“Vi gente perder a vida de fome, de sede. É uma vida completamente desumana. Quando eu lembro do que passei, passo mal.” Há um ano, o jovem costa-marfinense Mohamed Bamba, 24 anos, achava que todo o sacrifício para chegar à Europa valeria a pena no final. Ele não contava que, no meio do caminho, seria comercializado como escravo na Líbia, a exemplo de milhares de outros negros pegos na armadilha dos traficantes de seres humanos.
Bamba deixou Daloa, na Costa do Marfim, em busca de uma vida melhor na Europa. Mas em pleno deserto nigeriano, ele descobriu que a conta para fazer a travessia tinha subido 150 mil francos CFA (873 reais) – dinheiro que o jovem não possuía.
“Como eu não tinha como pagar, fui vendido para uma pessoa. Essa pessoa me comprou e fiquei em dívida com ela”, relata, em depoimento à RFI. “Eles não me davam comida e o que eu ganhava eu tinha que dar para eles, para poder comer. Se eu não ganhasse nada, não comia.”
O jovem faz parte de um grupo de 500 costa-marfinenses que puderam ser repatriados a Abidjan, resgatados por organizações não-governamentais. “A Líbia é muito difícil. Os militares nos batem a todo o momento, dizendo que os negros são amaldiçoados por Deus”, conta Bamba, uma das testemunhas que participaram de um colóquio sobre a imigração clandestina.
“Crimes contra a humanidade”
A notícia de que imigrantes negros que sonhavam ir para a Europa estão sendo comercializados como escravos na Líbia, revelada com imagens pela emissora CNN, revoltou a comunidade internacional. Na quarta-feira 21, o presidente francês, Emmanuel Macron, qualificou as denúncias como “crimes contra a humanidade”.
A França pediu a realização de uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU para tratar o tema – segundo Macron, o tráfico de seres humanos no norte da África “movimenta 30 bilhões de euros por ano e atinge 2,5 milhões de pessoas, e 80% das vítimas são mulheres e crianças”.
Notícia chocante – mas que está longe de ser novidade
A escravidão moderna na Líbia é estarrecedora, mas é uma prática antiga no país, comum na época do ex-ditador Muamar Kadafi. O ministro da Defesa da França Jean-Yves Le Drian afirmou que as autoridades líbias “foram alertadas diversas vezes” sobre o problema nos últimos anos, mesmo após a queda de Kadafi. O caos político e de segurança que se instalou no território líbio favoreceu a atuação das redes de traficantes, que transformaram a comercialização de negros em um negócio lucrativo.
Nesta semana, 250 migrantes camaronenses que viveram como escravos na Líbia relataram o cenário de horror pelo qual passaram, ao retornarem ao seu país, graças à atuação da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Em abril, a entidade da ONU publicou um relatório alarmante sobre os “mercados públicos de escravos na Líbia” – mas o documento não suscitou qualquer reação efetiva da comunidade internacional.
“Não aconselho nem o meu pior inimigo de tentar ir para a Europa passando pela Líbia. É um inferno completo”, contou à agência AFP Maxime Ndong, um dos migrantes resgatados. “Os líbios não têm nenhuma consideração pelos negros. Eles nos tratam como animais, estupram as nossas mulheres. E há um verdadeiro comércio de negros lá, exatamente como na época da escravidão. As pessoas vêm e compram”, afirmou o jovem, que passou oito meses no calvário líbio junto com a esposa, da qual não tem notícias há três meses.
União Europeia acusada de cumplicidade
Em um texto publicado no jornal francês Libération desta semana, artistas, intelectuais, esportistas e militantes pediram uma ação internacional imediata contra a prática “que o mundo descobre com estupefação e as ONGs sabiam e denunciavam havia anos”. Os signatários denunciam a cumplicidade da União Europeia no crime, ao concentrar suas ações na rejeição dos migrantes no território europeu, em vez de promover uma solução definitiva ao que acontece no norte africano.
“A responsabilidade moral – e judicial? – da União Europeia neste pesadelo é mais do que uma constatação: é uma vergonha que nós recusamos que seja coberta pelos habituais comentários apaziguadores sobre a ilusória ‘melhoria das condições de detenção’. Não melhoramos a prática escravagista”, ataca o texto. “Nós a combatemos até o seu desaparecimento total.”
As autoridades líbias reconhecidas pela comunidade internacional, comandadas pelo Governo de União Nacional (GNA, na sigla em inglês), anunciaram a abertura de uma investigação sobre o mercado de escravos. No entanto, mesmo que quisessem combater o crime, os governantes têm limitada capacidade de ação – já que, na prática, não detêm o poder de fato em todo o país.
“O governo líbio é mais tolerado do que respeitado pelos grupos armados que exercem o poder de fato”, resume o pesquisador Jalel Harchaoui, especialista na Líbia da Universidade de Paris VIII. A realidade, indica o pesquisador, é que o GNA “é uma mera ferramenta ao serviço da diplomacia, para que exista um interlocutor mínimo que possa ser nomeado na Líbia”, um país à beira do colapso econômico, conforme o Banco Mundial advertiu em outubro. São as atividades – criminais ou não – de diversos grupos armados espalhados pela Líbia que movimentam a economia do país atualmente.
Fonte: Carta Capital, com Radio França Internacional
Data original da publicação: 26/11/2017