado em 26 de novembro de 1930, no primeiro governo de Getúlio Vargas, com estrutura detalhada pelo Decreto 19.433/30. Durante os seus oitenta e oito anos de existência, passou por várias alterações estruturais, fundindo-se a outros ministérios ou secretarias e deles se separando, com acréscimos e diminuições de competências. O quadro abaixo ilustra bem as alterações sofridas durante sua longa existência:
- Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 26 de novembro de 1930;
- Ministério do Trabalho e Previdência Social, em 22 de julho de 1960;
- Ministério do Trabalho, em 1º de maio de 1974;
- Ministério do Trabalho e da Previdência Social, em 11 de janeiro de 1990;
- Ministério do Trabalho e da Administração Federal, em 13 de maio de 1992;
- Ministério do Trabalho e Emprego, em 1º de janeiro de 1999;
- Ministério do Trabalho e Previdência Social, em 2 de outubro de 2015; e
- Ministério do Trabalho, em 12 de maio de 2016.
Bem se vê, entretanto, que, em nenhum momento histórico – nem mesmo nos lapsos de intervenção autoritária, como no Estado Novo ou no pós-1964 –, o Ministério do Trabalho perdeu a sua centralidade, o “status” de ministério ou, mais importante, a condição de órgão federal responsável por gerir e organizar as relações entre capital e trabalho. Ao contrário, a pasta sempre foi o principal elemento de referência para as políticas sociais do Estado brasileiro, agregando-se-lhe outros órgãos, segundo a conveniência política e organizacional dos períodos respectivos. Na perspectiva jurídico-sistêmica, jamais o valor “trabalho” foi politicamente secundarizado, ou menos ainda omitido. Isso é tanto mais importante no tempo presente, quando sob a égide de uma Constituição que há trinta anos prevê, no seu primeiro artigo, como um dos fundamentos da República Federativa do Trabalho – imediatamente abaixo da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III – eixo semântico da atual “Lex legum”) e ao lado da livre iniciativa (art. 1º, IV, 2ª parte – fundamento primeiro do modo capitalista de produção) -, exatamente o valor social do trabalho.
O protagonismo político e jurídico do Ministério do Trabalho reflete a importância dada ao órgão por todos os governos anteriores e, bem assim, a sua indubitável pertinência com os objetivos constitucionais do Estado brasileiro. Atualmente, a competência do Ministério do Trabalho encontra-se detalhada na Lei n. 13.502, de 1º de novembro de 2017, constituindo área sua exclusiva competência:
- política e diretrizes para a geração de emprego e renda e de apoio ao trabalhador;
- política e diretrizes para a modernização das relações do trabalho;
- fiscalização do trabalho, inclusive do trabalho portuário, bem como aplicação das sanções previstas em normas legais ou coletivas;
- política salarial;
- formação e desenvolvimento profissional;
- segurança e saúde no trabalho;
- política de imigração laboral; e
- cooperativismo e associativismo urbanos.
Ora bem, o desmantelamento da sua estrutura administrativa evidentemente compromete tais atribuições, retirando-lhe, ademais, qualquer organicidade convergente, o que sinaliza perda de eficiência. Não por outra razão, cogita-se já da própria inconstitucionalidade da supressão do Ministério do Trabalho, com base no princípio constitucional da eficiência da Administração Pública (veja-se, por todos, o bem lançado Parecer n. 00592/2018/CONJUR-MTB/CGU/AGU). Mas, ainda que assim não seja – e que não se entreveja inconstitucionalidade na extinção da pasta -, é certo que, neste caso, não bastará ao novo Presidente da República lançar mão de um decreto presidencial. Deverá se valer de uma lei em sentido formal, ou ao menos de uma medida provisória, para rever os termos da Lei n. 13.502/2017. E, para isto, terá de ter o beneplácito do Congresso Nacional.
Vale dizer que, sob o comando do Ministério do Trabalho, o Brasil modernizou e equilibrou as relações de trabalho em sua transição de uma economia eminentemente agrícola para a industrial, possibilitando o desenvolvimento econômico conjugado com estratégias de proteção física e mental dos trabalhadores. Nos últimos trinta anos, essas políticas passam a se engendrar em consonância com os princípios e diretrizes da Constituição de 1988, notadamente em seu artigo 3°, a saber, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades e a promoção do bem geral, sem discriminações. Também houve, é claro, distorções de várias ordens e largos ensejos de corrupção, especialmente no setor de registros sindicais; e a benfazeja liberdade de imprensa proporcionou-nos a plenitude dessas coberturas, especialmente em derredor da chamada “Operação Registro Espúrio”. Nem por isso, há que necessariamente esfacelar o Ministério e distribuir os despojos esquartejados entre os Ministérios da Economia (para onde seguiriam os ativos do FGTS e do FAT, perfazendo quase um trilhão de reais), da Justiça (onde ficariam os registros sindicais e a fiscalização) e da Cidadania (onde remanesceriam as demais funções); ou, na evolução mais recente (recentíssima), “apenas” entre os Ministérios da Economia e da Justiça, deixando a fiscalização do trabalho com o hoje Deputado Rogério Marinho, protagonista da Reforma Trabalhista. Há que ter, na República, para além de pessoas incorruptíveis, instituições incorruptíveis. Porque as pessoas passam, mas as instituições ficam.
Pois bem. A despeito de todo o dito até aqui, parece definitivo, pelo que se pode ler nos recentes noticiários, que em 2019 todos nós, brasileiros, pela primeira vez em quase noventa anos, acordaremos sem o Ministério do Trabalho.
Como vimos acima, durante mais de oito décadas, a pasta trabalhista passou por sete modificações de denominação e por diversos arcos de atribuições. A partir da importância reconhecida à atividade produtiva, outras matérias acessórias foram sendo agregadas ao seu catálogo funcional. O ano de 2018 aparece, entretanto, como um ponto fora da curva: decide-se, subitamente, que o protagonista precisa ser rebaixado, ou simplesmente excluído do elenco. Desde a campanha eleitoral, foram muitos vais-e-vens de promessas sobre limitações no número de ministérios, falando-se de 15, 20 e “vinte e poucos”. Em paralelo, também se cogitou da criação de novos órgãos, como o Ministério da Família e a Secretária de Desestatização. As constantes incertezas, concessões e recuos no programa de encolhimento demonstravam que talvez nem tudo fosse vontade de economizar, afinal. Mas essa é outra discussão.
Naquilo que importa, basta dizer – como já dito acima – que a concentração de atividades análogas sob os cuidados de uma mesma pasta perfaz um óbvio imperativo da eficiência. Não por acaso, por exemplo, as políticas de seguro-desemprego, lançando mão das verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador, têm sido tão bem combinadas com os esforços de resgate de trabalhadores reduzidos à condição análoga a de escravos (a ponto de se constituir como uma das finalidades autônomas do Programa Nacional de Seguro-Desemprego: “prover assistência financeira temporária ao trabalhador […] comprovadamente resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo”, nos termos do art. 2º, I, da Lei n. 7.998/1990, com a redação da Lei n. 10.608/2002). Da mesma maneira, a colaboração entre instituições públicas e privadas atuantes na fiscalização do trabalho, sempre concatenada com organizações sindicais, é atribuição que demanda autoridade especializada em temas trabalhistas. Qual a expertise do Ministério da Justiça para obter convergência entre sindicatos e auditores fiscais do trabalho, em paralelo com suas importantes e intrínsecas atribuições? É uma pergunta que ficará no ar. O Ministro da Justiça já terá diante de si um desafio gigantesco com os objetivos autoatribuídos no campo do combate à criminalidade organizada e ao branqueamento de capitais; bem poderia ser poupado do intrincado universo de objetos que compõem o raio de ação da fiscalização do trabalho, hoje sob os cuidados da Secretaria de Inspeção do Trabalho, e que vão desde os focos de trabalho infantil e escravidão contemporânea até as fraudes trabalhistas e as questões de saúde e segurança do trabalho, apenas para ficar nos eixos mais momentosos.
Há, outrossim, o aspecto da convencionalidade e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Se a cada novo governo a fiscalização do trabalho puder ser trasladada de pasta a pasta – talvez, no futuro, para a pasta da Indústria e Comércio? -, a bem de “dosar o tom” das auditorias, a independência dos fiscais resta completamente comprometida. Muda-se o “cabresto” administrativo, conforme se queira uma fiscalização mais ou menos aguerrida. Nada mais contraditório com a ideia-motriz da regra constitucional inserta no art. 21, XXIV, da Constituição, quando comete à União a tarefa de organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (para fazer valer, não para “inglês ver”). Nada mais atentatório, ademais, à regra constante do art. 6º da Convenção n. 81 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 1957, segundo a qual “[o] pessoal da inspeção será composto de funcionários públicos sujo estatuto e condições de serviços lhes assegurem a estabilidade nos seus empregos e os tornem independentes de qualquer mudança de governo ou de qualquer influência externa indevida”. Insistir nessa vereda é caminhar para mais uma reprimenda internacional junto à Comissão de Normas Internacionais da OIT.
Sem a devida fiscalização, o processamento e o sancionamento relativo ao cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias, estimula-se a sonegação de direitos sociais e, por decorrência, a concorrência desleal. Daí porque a anunciada eliminação do Ministério do Trabalho – e a conseguinte fragilização das suas funções -, ao combalir a lealdade concorrencial, prejudica a grande maioria de empresários honestos, que contrata, paga e demite de acordo com a lei.
A rigor, até mesmo a evidente escolha ideológica pela promoção de políticas de Estado ancoradas no liberalismo abstencionista compatibiliza-se com a existência de um Ministério do Trabalho. Com efeito, vários países de forte tradição ou amplitude liberal mantêm pujantes Departamentos e/ou Ministérios do Trabalho, como ocorre com os Estados Unidos da América, o Reino Unido, a Austrália e a Nova Zelândia.
São enormes, de resto, as responsabilidades e desafios de um Ministério do Trabalho para o próximo quadriênio. Ao lado do combate ao trabalho escravo, infantil, acidentes e baixa instrução, a parte “moderna” do Brasil também projeta demandas importantíssimas. O início do século XXI é de incomparável aceleração tecnológica. Convivemos com a chamada “indústria 4.0”, com a crescente automação produtiva, com a universalização do trabalho pela via das plataformas digitais – na realidade totalizante da chamada gig economy – e com a contínua deslocalização e fragmentação produtiva, própria da chamada acumulação flexível. São novos paradigmas que, em poucos anos, migraram da ficção científica para um cotidiano ainda carente de regulação e segurança. Ninguém ainda tem muita certeza para onde vamos, nem tampouco se a viagem será agradável ou se todos alcançarão o mesmo destino. Mas há, sim, a certeza da impossibilidade de condução segura da nave, se não se construir, em torno dessas novas facetas do mundo do trabalho, uma cadeia de políticas sérias, consistentes, centralizadas e autorreferenciadas.
Para ficarmos apenas com as urgências nacionais, no final de 2017, o país passou pela maior alteração de regulação trabalhista dos últimos setenta anos. Apesar das incertezas em torno do futuro, já há sinais importantes. Seguem altas as taxas de desemprego, a subutilização e a informalidade, assim como a expansão de trabalho autônomo mal pago e de uma nova série de contratos altamente precarizados (terceirizados, intermitentes e a tempo parcial, por exemplo). Nesse novo cenário, a necessidade de um Ministério do Trabalho forte e empoderado seria certamente ainda mais premente do que nas décadas anteriores. Sem um órgão de nível ministerial para análise desse novo mundo do trabalho – e do seu novo marco regulatório -, será muito mais difícil esperar tranquilidade, segurança jurídica e bons (?) resultados.
Ainda há tempo para se rever a decisão tomada. Tempo para a sabedoria. Porque para decisões sábias, parafraseando o escritor A. Douglas Willians, não se exige sequer instrução. Basta ter vivido a vida.
Guilherme Guimarães Feliciano é Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Livre-Docente em Direito do Trabalho e Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), gestão 2017-2019. E-mail: diluvius@icloud.com.
Rodrigo Trindade é Juiz do Trabalho na 4ª Região (Rio Grande do Sul). Professor Universitário. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná e especialista em Derecho Laboral pela Universidad De La Republica (Uruguay). Ex-Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região – AMATRA IV.