As medidas neoliberais não só foram prejudiciais para a classe trabalhadora como também afetaram a própria eficiência do sistema econômico.
Vicenç Navarro
Fonte: Carta Maior, com Nueva Tribuna
Tradução: Victor Farinelli
Data original da publicação: 13/10/2016
Ao largo da minha longa vida acadêmica, vi com frequência como as ideias que alguma vez foram consideradas radicais terminaram sendo aceitas anos depois, dependendo do tempo de resposta da sociedade e da flexibilidade das instituições encarregadas de atuar nas áreas onde se essas supostamente radicais propostas são apresentadas. Na Espanha, por exemplo, o enorme conservadorismo e rigidez do establishment financeiro, político e midiático que governa o país faz com que se necessite muito mais tempo para que tais ideias sejam aceitas, pois mesmo as que parecem ser mero sentido comum podem ser consideradas radicais demais.
Algo está acontecendo hoje na Europa, em algumas instituições enormemente poderosas de caráter financeiro, que confirma o que estou dizendo. Me refiro à recente mudança realizada pelo Banco Central Europeu, que passou de ser um dos maiores defensores da redução dos salários a um forte apoiador do aumento dos mesmos. O mais escandalosos é que o organismo sequer tenta explicar porque defende esta medida agora, depois de anos patrocinando ideias opostas, e tampouco pede desculpas pelo enorme dano que causou propondo – e, em muitas ocasiões, impondo – arrochos salariais cujos efeitos daninhos e totalmente contraproducentes para alcançar a recuperação econômica eram fáceis de serem percebidos. Vejamos os dados.
O que aconteceu até agora?
Ainda estamos saindo de uma das maiores crises econômicas já vividas pela Europa, definida como a Grande Recessão (que, na verdade, deveria ser definida como a nova Grande Depressão), na qual, apesar do que diz a sabedoria convencional, ainda estamos estancados. A causa desta Grande Recessão (ou Grande Depressão) é bastante fácil de observar – e era, portanto, igualmente fácil de prevenir, algo que alguns países souberam fazer. A causa más importante foi a aplicação das políticas neoliberais iniciada nos dois lados do Atlântico Norte, ainda nos Anos 80, impulsadas pelos presidentes estadunidenses Reagan, Bush pai, Clinton e Bush filho, por Thatcher e Blair no Reino Unido, por Schröder na Alemanha, entre outros. Políticas que eram, nada mais nada menos, que um ataque frontal por parte do mundo do capital ao mundo do trabalho, promovendo reformas trabalhistas que tinham como objetivo reduzir os salários, como rezam as políticas de austeridade, cujo objetivo é reduzir ou desmantelar o Estado de Bem Estar, criando grande insegurança e instabilidade na classe trabalhadora, eixo das classes populares.
O enorme arrocho salarial como uma das causas da Grande Recessão
Era fácil prever que essas políticas de redução dos salários e cortes de gastos públicos criaram um enorme problema de demanda doméstica, que afetou negativamente o crescimento econômico. O grande crescimento do endividamento, causado pela diminuição dos salários, aumentou o tamanho do capital financeiro, que ao ver sua rentabilidade diminuída em termos de investimentos na economia produtiva – como consequência da escassa demanda –, passou a investir na economia especulativa, criando bolhas que, quando estouraram, deram início à enorme crise financeira que vivemos. Os índices econômicos, através dos anos, demonstram claramente a origem de tal crise – o que não significa, porém, que sejam facilmente visíveis nos principais meios de informação e persuasão, a grande maioria deles influenciados pelo capital financeiro, ou seja, pelos bancos.
Todo o enorme sofrimento causado pela aplicação das políticas neoliberais, que beneficiam única e exclusivamente os setores privilegiados e minoritários da população (o famoso 1% que está no topo da pirâmide a forma moderna de se referir à classe capitalista, os proprietários e gestores das grandes empresas financeiras, industriais e de serviços), era facilmente previsível. Ademais, essas medidas não só foram prejudiciais para a classe trabalhadora, a grande maioria da população, como também afetaram a própria eficiência do sistema econômico. Ao contrário do que o pensamento econômico neoliberal dominante sustenta, a iniquidade não favorece a eficiência econômica. Pelo contrário, a prejudica, como os índices econômicos também demonstram.
Como a sabedoria convencional neoliberal está mudando, sem admitir seus erros
Agora, quase dez anos depois do início da crise, alguns dos mais conhecidos arquitetos das políticas promovidas pelo establishment europeu – como Mario Draghi, o economista italiano que preside o BCE – indicam que as políticas monetárias, como imprimir mais e mais dinheiro, não têm sido suficientes para estimular a economia. Algo que é fácil de entender, pois esse dinheiro impresso pelo BCE não vai parar nas mãos do que o necessitam, ou seja, dos cidadãos e dos Estados – a não ser pela via indireta, através dos mercados secundários. O destino primordial são os bancos e as grandes empresas, que preferem acumular esses recursos para otimizar seus benefícios, sem que isso implique numa melhora da demanda doméstica. Por isso Draghi recomenda, agora, que se aumentem os salários, o que algumas poucas vozes, entre as quais me inclui, já vínhamos sugerindo desde o começo da crise, pois era fácil de ver que o grande estancamento do crescimento econômico era, em parte, resultado da queda da demanda doméstica, uma das consequências do arrocho salarial.
Porém, existem outras intervenções que ainda não foram reconhecidas como necessárias, mas eu tenho certeza que serão, nos próximos anos. Me refiro ao massivo investimento público voltado à criação de empregos e à estimulação da demanda doméstica. O máximo que o establishment europeu (as instituições que governam a Zona Euro) conseguiu fazer nesse sentido, até agora, foi o Plano Juncker (ideado pelo político luxemburguês Jean-Claude Juncker, ex-presidente do Eurogrupo e atual presidente da Comissão Europeia), um estímulo ao capital privado para que seja ele o que invista, ideia que tem se mostrado dramaticamente insuficiente. É bem provável que se passem mais dois anos até que o establishment entenda que esses investimentos são necessários para terminar finalmente com a Grande Recessão, como foram decisivos para a resolução da Grande Depressão.
Comparando a sabedoria convencional da Europa com a existente nos Estados Unidos
Neste sentido, é interessante ver o que está acontecendo nos Estados Unidos, e compará-lo com o contexto da União Europeia. A teatralidade das eleições nos Estados Unidos – devido, em parte, à figura atípica de Donald Trump – leva o debate eleitoral (ou o não debate) a ignorar as análises mais profundas dos programas econômicos e sociais dos candidatos, que têm diferenças mas também semelhanças, algumas delas especialmente relevantes, como a promessa de priorizar os investimentos públicos em melhorar a infraestrutura física do país. Os dois partidos majoritários estadunidenses propõem um massivo investimento público, não só para recuperar boa parte da estrutura física bastante abandonada nos últimos anos como também para estimular a criação de empregos com novos postos bem pagos.
Por exemplo, Hillary Clinton promete gastar mais de 270 bilhões de dólares em melhorar o sistema educativo, e afirma que seu objetivo é aumentar o acesso das classes populares a esse sistema, além de melhorar a infraestrutura do país, incluindo estradas, portos, ferrovias, transformação energética, estrutura de internet de alta velocidade e outros aspectos considerandos necessários – estruturas cujas deficiências são, em parte, consequências da queda na produtividade do país. Como era de se esperar, Trump prometeu gastar o dobro do previsto pela concorrente, também enfocando a infraestrutura física.
A proposta de Trump não prevê como esse gasto será financiado. Clinton sim o faz: com um imposto extra às companhias estadunidenses que tem parte da sua produção fora do país. Hoje, as políticas de apoio à globalização econômica estão desacreditadas nos Estados Unidos, e por isso a população apoia medidas que na União Europeia definidas e denunciadas como protecionistas. É interessante notar, nesse aspecto, a mudança de total de rumo tomada por Larry Summers, que foi um dos principais assessores da política econômica de Bill Clinton – e arquiteto da desregulação financeira dos Estados Unidos, uma das causas da crise financeira – e passou de ser um grande entusiasta da desregulação e da mobilidade dos capitais a defender, hoje, a regulação dos mercados e o investimento público massivo. Àqueles conservadores e liberais que protestam por tal incremento do gasto público, alegando (como sempre fazem) que estaríamos criando uma dívida que castigaria os nossos filhos e netos (um dos argumentos mais utilizados pelos gurus do neoliberalismo, e que ainda encontra enorme espaço em alguns meios de comunicação mundo afora), Summers responde indicando que seria imperdoável, neste momento, não investir para deixar aos filhos e netos uma infraestrutura muito melhor que a existente hoje. Mais que isso, ele reconhece que o governo estadunidense poderia pedir emprestado, a juros baixíssimos, pois tais investimentos provocariam um crescimento da produtividade, o que originaria um aumento de 3% na arrecadação do Estado federal, o que permitiria pagar a dívida facilmente.
Tal argumento se aplica também, por exemplo, ao Estado espanhol, que tem um dos maiores sistemas bancários privados do mundo, e um dos menores sistemas bancários públicos da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos), o grupo de países mais ricos do mundo capitalista desenvolvido. Seria de se esperar que isso seja revertido a médio ou longo prazo. Por mais paradoxal que pareça, o problema da Espanha não é a falta de dinheiro, mas sim os canais privados (a banca privada) nos quais circula. É provável que isso mude, sobretudo em consequência das transformações na cultura política e econômica do país, hoje extraordinariamente conservadora e causadora de danos ao bem estar das classes populares, e que está originando, como resposta, uma insatisfação generalizada que poderia mudar o país, caso as novas forças políticas sejam capazes de canalizá-la. Nesse sentido, é extraordinário o que já se conseguiu neste recente e curto período. As lentas mudanças impulsadas pela via parlamentar deveriam ser acompanhadas de amplas mobilizações em defesa dos interesses das classes populares, pressionando para que as reformas necessárias sejam realizadas. Na verdade, o fato de que o BCE hoje peça um aumento dos salários é uma resposta direta ao temor de que os movimentos de protesto – dos dois lados do espectro político – possam se expandir por todo o território europeu. Uma vez mais, se impõe a máxima de que por trás de toda mudança na política econômica, monetária e/ou financeira há fortes pressões políticas. E são essas variantes políticas que determinam os fenômenos econômicos, e não o contrário. Isso também é claro.
Vicenç Navarro é professor de Ciências Políticas e Políticas Públicas da Universidade Pompeu Fabra, e ex-professor de Economia da Universidade de Barcelona.