A cidade de Barcelona possui uma memória social que extrapola o 11 de setembro de 1714, a Guerra Civil e os crimes do franquismo. Entenda como a retirada da estátua de António López y López, traficante de escravos espanhol, ampliou debate sobre o lugar de certos passados sensíveis no espaço público.
Caroline Silveira Bauer
Fonte: Café História
Data original da publicação: 26/08/2019
Se algum dia você estiver em Barcelona e caminhar pela área central da cidade, poderá encontrar vestígios da ocupação de seu território durante o Império Romano, passando por igrejas românicas e góticas, caraterísticas do medievo, atravessando a Barcelona pré-industrial do século XVIII, até chegar aos prédios modernistas do final do XIX ou à cidade planejada pelo urbanista Idelfons Cerdà, dividida em “ilhas” – quadras octavadas com praças em seu interior.
Nessa possível caminhada por Barcelona, você poderá também encontrar refúgios antiaéreos construídos para abrigar a população civil dos bombardeios durante a Guerra Civil (1936-1939); a prisão conhecida como Modelo, um dos principais presídios políticos, localizado no centro da cidade; o parapeito em frente ao mar, onde os republicanos foram fuzilados ao longo da ditadura franquista; ou a fossa comum existente em Montjuic, para onde seus corpos eram levados.
Por outro lado, você não verá mais a estátua de Francisco Franco e outros símbolos franquistas que foram retirados das ruas e dos prédios públicos. E, desde o início de março de 2018, nenhum caminhante verá a estátua do traficante de escravos Antonio López y López, para quem os cidadãos também disseram “adeus” recentemente, em um enfrentamento à memória do colonialismo e do tráfico de africanos escravizados.
Caminhar por Barcelona nos permite reconhecer e problematizar lugares de memória enquanto patrimônios culturais da sociedade espanhola, aproximar-se dos conflitos por seus significados, das “batalhas de memória”. Preservar para quê, para quem? Esquecer com qual objetivo? Lembrar sempre. Mas lembrar o quê? Estas são as questões que orientam este artigo.
Façamos festa. Façamos história. Retiremos a estátua de López y López.
Na manhã de domingo do dia 4 de março de 2018, aproximadamente 200 pessoas participaram da “festa de despedida” da estátua de Antonio López y López. Toda a festividade foi comandada por Tamara Ndong, apresentadora guineense residente em Barcelona. Diversas pessoas lembraram o que é o racismo e o que significa viver sob a condição de racializados.
Oficinas para confeccionar cartazes, embaladas por percursionistas e pelas músicas do grupo senegalês Djilandiang e do coletivo catalão de atores e músicos de fanfarra Always Drinking Marching Band, precederam a retirada da estátua. A companhia Els Comediants realizou uma performance, infiltrando-se entre os funcionários que içavam a figura de López e preparavam seu transporte, conferindo comicidade ao ato. Quando o caminhão em que foi depositada preparava-se para partir, ao som de uma versão reggae da ópera “Carmina Burana”, confetes foram lançados pelos presentes e fogos de artifício encerraram a despedida de Antonio López y López.
Diversas pessoas envolvidas com a discussão sobre a memória foram responsáveis pela idealização do ato de retirada da estátua, que interrompeu o tráfego de uma das avenidas de maior circulação de Barcelona, atendendo a uma demanda histórica de diferentes organizações da sociedade civil. A retirada da estátua de Antonio López y López pode ser entendida, desta forma, como um ato de reparação, de reconhecimento e de celebração – em um sentido de subverter certos sentidos do passado.
Em 2010, López já havia deixado de ser nome de rua. Agora, chegara a vez da estátua. A retirada da homenagem foi realizada pelo Comissionat de Programes de Memòria do Ajuntament de Barcelona [Secretaria de Programas de Memória da Prefeitura de Barcelona]. Pelo Twitter, a cobertura da “despedida” de Antonio López y López foi acompanhada da hashtag #AdeuAntonio.
Os familiares do homenageado solicitaram que o Ajuntament lhes entregasse a estátua para que pudessem colocá-la em Comillas, sua cidade natal. Entretanto, seu destino acabou sendo o depósito do Museu d’Història de Barcelona [Museu de História de Barcelona], sem acesso ao público. Está ao lado da estátua equestre de Francisco Franco, ex-ditador espanhol, retirada do Castelo de Montjuic, e da alegoria Vitória, que simbolizava a vitória de Franco, retirada de uma praça do centro da cidade.
Quem foi Antonio López y López e por que foi homenageado?
Antonio López y López nasceu na cidade de Comillas, na Cantabria, em 1817, em uma família de escassos recursos financeiros. Em uma tentativa de melhorar sua condição econômica, migrou para o México e, depois, para Cuba, onde, juntamente com outros sócios, tornou-se cafeicultor e canavieiro. Contudo, sua riqueza foi feita pelo tráfico e contrabando de pessoas oriundas da África. López recebia os africanos escravizados, que desembarcavam ilegalmente em Cuba na costa leste da ilha, e vendia-os em diversas cidades.
É importante lembrar que o comércio de africanos escravizados foi uma das atividades mais lucrativas nos séculos XVIII e XIX. Ainda que o tráfico estivesse proibido no Atlântico Norte pela Inglaterra desde 1807, e na Espanha desde 1837, o contrabando foi uma realidade, ainda mais porque a escravidão permaneceu uma prática legal em Cuba até 1879. Esse crime, que alimentava todo um esquema de corrupção, dificilmente era punido.
Em 1856, López retornou à Barcelona, e passou a se dedicar ao comércio exterior, negociando com colônias, e ao ramo financeiro, fundando um banco. Sua fortuna possibilitou, também, atividades de mecenato, ou seja, patrocínio de arte e cultura. Antonio Gaudí, famoso arquiteto catalão e figura de ponta do Modernismo catalão, foi um dos seus beneficiados.
Por sua trajetória, o rei Alfonso XII, seu amigo pessoal, conferiu-lhe o título de Marquês de Comillas, em 1878, e de Grande de España, em 1881. O clérigo Jacint Verdager escreveu e lhe dedicou o poema épico L’Atlàntida, escrito em 1877.
López morreu em 16 de janeiro de 1883, em Barcelona, deixando um grande patrimônio para seus descendentes. Após sua morte, uma comissão de notáveis se organizou para renomear a Plaza de San Sebastián para “Plaça Antonio López”, e colocar uma estátua, que foi feita por Venanci Vallmitjana. Foi inaugurada em 13 de setembro de 1884, sendo os custos bancados por admiradores de López a partir de um financiamento coletivo. A iniciativa foi idealizada por seu filho Claudi López, e apoiada pelo Ajuntament (uma espécie de câmara municipal) de Barcelona, que desenvolvia, à época, uma política de “embelezamento” do espaço público, incorporando os personagens contemporâneos às nomenclaturas de ruas e praças. O local escolhido situa-se próximo ao porto, fazendo alusão às empresas comerciais e de viagem marítimas de propriedade de López.
A estátua retirada da praça não é a original de bronze. Com a Guerra Civil de 1936, a original foi fundida e transformada em material bélico, como rechaço à homenagem à López. Posteriormente, em 1944, o regime franquista financiou uma réplica, colocando-a no local original.
Colonizadores, colonizados e a memória sobre o colonialismo
Como costuma acontecer em iniciativas relacionadas à memória, não houve unanimidade em relação ao processo da “deshomenagem” à López. A Associación Catalana de Capitanes de la Marina Mercante (ACCMM) lamentou a iniciativa, negando que López fosse um “negreiro”, como afirma a narrativa do Ajuntament. O Partido Popular (PP) em Cantabria também manifestou seu repúdio à decisão de retirada da estátua, afirmando que demandaria ao Ajuntament que a mantivesse em seu local original, pois seria uma ofensa àquela região espanhola.
A alcaldesa [prefeita] de Comillas justificou a permanência da homenagem afirmando que o tráfico de escravizados no século XIX não era uma prática ilegal. E aqui está a diferença entre a ilegalidade e a imoralidade, e quais os valores éticos e morais pelos quais se seguem homenageando determinadas pessoas na democracia.
O que significa para sociedades colonizadoras ou colonizadas e escravocratas manter em seus espaços públicos homenagens ao colonialismo e à escravidão? A retirada da estátua de Antonio López y López se insere em um conjunto de iniciativas do Ajuntament de Barcelona em refletir sobre a transmissão de memórias sobre o colonialismo, principalmente em sua expressão através de símbolos presentes em espaços públicos.
A prefeitura da cidade tem desenvolvido iniciativas para que outras memórias, que não as dos escravistas, possam ocupar o espaço público, incitando discussões sobre as consequências e o legado dessas práticas, sobre quem são os beneficiários e como se beneficiaram. A partir desses debates, problematiza-se o que deve ser transmitido como história e memória às novas gerações e, da mesma forma, evidencia-se as dimensões políticas que circunscrevem os atos de lembrar e de esquecer a partir da instrumentalização e dos usos do passado.
Os relatos alternativos em relação ao passado colonial espanhol estimulam práticas de resistência para a reestruturação das narrativas. Esse movimento é acompanhado por demandas que vêm sendo colocadas por movimentos identitários, questionando uma escrita da história e uma transmissão da memória cultural hegemonicamente brancas.
A ideia de “deshomenagear” López a partir de uma “festa de despedida” não possui uma conotação de melancolia ou tristeza, que costumam caracterizar esses eventos, mas sim de alegria, porque a ciudadanía não o queria mais ali. Retirar Antonio López y López do espaço público, retirar a homenagem que lhe foi outorgada, e guardá-lo em um depósito, sem acesso ao público, é um ato de combate e de reescrita da história a partir de um outro presente mais preocupado com a diversidade étnica e cultural.
O ato de retirar a estátua do espaço público possui uma forte carga simbólica, pois significa retirar a função pedagógica de exemplaridade que as estátuas e os monumentos possuem enquanto homenagens. Entretanto, o pedestal em que estava a estátua foi deixado na praça, e nele podemos ler a frase elogiosa a López escrita pelo rei Alfonso XII em telegrama enviado à família por ocasião de sua morte em 1883: “España ha perdido uno de los hombres que más grandes servicios le han prestado” [A Espanha perdeu um dos homens que mais e melhores serviços lhe prestaram]. A permanência melancólica de um pedestal sem estátua, com essa avaliação moral de López, serve para que se lembre que, em determinadas conjunturas históricas, certas instituições homenagearam traficantes de escravizados.
A próxima ação do Ajuntament em relação ao tema é realizar uma consulta para que os cidadãos decidam o novo nome da praça. Isso atende a uma demanda apresentada através de um abaixo-assinado com 17.840 assinaturas, sugerindo que a praça passe a se chamar Idrissa Diallo, em homenagem a um imigrante guineense que morreu no Centro de Internamiento de Extranjeros (CIE) em 2012, esperando para ser deportado para a Guinea.
Outros países da Europa, como Bélgica e Inglaterra, também têm desenvolvido iniciativas em relação ao seu passado colonial. Inserem-se nas chamadas “políticas de memória”, conjunto de ações elaboradas pelos Estados como políticas públicas para garantir processos individuais e coletivos de reparação, reconhecendo determinados fatos e permitindo que distintas memórias sobre passados traumáticos ganhem espaço público e legitimidade.
Barcelona segue com seus debates sobre sua história e memória coloniais e enfrentará, nos próximos anos, um grande desafio, localizado no final das famosas Las Ramblas, que um caminhante em direção à praia ainda encontra, sobre uma coluna de 57 metros, apontando, dedo em riste, para o Mediterrâneo, a África e a América: Cristóvão Colombo.
Referências bibliográficas:
JELIN, Elizabeth (comp.). Las conmemoraciones: las disputas en las fechas “infelices”. Madrid: Siglo XXI, 2002.
LAVABRE, Marie-Claire. La memoria fragmentada ¿Se puede influenciar la memoria? Antropol. sociol., n. 11, p. 20, jan-dez 2009.
RODRIGO, Martín, CHAVIANO, Lizbeth (orgs). Negregos y esclavos: Barcelona y la esclavitud atlântica (XVI-XIX). Barcelona: Icaria, 2017.
Caroline Silveira Bauer é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora visitante da Universitat de Barcelona (2018-2019). Integra o Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (Luppa). É pesquisadora do CNPq.