Durante o período colonial, nem sempre a alforria garantia uma vida em liberdade: muitos libertos foram reescravizados.
Fernanda Domingos Pinheiro
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Data original da publicação: 01/02/2015
Depois de muitos anos vivendo como escravo, Antônio Rodrigues foi informado que, na verdade, era um homem livre. Sem demora, retirou-se da Vila do Caeté, na capitania das Minas Gerais, e passou a morar em companhia de sua mãe nas Catas Altas, freguesia pertencente à cidade de Mariana. Foram quatro anos desfrutando da liberdade até que, em 1762, chegou uma notícia assustadora: seu ex-senhor mudara de ideia e tentava encontrá-lo para levá-lo de volta ao cativeiro.
O sargento-mor Rodrigo Rocha e Souza agia do mesmo modo que outros tantos ex-senhores que, ao longo do século XVIII, empregaram serviços de capitães-do-mato ou de oficiais de justiça para apreender e reescravizar libertos. Até poucos anos atrás, os historiadores conheciam apenas casos ocorridos no século XIX. Hoje, sabe-se que o fenômeno existiu também no período colonial. Nas Minas Gerais, importante centro escravista da América portuguesa, alforriados tornaram-se alvos de buscas e prisões marcadas por atos de violência, e muitos acabaram sendo vendidos a novos proprietários ou devolvidos à posse de antigos senhores. Era este o risco que Antônio Rodrigues corria.
Sua alforria foi concedida quando ainda era um bebê, por volta de 1730, pelo seu então senhor, Manuel Pereira Dias. Não foi generosidade gratuita: a liberdade custou 100 oitavas de ouro, pagas por seu padrinho. Como era muito pequeno, permaneceu junto da mãe, escrava do mesmo Pereira Dias. Mas, ao completar 5 ou 6 anos, o menino foi levado por um tal José Barcelos para o Arraial de Santa Bárbara, na Vila do Caeté. Ali ficou por 12 anos, até a morte de Barcelos. Nesse momento, a sorte de Antônio mudou: “por se achar na casa do defunto”, o jovem negro foi identificado como escravo no inventário e vendido pelo testamenteiro ao sargento-mor Rocha e Souza.
A este senhor Antônio obedeceu por muitos anos, desconhecendo o fato de ter ganho a liberdade no passado. Além disso, a reescravização foi consequência do sumiço da carta que atestava sua alforria. Segundo alegou anos depois em um processo judicial, ele a perdeu por “ser criança e não ter quem a guardasse”. A mudança de casa e o deslocamento geográfico devem ter contribuído para que ele fosse considerado um cativo. Antônio não tinha permanecido no local do seu nascimento, nem no entorno: conduzido para outra localidade da região mineradora, afastou-se da mãe, do padrinho e de quem havia presenciado ou participado de sua libertação. Desenraizado, não tinha ninguém que pudesse se opor à sua comercialização.
Somente por volta dos 28 anos retomaria a liberdade, graças à circulação de testemunhas que, enfim, o identificaram e deram importantes informações sobre seu passado. Os relatos foram convincentes para que o sargento-mor Rocha e Souza decidisse libertá-lo, mas não suficientes para garantir que continuaria livre. As últimas informações disponíveis mostram que a pendenga entre Antônio e o sargento-mor seguiu adiante na Justiça. Enquanto esperava pela intermediação do juiz, Antônio continuava atormentado pela reescravização e aflito para usufruir plenamente de sua libertação.
Em situação parecida encontravam-se, em 1788, a africana Ângela Sabaru e sua filha, a crioula (escrava nascida no Brasil) Joana do Couto. Ambas haviam sido coartadas por Julião do Couto Ribeiro, que determinou o pagamento de suas liberdades em parcelas anuais. Como faleceu antes que elas quitassem o valor total estipulado, mãe e filha continuaram pagando suas coartações ao herdeiro e testamenteiro, capitão José do Couto Ribeiro. Anos depois, tendo enfim pago o valor integral, as duas passaram a desfrutar da liberdade e resolveram se mudar da cidade de Mariana para a Barra do Caeté, onde “viviam sobre si”, tratando de sobreviver com seus próprios recursos.
Numa noite, porém, o mesmo capitão José do Couto Ribeiro se arranchou na casa de Ângela e Joana e lhes preparou uma emboscada: sorrateiramente as capturou e “conduziu (…) por veredas não trilhadas para os sertões do Serro Frio”. Lá chegando, vendeu mãe e filha a Martinho José Pacheco, que as repassou a Helena Rosa Pereira Coelho, moradora do Arraial do Tijuco.
Reescravizadas numa região onde eram completamente desconhecidas, Ângela e Joana planejaram escapar do cativeiro, mas logo perceberam as dificuldades para comprovar o fato de serem libertas. O primeiro obstáculo era a inexistência das cartas de alforria: a única coisa que tinham eram os recibos dos pagamentos das coartações, que não atestavam a transformação delas em mulheres forras. Essa documentação serviu, entretanto, para que recorressem ao governador da capitania, Luís da Cunha Meneses. Numa ida a Vila Rica, em 1785, elas lhe encaminharam uma súplica em que contavam suas histórias, anexando os recibos como prova. O governador pediu explicações ao capitão José do Couto Ribeiro que, intimidado pela denúncia, passou as cartas de alforria.
Com os papéis em mãos, as duas retornaram ao Arraial do Tijuco, esperançosas de que alcançariam, de novo, a liberdade. As cartas de alforria, porém, não bastaram para que Helena Rosa admitisse ter comprado duas libertas. Para a atual senhora, faltavam ainda o reconhecimento dos negociantes envolvidos na venda de Ângela e Joana e os testemunhos de outras pessoas que atestassem a validade das alforrias. Diante dessa oposição, elas promoveram um litígio para tratar do assunto na Justiça, mas não conseguiram sustentá-lo. O afastamento entre Tijuco e Mariana, ou entre Tijuco e Caeté, impediu que cumprissem os procedimentos legais no tempo determinado. Nesse caso, a Justiça não garantiu a validação das alforrias: Ângela Sabaru e Joana do Couto foram mantidas no cativeiro.
Ainda que imprevisível, por vezes ineficaz, o recurso à Justiça mostrou-se uma alternativa possível para alguns dos ameaçados ou efetivamente reescravizados. Tanto que disputas em torno da restituição, da manutenção ou mesmo da revogação da alforria foram autuadas ao longo dos séculos de vigência da ordem escravista na América portuguesa e durante o Brasil Império. Ao que parece, o número desses processos cresceu a partir de 1860, pois foram então tomados como instrumento de pressão num contexto de falência da escravidão. Antes disso, não eram usados para contestar o sistema escravista: existiam como um meio de intervenção pública para reestabelecer a harmonia no âmbito das relações privadas.
As tentativas e as práticas de reescravização atingiam com maior frequência indivíduos em condições de maior vulnerabilidade. As experiências de Ângela Sabaru, Joana do Couto e Antônio Rodrigues deixam claro o alto grau de risco que os deslocamentos geográficos representaram para os libertos. Sair do lugar onde a alforria foi obtida significava quebrar vínculos com parentes e vizinhos que podiam auxiliar na resistência à reescravização. A mudança constituía uma ruptura potencialmente perigosa porque, naquela época, os documentos escritos, sobretudo as cartas particulares de alforria, emitidas de próprio punho pelo ex-senhor ou por alguém a seu pedido, eram documentos frágeis. Podiam ser extraviadas ou ter sua veracidade questionada, como ocorreu com os personagens das histórias aqui narradas.
Uma forma de assegurar a durabilidade e a validade de uma carta de alforria era fazer seu registro em cartório. O tabelião lavrava a escritura pública no seu livro de notas e passava uma cópia ao liberto para que ele pudesse apresentá-la sempre que necessário. Da mesma forma fazia-se com o papel de coartação e os recibos que atestavam seu pagamento e a consequente libertação. Mas cobrava-se uma taxa pelo serviço e, para escapar do ônus, frequentemente o ex-senhor e o ex-escravo se eximiam da formalidade. A distância entre a residência e o cartório também podia inviabilizar o ato. Por essas razões, as cartas particulares de alforrias foram usuais na colônia.
Quando consumidas ou contestadas, os depoimentos de pessoas confiáveis tornavam-se essenciais para confirmar seu conteúdo, neutralizando ameaças ou anulando um novo domínio senhorial. Sabendo disso, é provável que muitos libertos tenham desistido “de ir e vir para onde quisessem”. Os mais cautelosos deviam evitar transferências para locais distantes daqueles onde haviam alcançado a libertação. Manter-se por perto era, em muitos casos, o melhor jeito de afastar o risco da reescravidão para longe.
Fernanda Domingos Pinheiro é professora da Universidade do Estado do Mato Grosso e autora da tese “Em defesa da liberdade: libertos e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português – Mariana e Lisboa, 1719-1820” (Unicamp, 2013).