Apesar de os índices registrarem a expansão do emprego formal no setor da construção civil e de incrementos dos rendimentos do trabalho, “as características estruturais do mercado de trabalho se mantiveram ou foram recrudescidas, como a intensificação da rotatividade, a existência de péssimas condições de trabalho (independentemente do porte das obras, como evidenciam os inúmeros resgates de trabalhadores em condições análogas à de escravos por todo o país) e o aumento dos acidentes e mortes nas obras”, constata Vitor Filgueiras, organizador do livro Saúde e segurança do trabalho na construção civil brasileira, recentemente lançado e produzido em parceria com o Ministério Público.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Filgueiras afirma que “a elevada quantidade absoluta e relativa de acidentes de trabalho nas obras do Brasil é consequência do padrão de gestão do trabalho predominantemente predatório que impera no país”, que gera consequências “desastrosas para a saúde e segurança dos trabalhadores”. De acordo com o auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, a precarização no setor da construção civil se manifesta também na terceirização das atividades no setor, que é de 25% atualmente.
Mas a situação mais preocupante, informa, é em relação à subestimação dos dados referentes à quantidade de trabalhadores mortos por acidentes de trabalho, a cada ano. “É possível apurar que a construção civil é a atividade econômica que mais mata trabalhadores no Brasil. A participação do setor da construção civil no total de acidentes fatais passou de 10,1%, em 2006, para 16,5%, em 2013”, afirma. Na avaliação dele, esse quadro é “facilitado por uma postura do Estado hegemonicamente conciliadora com os ilícitos praticados pelos empregadores. Infelizmente, posturas condescendentes com a ilegalidade contribuem para a reprodução das mortes no trabalho, já que nesse cenário os empregadores obtêm vantagem competitiva ao descumprir as normas”.
O livro Saúde e segurança do trabalho na construção civil brasileira será lançado no dia 14-09-2015, em São Paulo. A obra não é comercial e, além da publicação impressa, a versão em e-book ficará disponível para download livre.
Vitor Filgueiras possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e graduação em Economia pela UFBA. Atualmente é auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a situação do mercado de trabalho na construção civil atualmente?
Vitor Filgueiras – O mercado de trabalho na construção civil brasileira possui características estruturais semelhantes ao conjunto do mercado de trabalho no país, contudo, radicalizadas, dentre elas: baixos salários, alta rotatividade, informalidade, elevados índices de acidentes de trabalho.
Ao longo dos últimos dez anos, assim como no restante dos setores, a construção civil conviveu com elevação do emprego formal e incremento dos rendimentos do trabalho, especialmente por conta da expansão da demanda por força de trabalho e o incremento do salário mínimo. Todavia, características estruturais do mercado de trabalho se mantiveram ou foram recrudescidas, como a intensificação da rotatividade, a existência de péssimas condições de trabalho (independentemente do porte das obras, como evidenciam os inúmeros resgates de trabalhadores em condições análogas à de escravos por todo o país) e o aumento dos acidentes e mortes nas obras.
Após cerca de uma década de crescimento relativamente constante do emprego formal no setor, o trabalho com carteira assinada tem registrado déficits este ano, e as perspectivas para o emprego não parecem nada animadoras com a política econômica atualmente vigente.
IHU On-Line – Qual é o perfil dos trabalhadores da construção civil hoje?
Vitor Filgueiras – Segundo os dados oficiais (RAIS), o grau de escolaridade do trabalhador na construção civil cresceu continuamente entre 2002 e 2013. O crescimento foi mais intenso entre os trabalhadores que concluíram o ensino médio, que passaram de 13,49% do total, em 2002, para 35,38%, em 2013. No mesmo período, a participação dos analfabetos caiu de 2,16% para 0,81%.
Os trabalhadores da construção são majoritariamente homens com até 39 anos, realidade que pouco mudou ao longo da última década. Esse quadro basicamente se manteve em relação à idade dos trabalhadores, com pequeno incremento da participação de homens com mais de 39 anos no conjunto da força de trabalho. Quanto ao quesito gênero, a despeito do crescimento contínuo da quantidade de mulheres em atividade no setor, sua participação percentual passou apenas de 6,95% para 8,53% do total de trabalhadores na construção entre 2002 e 2013.
IHU On-Line – Qual é o percentual de trabalhadores da construção civil terceirizados?
Vitor Filgueiras – No conjunto do mercado de trabalho brasileiro, as avaliações mais recentes estimam que aproximadamente 25% da força de trabalho no país é terceirizada.
Na construção, apesar da expansão da terceirização nas últimas décadas, ainda parece ser prevalecente a contratação direta de trabalhadores nas obras do país, quando considerado o conjunto do mercado de trabalho na construção. Há um grande peso das maiores empresas no total da formalização da força de trabalho empregada no setor. Grosso modo, considerando que a terceirização é mais incidente por meio de pessoas jurídicas com até 19 trabalhadores formalmente registrados, talvez haja algo próximo a 1/4 da força de trabalho do setor contratada via figura interposta.
Portanto, como ainda há muito espaço para terceirizar, a patente relação entre terceirização e acidentes de trabalho tende a agravar o quadro de acidentalidade da construção, caso haja uma liberalização ainda maior dessa forma de contratação, como previsto no PL 4330 aprovado na Câmara em abril deste ano.
IHU On-Line – Por quais razões mais de 400 trabalhadores da construção civil morrem a cada ano no Brasil? Como esse dado é analisado a partir da segurança do trabalho?
Vitor Filgueiras – Resumidamente, a elevada quantidade absoluta e relativa de acidentes de trabalho nas obras do Brasil é consequência do padrão de gestão do trabalho predominantemente predatório que impera no país. Isso significa um comportamento empresarial que tende a não respeitar qualquer limite que considere entrave à acumulação, com implicações desastrosas para a saúde e segurança dos trabalhadores.
Essa característica é evidenciada, por exemplo, pelo caráter pró-cíclico dos acidentes, quando o avanço da tecnologia poderia implicar exatamente o contrário, ou seja, a redução sistemática do adoecimento laboral. Inclusive, essa é outra evidência desse padrão predatório: a adoção de tecnologias pelas empresas é seletiva, e tende a não incluir aquelas que versam sobre segurança do trabalho. Ao contrário, as iniciativas predominantes são de resistência à incorporação de novas tecnologias mais seguras.
Atividade que mais mata no país
Os dados oficiais são muito subestimados, mas, ainda assim, é possível apurar que a construção civil é a atividade econômica que mais mata trabalhadores no Brasil. A participação do setor da construção civil no total de acidentes fatais passou de 10,1%, em 2006, para 16,5%, em 2013. Considerando a quantidade de trabalhadores na construção civil em relação ao conjunto do mercado de trabalho, o risco de um trabalhador morrer na construção é mais do que o dobro da média.
Esse quadro é facilitado por uma postura do Estado hegemonicamente conciliadora com os ilícitos praticados pelos empregadores. Infelizmente, posturas condescendentes com a ilegalidade contribuem para a reprodução das mortes no trabalho, já que nesse cenário os empregadores obtêm vantagem competitiva ao descumprir as normas.
Outro importante fator para o quadro lastimável dos acidentes nas obras do país é o aniquilamento deliberado da Inspeção do Trabalho pelos sucessivos Governos Federais. Há, simplesmente, mais de 1.000 (mil) cargos de Auditor Fiscal do Trabalho vagos, de modo que hoje existem menos Auditores no país do que em 1990, quando a população empregada era muito menor.
Há, ao menos, três Ações Civis Públicas tramitando no Judiciário solicitando o preenchimento das mais de mil vagas existentes pelo Governo Federal. Trata-se de um desrespeito frontal à convenção 81 da OIT assinada pelo Brasil, que tem força de lei no país. Como os cargos já existem, o Governo sequer precisa do Congresso para criar as vagas, bastando preenchê-las.
Para além do tratamento dispensado pelo Governo à proteção à vida dos trabalhadores no país, a não recomposição dos quadros da Fiscalização do Trabalho é escandalosa por contradizer os próprios termos da atual política econômica. A Inspeção do Trabalho é amplamente superavitária em termos de arrecadação, direta e indiretamente, de modo que a retórica do ajuste fiscal é, como em outros casos, claramente seletiva de acordo com os interesses em questão.
IHU On-Line – Quais são as principais causas de adoecimento entre os trabalhadores da construção civil?
Vitor Filgueiras – Resumidamente, considerando apenas os acidentes típicos (excluindo doenças ocupacionais e acidentes de trajeto) e os dados registrados pelo INSS, a partir das Comunicações de Acidentes de Trabalho – CAT emitidas, as quedas, impactos e aprisionamentos (incluindo desmoronamento) foram as situações geradoras de 72,1% de todos os acidentes no conjunto do setor da construção (que inclui construção de edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados para construção) em 2012.
Considerando os acidentes fatais na construção de edifícios em 2013, as três situações geradoras com mais acidentes fatais, quais sejam, queda com diferença de nível, impacto oriundo de material projetado, desabamento e desmoronamento (incluindo soterramento) foram responsáveis por cerca de 70% das mortes. Vale ressaltar que são situações para as quais há previsão na norma de medidas específicas para evitar a ocorrência de acidentes.
Quanto aos agentes causadores, os acidentes típicos comunicados que mais mataram na construção de edifícios em 2013 foram andaimes, plataformas, telhados, edifícios ou estruturas (cerca de 40%).
A grande maioria dos acidentes que ocorrem na construção civil é previsível e evitável, vinculada a situações cujo combate aos riscos está normatizado.
IHU On-Line – Quais são as normas de segurança do trabalho que devem ser seguidas na construção civil? Elas são ou não cumpridas tanto por funcionários quanto pelos empregadores?
Vitor Filgueiras – A principal norma de segurança do trabalho para a construção civil é a Norma Regulamentadora – NR 18, do Ministério do Trabalho, que possui status de lei e se integra à CLT e demais diplomas legais vigentes no país (que vão da Constituição a outras NRs que versam sobre temas específicos, como a NR 12 — máquinas e equipamentos).
A responsabilidade de cumprir e fazer cumprir as normas que objetivam proteger a saúde dos trabalhadores no Brasil é dos empregadores (tanto na legislação trabalhista quanto na legislação previdenciária). Essa responsabilização é previsível e lógica, já que as empresas monopolizam os meios de produção e dirigem o trabalho, controlando o processo de produção, consequentemente, controlam e gerem os riscos à saúde dos trabalhadores.
O desrespeito à legislação trabalhista pelos empregadores é uma característica marcante nas relações de trabalho do país. Quanto à NR 18, altos níveis de descumprimento não são recentes. Infelizmente, nos últimos anos, o comportamento empresarial não parece ter melhorado. Muitas irregularidades têm sido apuradas pela Fiscalização do Trabalho todos os anos, frequentemente com descumprimento de itens elementares da norma.
IHU On-Line – Quais são as principais irregularidades do setor, encontradas pela auditoria fiscal do Trabalho? Como as instituições públicas se posicionam em relação a esses casos?
Vitor Filgueiras – As principais irregularidades apuradas pela Fiscalização do Trabalho na construção civil são justamente os itens mais básicos da NR 18. Por exemplo, em 2012, foram detectadas 2.532 infrações ao item 18.13.4, proteção contra queda em periferias; 1.999 infrações ao 18.15.6, colocação de guarda-corpo em andaimes; 1.915 infrações ao 18.13.5 “a”, colocação de travessão superior nos guarda-corpos. Ou seja, mais de 6 mil infrações referentes a apenas três itens básicos e diretamente relacionados às situações geradoras de grande parte dos acidentes fatais.
Em 2013, infrações aos itens constantes nas seções 18.13 (Medidas de Proteção contra Quedas de Altura) e 18.15 (Andaimes e Plataformas de Trabalho) foram flagradas pela Fiscalização do Trabalho na vasta maioria das obras inspecionadas.
As instituições de regulação do direito do trabalho têm historicamente apresentado uma postura débil ante as ilegalidades praticadas pelos empregadores. Até poucos anos atrás, a Fiscalização do Trabalho, por exemplo, nas inspeções de empresas da construção civil, dificilmente multava irregularidades ou paralisava obras com riscos de acidentes. O MPT e a Justiça do Trabalho possuem características semelhantes, normalmente buscando dar novas chances e prazos aos empregadores que descumprem a legislação, ao invés de impor as normas sobre aqueles que descumprem a lei, combatendo a concorrência espúria e resguardando a integridade física daqueles que trabalham.
Nos últimos anos, essa situação tem parcialmente sido alterada, especialmente na Fiscalização do Trabalho. Ou seja, o cenário de condições de risco e de acidentes poderia ser ainda pior, se a Fiscalização não estivesse paralisando mais obras irregulares e evitando acidentes cujo número é impossível calcular. Contudo, essa mudança de postura da instituição tem sido mitigada, dentre outros fatores, pela redução cada vez mais acintosa do número de Auditores Fiscais e pela falta de estrutura do Ministério do Trabalho.
IHU On-Line – Como a questão dos acidentes de trabalho é tratada pelos trabalhadores e empregadores da construção civil?
Vitor Filgueiras – Os acidentes de trabalho no Brasil são tratados, em regra, com base na perspectiva de que o trabalhador é responsável pela preservação de sua própria integridade física nas atividades laborais, o que contraria expressamente os diplomas legais e a literatura científica sobre saúde e segurança do trabalho. Isso porque a eliminação ou controle coletivo dos riscos, ações tecnicamente muito superiores para evitar acidentes, não dependem da decisão dos trabalhadores.
Essa individualização da saúde e segurança do trabalho é uma estratégia encampada pelos empregadores para reproduzir o atual padrão de gestão do trabalho no país, e se tornou um senso comum, ou seja, é normalmente reproduzida acriticamente em diversos meios, inclusive entre trabalhadores e sindicatos.
Na construção civil, esse senso comum é paradigmaticamente encarnado pelo cinto de segurança e capacete. Praticamente todas as vezes que um trabalhador morre vítima de queda de diferentes níveis, empresas, imprensa e mesmo os sindicatos questionam se o trabalhador estava usando o cinto, ou se o empregador forneceu o cinto. A instalação de proteções coletivas, método muito mais efetivo para evitar acidentes e que a norma determina como prioridade a ser adotada e uma obrigação do empregador, é quase sempre abstraída.
A perpetuação do padrão predatório de gestão do trabalho na construção civil e nos demais setores da economia brasileira está fortemente associada a essa individualização, um senso comum hegemônico há décadas, que restringe ao indivíduo o debate sobre regulação da integridade física dos trabalhadores. Desse modo, os empregadores tendem a culpar as vítimas, inclusive tirando o descumprimento das normas do foco do debate, não questionam as condições de trabalho e mantêm as mesmas condições que efetivamente contribuíram para os acidentes, que se reiteram.
Fonte: IHU On-Line
Texto: Patrícia Fachin
Data original da publicação: 09/09/2015